sábado, 18 de dezembro de 2010

Apesar de leis, ex-presos enfrentam resistência no mercado de trabalho


'Liberdade virou tormenta', diz jovem que ficou sem emprego após ser solto.


Estados passam a determinar cotas de ex-detentos em empresas.



F.C., de 44 anos, tem esperança de ser registrado.

F. C., de 44 anos, tem esperança de ser registrado.

"As pessoas não acreditam que a gente está
disposta a se recuperar. Acham que a gente
pensa em roubar de novo."

(Foto: Daigo Oliva/G1)

Em 2010, pelo menos 9 governos estaduais e prefeituras aprovaram leis que obrigam ou estimulam empresas contratadas pelo poder público a ter uma cota de 2% a 10% de ex-presos entre os funcionários, segundo o Conselho Nacional de Justiça e levantamento feito pelo G1. A criação de meios pelo Estado para reinserir ex-detentos no mercado é prevista desde 1984, quando foi criada a Lei de Execução Penal, mas normas que determinam ou incentivam a contratação de ex-presos são recentes.

Em 2009, leis desse tipo foram aprovadas em ao menos 5 localidades e, em 2008, no Distrito Federal. Ao menos 2 projetos estão em tramitação, no Piauí e no Ceará. Antes disso, a única norma parecida encontrada pela reportagem é de 2002, do Rio de Janeiro, mas não chegou a ser colocada em prática, segundo a Fundação Santa Cabrini. Há, ainda, leis que preveem pagamento pelo estado de até 2 salários mínimos a empresas por preso admitido (veja no quadro abaixo).


"A liberdade, que eu sonhava e almejava, passou a ser uma tormenta"

R. N., de 31 anos, ex-presidiário

Essas medidas buscam mudar realidades como a de R. N., de 31 anos, ex-presidiário de Minas Gerais. Ele recebeu o alvará de soltura em junho, após cumprir 11 dos 18 anos de sua pena, beneficiado pela progressão de regime. Enquanto estava preso, trabalhou, fez cursinho e passou no vestibular para direito. R. N. estava no último ano da graduação quando conseguiu a liberdade condicional. Como o contrato de trabalho valia somente para o período de prisão, acabou sem emprego e, consequentemente, precisou trancar a faculdade.

“A liberdade que eu sonhava e almejava passou a ser uma tormenta”, diz. Desempregado e com três filhos, sua família tem sobrevivido com o trabalho de sua mulher, que é depiladora. R. N. foi condenado em 1999 por assassinato por motivo passional. Ele disse que não se conformou com uma traição. "Já paguei o que tinha de pagar e estou enfrentando a sociedade, que é conservadora e não quer me oferecer oportunidades.”

Reincidência, preconceito e baixa escolaridade


Assim como R. N., os demais ex-presidiários entrevistados nesta reportagem pediram para não terem o nome completo e os rostos identificados. “O grande problema de inserção [de ex-presos] no mercado de trabalho é o preconceito. O ex-presidiário que não consegue se fixar volta para a criminalidade. E quem paga é a sociedade, é um preconceito que gera prejuízo”, afirma Mauro Rogério Bitencourt, coordenador do programa de reintegração social da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo. O índice de reincidência no crime no Brasil gira em torno de 60% a 70%, segundo o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.

Eu não contei (que foi preso) porque cheguei a perder vários empregos depois de revelar meu passado"

J.C., de 33 anos, ex-detento

R. N. foi uma exceção no que diz respeito ao nível de escolaridade de presos no país. De acordo com o Ministério da Justiça, em junho deste ano, aproximadamente 75% dos 440,9 mil que estão no sistema penitenciário nacional tinham até o ensino fundamental, o que torna ainda mais difícil a busca por emprego. Após viver 13 de seus 33 anos atrás das grades por assassinato, J.C., que terminou o nível fundamental na prisão, afirma que foi muito difícil recomeçar a vida em São Paulo. Solto em junho de 2009, o ex-detento levou mais de um ano para conseguir um emprego com carteira assinada. O patrão o contratou sem saber que ele já foi preso.

“Eu não contei porque cheguei a perder vários empregos depois de revelar meu passado”, diz. Hoje, ele trabalha como cozinheiro em um restaurante. A experiência ele adquiriu dentro da prisão mesmo, já que trabalhou na cozinha de penitenciárias por 12 anos.


A mesma situação vive F. C., de 44 anos, também em São Paulo e que ainda não completou o nível fundamental. Ele conseguiu um emprego em novembro e, assim como J. C, não contou sobre seu passado ao empregador. Solto em agosto, após ficar preso por 1 ano e 8 meses por roubo de carga, ele afirma que é muito difícil recomeçar por conta da discriminação. “As pessoas não acreditam que a gente está disposta a se recuperar. Eles acham que a gente está pensando em roubar de novo. Por isso, decidi não contar (sobre o passado) ao meu chefe, é melhor esconder”.

O trabalho que conseguiu foi por indicação. “Eles disseram que vão registrar em carteira”, diz ele, esperançoso. F. C. afirma que o emprego, junto com o apoio de familiares e pessoas próximas, é essencial para que ele não volte a cometer crimes.


Custo do emprego


Quando ainda estão atrás das grades, os presos que trabalham não estão sujeitos às regras da CLT, o que acaba por ser um benefício à contratação de presidiários por parte das empresas. Nesses casos, a remuneração mínima é de 3/4 do salário mínimo. Presos dos regimes fechado e semiaberto não são, ainda, considerados segurados obrigatórios da Previdência.

Após saírem da prisão, contudo, os ex-detentos são considerados cidadãos comuns e, quando contratados, são regidos pela CLT, tornando-os menos atrativos para os empregadores. Além disso, a legislação trabalhista não fala, especificamente, se a empresa pode ou não pedir atestado de antecedentes criminais na contratação. De acordo com o juiz do trabalho Marcelo Segal, o assunto é polêmico, mas a solicitação pode ser considerada discriminatória e inconstitucional. Ele diz que, em alguns casos, porém, a exigência pode ser válida por conta da função a ser exercida pelo trabalhador.

Novas leis para incentivar trabalho


Em 2008, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou o Programa Começar de Novo, que busca incentivar governos, empresas e a sociedade a criar propostas de trabalho e cursos de capacitação profissional para presos e ex-detentos. “Essas leis [e decretos] são uma tendência moderna", diz Luciano Losekann, juiz auxiliar da Presidência do CNJ e Coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário. Segundo ele, antes já existiam, porém, programas que buscavam dar auxílio aos ex-presos.

O próprio conselho fez, desde 2008, 42 convênios com instituições de educação e tribunais, entre outras entidades, para dar apoio a detentos e ex-detentos. Um deles, com o Comitê Organizador Brasileiro da Copa do Mundo Fifa 2014, é para o incentivo de trabalho em obras de infraestrutura do evento.

Manu trabalha no regime aberto e não sabe como será quando receber a liberdade definitiva

Manu trabalha no regime aberto e não sabe como
será quando receber a liberdade definitiva.

(Foto: Paulo Almeida/Divulgação Governo de PE)

Governo decide pagar empresas


Em Minas Gerais, além do programa de apoio aos ex-detentos já existente, o governo deverá começar, em 2011, a oferecer às empresas que contratarem ex-presos subvenção econômica trimestral de 2 salários mínimos a cada ex-presidiário admitido.


“Por mais que a gente queira que esse trabalhador esteja na empresa como um outro qualquer, há diferenças e marcas sociais, começando pela escolaridade, além do próprio histórico de aprisionamento. A carteira de trabalho estará com uma lacuna. Há, ainda, o atestado de antecedentes”, lembra Saulo Rodrigues de Morais, coordenador do Programa de Reintegração Social de Egressos do Sistema Prisional em Minas Gerais.

F. M., de 23 anos, conseguiu emprego com ajuda do governo. Ele trabalha há cerca de 1 mês em uma empresa do setor metalúrgico. “Estou gostando demais. Acordo às 3h todo dia e falo ‘graças a Deus’, mais um dia de trabalho”, afirma.

A sociedade sempre teve uma percepção de estigma em relação aos presos. Não queremos conviver com essas pessoas, como se elas fossem portadoras para sempre de uma marca"
Fernando Afonso Salla, pesquisador da USP

O jovem, que ainda não completou o ensino médio, faz planos para o futuro: no ano que vem, pretende concluir os anos que faltam para ingressar na faculdade de educação física. “Nada que não me impeça de fazer um curso voltado à área em que estou trabalhando no meio do caminho”, diz. O metalúrgico foi preso em maio de 2007, por roubo de automóvel, e saiu em setembro de 2008. Ele revela que viveu no crime por 5 meses e chegou a roubar mais de 60 carros. Arrependido, diz que não cometerá mais roubos e afirma que hoje trabalha para realizar seu sonho:comprar o próprio carro.

Em São Paulo, que tinha, em junho deste ano, 164,4 mil presos em penitenciárias, que são 37% do total do país, cerca de 30 mil recebem liberdade a cada ano. O decreto aprovado no estado não obriga, mas faculta empresas que vencerem licitação a contratarem até 5% de ex-detentos. Um segundo decreto já foi publicado prevendo uma lista dos setores onde será obrigatória a contratação, diz Bitencourt, coordenador do programa de reintegração social do estado.

Liberdade 'apavora'
Em PE ainda não há uma lei que reserve vagas para os ex-presos, diz Zuleide Lima de Oliveira, coordenadora da Chefia de Apoio a Egressos e Liberados (Cael) da Secretaria Executiva de Justiça e Direitos Humanos. A coordenadora afirma que, no entanto, vem fazendo um trabalho de “formiguinha” para tentar colocá-los no mercado de trabalho. Há convênios que oferecem trabalho para quem ainda está no regime aberto.

“Quando os presos terminam a pena eles não querem sair [da prisão] porque o convênio acaba. Eles ficam apavorados”, comenta Zuleide. Manu, de 29 anos, está no regime aberto e trabalha para o governo de Pernambuco. “Acredito que vou ficar aqui até terminar a pena. Depois, não sei o que vou fazer. Espero que o trabalho aqui conte como experiência para outras empresas”. Presa em 2004 por assassinato contra o ex-marido, Manu ainda tem ao menos quatro anos de pena para cumprir, a depender de seu comportamento, estima.

"Os ex-presos são os que trabalham melhor, pois querem uma oportunidades para provar que mudaram"
Roberto Júnior, de 32 anos, ex-preso

O lado dos empregadores


O medo dos detentos de ficarem livres, mas desempregados, contudo, esbarra em um outro: o dos empresários que, na maioria das vezes, não querem ter um ex-presidiário no quadro de funcionários. “A maioria das empresas têm medo”, diz Morais, coordenador do programa em Minas Gerais.

O empresário J.M. Lanza, de São Paulo, contrata ex-presidiários para fazer entregas como motoboys há mais de dez anos. O que o motiva, contudo, não são retornos financeiros, mas a vontade de dar uma oportunidade para quem quer melhorar, incentivado pela religião que segue, a evangélica. “Aqueles que querem oportunidades mesmo são até mais responsáveis do que os que nunca foram presos”, diz.

O empregador, que também pediu para não ter o nome completo divulgado, afirma que já teve problemas com alguns funcionários, que chegaram a cometer crimes durante o horário de expediente. Ele diz, porém, que os prejuízos acabam entrando dentro da margem média de problemas que costumam acontecer na empresa. “A gente se move pela ideia de dar oportunidades. Como eu vou saber se alguém quer melhorar se eu não der oportunidades.”

O professor Fernando Afonso Salla, pesquisador no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), lembra, ainda, que as empresas, em todos os momentos, têm problemas com funcionários, seja por ilegalidades cometidas dentro do trabalho, seja por questões comportamentais. "Todas as empresas têm instrumentos de lidar com esses problemas, independentemente de as pessoas terem passagem (criminal) ou não."


Ex-preso contrata ex-presos

Roberto Júnior, de 32 anos, que ficou seis anos preso por tentativa de assassinato, hoje é microempresário no Espírito Santo e dá prioridade para a contratação de ex-presos.

Júnior fez cursos de eletricista e bombeiro hidráulico quando estava preso e, ao receber liberdade, em 2007, conseguiu emprego em uma empresa privada com a intermediação da Secretaria de Estado da Justiça do Espírito Santo. Com a experiência que adquiriu nessa e em outra companhia, abriu seu próprio negócio e presta serviços de engenharia elétrica para o setor da construção. Com nível médio completo, ele pretende fazer faculdade de engenharia. “Os ex-presos são os que trabalham melhor, pois querem uma oportunidade para provar que mudaram”, diz.


Outros exemplos

Para o professor Fernando Afonso Salla, é fundamental que o estado desenvolva mecanismos tanto para incentivar empresas privadas a contratar ex-detentos como para absorvê-los, mobilizando a própria estrutura estatal. De acordo com Salla, o trabalho é muito focado nas políticas públicas por ser a fonte pela qual as pessoas adquirem os meios para a sobrevivência.

O especialista aponta, ainda, a necessidade de o estado criar apoio a quem sai da prisão, de forma a colaborar para a reinserção. “A sociedade sempre teve uma percepção de estigma em relação aos presos. Não queremos conviver com essas pessoas, como se elas fossem portadoras para sempre de uma marca”, explica.

Sempre foi um desafio fazer com que as pessoas que passam por essa experiência tenham capacidade de se reinserir na sociedade"
Fernando Afonso Salla, pesquisador da USP

O Paraná, por exemplo, possui o programa o Programa Pró-Egresso, que assiste aos ex-presos em áreas como a de direito, psicologia, serviço social, cursos e integração ao mercado de trabalho. No Rio Grande do Sul, a Fundação de Apoio ao Egresso do Sistema Penitenciário (FAESP), que é filantrópica, também dá assistência parecida, assim como acontece em São Paulo e Minas Gerais. A Fundação Santa Cabrini, do estado do Rio de Janeiro, dá assistência, entre outros estados e municípios.

A Lei de Execução Penal também prevê, se necessário, a concessão de alojamento e alimentação ao egresso, em estabelecimento adequado, pelo prazo de dois meses após a saída da prisão. O prazo poderá ser prorrogado uma vez, se comprovado o empenho do egresso na obtenção de emprego. O governo de PE deverá criar, nesses moldes, casa para atendimento de 300 ex-presos ao ano, com ajuda do Ministério da Justiça.

Para o professor, contudo, o que é feito no Brasil em termos de apoio a ex-detentos ainda é muito pouco. “Nos países desenvolvidos, as estruturas de apoio para quem sai da prisão são muito mais consistentes. No Brasil, em alguns estados, tem alguma coisa que eu diria que fica no plano do razoável.”

O professor lembra, ainda, da precariedade do sistema prisional. “Análises constatam que a prisão aprofunda as carreiras criminosas (...), acaba danificando ainda mais a condição de quem está preso. Sempre foi um desafio fazer com que as pessoas que passam por essa experiência tenham capacidade de se reinserir na sociedade.”


Fonte: G1

domingo, 12 de dezembro de 2010

Relatos de quem vive ainda sob o poder dos milicianos nas favelas do Rio


Os relatos dramáticos de quem ainda vive sob o poder de traficantes e milicianos nas favelas do Rio


Carla Rocha e Natanael Damasceno


RIO - Marcos, um jovem com pouco menos de 18 anos, foi surpreendido por três traficantes quando passava em uma viela da favela. Imediatamente começou a ser espancado. Socos, chutes, coronhadas deram início a gritos interminaveis. Até que, já caído no chão, um pisão no estômago o deixou tão silencioso quanto as poucas pessoas que testemunharam o crime.



Veja imagens da vida nos complexos da Penha e do Alemão após a ocupação


Escondida atrás da porta de sua casa, Ana Maria viu pela fresta a sessão de tortura, em plena luz do dia, que resultou na morte de Marcos. Mas nunca tinha falado sobre esta ou sobre as outras atrocidades que presenciou desde que chegou à comunidade. Ela conta que ali, como em qualquer lugar dominado por quadrilhas, quem vê algo não tem outra escolha a não ser fingir que nada aconteceu.

"Já vi os bandidos pendurarem os meninos de cabeça para baixo para ir cortando pedaços aos poucos. Já vi eles passando com corpos em carrinhos de mão. Já vi quatro deles matar um rapaz e jogarem o corpo em um carro. Depois, ouvi dizer que ele era trabalhador, mas que estava devendo. Mas não sei se é isso mesmo. Procuro não me misturar. Assisto de longe, como quem não sabe nada, pois eles são muito abusados" diz, resignada, Ana Maria.

Por este motivo, a dona de casa - assim como todos os outros personagens desta reportagem - teve o nome trocado para que sua identidade fosse protegida. Ela conta que, por sorte, nunca teve problemas com os traficantes. E que poucas vezes teve que confrontá-los - uma vez, pediu para que um deles não ficasse em sua laje, e foi atendida. Diz também que fica indignada a cada vez que um crime é cometido na porta de sua casa. O problema é que a indignação vem, mas não tem para onde ir.

"A polícia vem aqui, mas come um bom dinheiro. Uma vez viram um sargento rolando no chão atrás de pó para cheirar. Ainda assim, acho que vale a pena que isso aqui seja ocupado. Tem gente rezando todo o dia para essa pouca vergonha acabar."

Depois da retomada do Complexo do Alemão, o desejo de que uma ocupação policial venha acabar como tráfico se difundiu entre outras favelas. Vítima tanto de policiais quanto de bandidos, Joana diz, no entanto, temer pela integridade física dos moradores já que não acredita numa ação policial sem derramamento de sangue.

Corpos e sangue no portão

Vinda do interior do estado, ela se estabeleceu há anos numa fronteira entre duas facções rivais que disputam território.

"Minha vida inteira morei nessa fronteira invisível. Via muita gente morrendo, sendo massacrada, esquartejada. Minha casa foi invadida várias vezes. Via o caveirão deixar corpos no meu portão. Depois eu tinha que lavar o sangue. Nesses últimos oito, dez anos, vi muitas coisas que nunca vou apagar da minha vida" lamenta.

Um dia, Joana teve a casa violada três vezes. Numa delas, por policiais. Ela conta que, durante uma tentativa de invasão à favela, uma quadrilha com um traficante baleado se refugiou em sua casa. Depois que saíram, o bando rival entrou no imóvel em busca dos inimigos. Quando ela achou que a situação se acalmara, foi a vez de os policiais, à procura dos traficantes. Joana teve que se mudar.

"Todos eles foram violentos porque entraram a minha casa e não tinham esse direito. Fiquei sem luz, fiquei sem telefone. Fiquei sem ter espaço na minha própria casa. Eu lembro que os que invadiram primeiro ficavam cantando enquanto matavam as pessoas na minha porta. É uma atitude comum. Até os policiais, quando passam com o caveirão, gritam: "sai da rua, vagabundo; sai da rua, piranha". E riem. Então, para mim, ninguém é bonzinho. São iguais."

Milicianos invadiram casas

Nas comunidades ocupadas pela milícia, a situação não é diferente. Morador de uma favela que já foi dominada pelo tráfico, Jonas conta que os milicianos chegaram na comunidade desapropriando imóveis. Tomaram casas e instalações comunitárias, monopolizaram os serviços e instalaram o terror. Hoje, mesmo enfraquecida depois da CPI das milícias, a quadrilha se mantém explorando negócios por lá.

"O tráfico foi ruim e só levou morte e desgraça. Mas os traficantes não se envolviam com a gente e não cobravam nada. Depois, a milícia chegou cobrando por segurança, todos ficaram chocados."

Criada na Rocinha, Júlia, de 35 anos, mãe de quatro filhos, teve o primeiro contato com a morte aos 9 anos quando foi levada para ver o corpo de um traficante abandonado numa pedra. Os olhos paralisados do bandido nunca saíram de sua cabeça. A menina cresceu e absorveu os símbolos daquele mundo paralelo. Bailes funks, jovens traficantes armados sendo cobiçados pelas garotas mais bonitas do morro e viciados consumindo coca e heroína na sua frente.

"Hoje mesmo vi uma mulher enlouquecida pedindo um pó de dez. Nunca me acostumei com esta feira. Tudo é absurdamente natural. É como se ela tivesse comprando uma fruta. Tem pó de cinco, de dez e de quinze. Escuto isso o dia inteiro" conta ela, que tem a conta de telefone entre os itens mais caros de suas despesas mensais porque liga várias vezes por dia para saber onde os filhos estão.

É difícil passar incólume ao dia a dia da Rocinha. Naquela atmosfera, Júlia acabou, aos 15 anos, namorando um traficante. Lembra que ele estava sempre de fuzil cruzado no peito quando se encontravam às escondidas. Em casa, havia a pressão familiar para que ela seguisse um outro caminho. Embora se recorde que, desde os 5 anos, via uma tia cumprindo um estranho ritual de derreter com uma vela algo que parecia uma pedra sobre um pires. Depois, pedia para a pequena Júlia sair da sala porque ia fazer uma coisa feia.

"O vício está ali na sua porta, dentro da sua casa. Eu nunca fumei nem maconha, mas é um verdadeiro milagre. Meu irmão é viciado" conta Júlia, que, graças ao destino, se separou do bandido por quem se apaixonou depois que ele "vacilou" e foi expulso da favela.

Um dos momentos mais aterrorizantes, segundo ela, foi quando o traficante Dudu invadiu a Rocinha para tomá-la do então chefe do local, conhecido como Lulu, em abril de 2004. Foram dias de burburinho no morro - "todo mundo fica sabendo quando alguma coisa está para acontecer, os próprios bandidos informam, tinha um toque de recolher a partir das dez da noite" - até que uma explosão anunciou o inevitável.

"Era véspera de Sexta-Feira Santa, me lembro como se fosse ontem. Vários bandidos desembarcaram de um caminhão baú da Caixa. Por volta de meia-noite, escutei uma explosão de uma bomba. Foi um estrondo diabólico, parecia que o mundo ia acabar. Depois houve um forte tiroteio, com traçantes, que durou mais de meia hora. Empurrei meus filhos para debaixo da cama - eles não queriam ficar, choravam - e fiquei deitada no corredor. Mas, apesar de tudo, ainda sonho que a Rocinha vai mudar, que vou poder levar meus amigos para conhecer minha casa. "

Com um sentimento oposto, o administrador Osvaldo, de 35 anos, nascido na favela da Maré, sempre quis sair de lá e nunca se viu como parte do lugar. Talvez por defesa, criou um escudo em que, desde a infância, teve poucos amigos. Os anos se passaram, ele fez curso superior, mas a mudança tão desejada ainda não se realizou:

"Passei a vida evitando fazer amizade. Via que algumas crianças eram filhas de bandidos. Não queria me misturar. Imagina uma criança já tendo esta preocupação de selecionar com quem ia se relacionar. Mas fiz isso. Não queria ser mais uma maçã podre no cesto. É complicado. Até hoje vejo a minha casa como um dormitório."

Ao ser perguntado que situação mais o agrediu nestes anos, ele não fala em torturas ou mortes:

"A cumplicidade dos moradores é o que mais me assusta. É você levar uma briga de vizinhos para ser resolvida na boca. Eu acho que isso legitima o bandido. E a violência é a mesma usada pelo tráfico em outros lugares. Os inimigos, por exemplo, são atirados num rio para serem devorados por jacarés."

Ele menciona ainda o desrespeito e a exploração econômica dos moradores.

"O gás é mais caro, o garrafão de água de 20 litros pode custar até R$ 8 quando no asfalto custa R$ 4. É a sobretaxa. Os telefones estão constantemente grampeados, costumamos evitá-los" fala, acrescentando que foram muitas as vezes em que passou semanas fora de casa durante as guerras do tráfico:

"Uma vez, os confrontos estouraram de repente e precisei ficar hospedado na casa da minha chefe."

Vítima de bala perdida

A afronta à cidadania chegou a um ponto que foi levada ao Tribunal de Justiça. Depois de ter o marido morto por uma bala perdida durante um tiroteio, Suzana, de 25 anos, foi surpreendida ao acionar o seguro de vida que o estofador - com quem havia se casado há apenas dois anos - deixara para ela. A seguradora insinuou que ele poderia fazer parte do bando e depois que assumiu o risco de morrer ao passar pelo local, onde havia ido visitar uma irmã.

"Perdi um ente querido de forma brutal e ainda tenho que brigar na Justiça por um direito que é meu. É muito constrangedor. O sentimento do brasileiro é de impotência."

O advogado dela, Paulo José Silva de Oliveira, teve que tomar uma medida prosaica: anexou pelo menos dez matérias de vítimas de bala perdida no Rio.

O caso será decidido no Superior Tribunal de Justiça porque a seguradora recorreu.

Conheça o Favela Livre , um blog ligado nas comunidades.


Fonte O Globonline

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Associação de Juízes para a Democracia. Juíza: operação no Alemão é "verdadeira enganação"


Juíza: operação no Alemão é "verdadeira enganação"


"Uma verdadeira enganação". Esta foi a definição encontrada pela secretária do Conselho Executivo da Associação de Juízes para a Democracia (AJD), Kenarik Boujikian Felippe, para a resposta das forças de segurança à onda de violência no Rio de Janeiro. A magistrada, que é titular da 16ª Vara Criminal de São Paulo, considera equivocada a maneira como o tráfico de drogas está sendo combatido. Para ela, só a base da pirâmide está sendo atingida.

"O que se vê é a prisão dos pequenos. Para se ter um efeito real, é preciso combater os que estão lá em cima. Os de baixo são substituíveis", afirma, destacando que "a ponta de cima" é o empresário que ganha muito dinheiro com o tráfico. "Esse é intocável".

A juíza condena ainda os casos de violação de direitos humanos que começam a vir à tona após as ocupações, sobretudo, do complexo do Alemão, e o tratamento que parte da imprensa tem dado às operações policiais. Os dois assuntos foram alvos de críticas da AJD, que, no início da semana, divulgou nota repudiando "a naturalização da violência ilegítima como forma de contenção ou extermínio da população indesejada e também com a abordagem dada aos acontecimentos por parcela dos meios de comunicação de massa que, por vezes, desconsidera a complexidade do problema social, como também se mostra distanciada dos valores próprios de uma ordem legal-constitucional".

- O papel da imprensa é trazer dados, informações para que as pessoas reflitam. Se você não mostra os fatos sob o ângulo da violação - que, infelizmente, está acontecendo -, se você vende uma imagem de que aquilo é uma solução, faz um desserviço.

Confira a entrevista.

Por que a AJD decidiu se manifestar?

Kenarik Boujikian Felippe: Em razão de seus propósitos institucionais. Só tem sentido a associação se manifestar nesse contexto. Entre as finalidades da associação, uma organização de juízes criada em 1991, está a questão dos valores do Estado Democrático de Direito. Foi dentro dessa perspectiva que a gente resolveu se manifestar. Em razão ainda de o problema não ser um fato novo. Há alguns anos, o Exército ocupou os morros no Rio de Janeiro. Naquela época, a associação se manifestou, tendo em vista que havia um desvirtuamento da função do Exército.

Hoje, há uma nova coloração, outros envolvidos, alguns fatos se alteraram. A associação não pode ver violações de direitos ocorrendo - e que isso possa ser encarado de forma positiva, como a imprensa tem mostrado -, e não fazer nada.

Na verdade, é necessário que o Estado cumpra seus papéis. É necessário que ele garanta os direitos fundamentais, e a segurança pública é um direito fundamental. Só que isso deve ser garantido sem que se cometam violações.

Na nota, a associação critica a atuação de parte da imprensa. O argumento é que estaria omitindo a violência policial.

Estão omitindo e não estão trazendo uma reflexão sobre os fatos. O papel da imprensa é trazer dados, informações para que as pessoas reflitam. Se você não mostra os fatos sob o ângulo da violação - que, infelizmente, está acontecendo -, se você vende uma imagem de que aquilo é uma solução, faz um desserviço.

A que a senhora se refere exatamente?

Em síntese, o que a imprensa está noticiando é que isso (Estado policial) vai resolver o grande problema que existe no Rio. E é uma situação mais complexa, que não vai se solucionar com a entrada da polícia, do Exército, da Aeronáutica e o que mais seja. Tem que haver um projeto de país, de comunidade, de estado, de município e o que existe é uma verdadeira enganação. E a imprensa está corroborando para isso, ao invés de ajudar a melhorar a situação, ajudar a resolver efetivamente o problema grave que existe no Rio e que tem uma população que está submetida à violência do Estado, submetida à violência das milícias e de pessoas envolvidas no mundo da criminalidade... A população é quem sofre e vai continuar sofrendo e o problema não vai se resolver.

Ou o Estado "ocupa" aquele território, e ocupar não significa colocar um imóvel onde vão ficar policiais. Ocupar no que diz respeito à função própria do Estado: colocar vários postos de saúde, urbanizar, cuidar do saneamento básico. Isso é uma coisa que leva tempo.

Fora isso, é preciso combater a criminalidade, mas de forma séria. O que se vê é a prisão dos pequenos. Para se ter um efeito real, é preciso combater os que estão lá em cima. Os de baixo são substituíveis.

Quando a senhora fala dos "que estão em cima" quer dizer aqueles que não vivem nas favelas, mas nas áreas nobres?

Que não vivem nos morros, mas ganham muito dinheiro com o tráfico de drogas. E onde está esse dinheiro? O tráfico é um mercado poderoso, mas não para aqueles que estão ali embaixo. São empregadinhos. E digo que são descartáveis. Hoje, são presos 100. Amanhã, entram mais 100. A polícia tem que agir, investigando de onde vem, para onde vai o dinheiro, qual é a fonte.

Então, na avaliação da senhora, o combate ao tráfico no Rio está sendo feito parcialmente, apenas de um lado?

Do lado mais baixo da pirâmide que envolve o tráfico. O que estão "lá embaixo" são o que chamamos de aviões, mulas, pequenos vendedores. A ponta de cima é o empresário que ganha muito dinheiro com isso. Esse é intocável. A imprensa não usa uma linha para sequer explicar e vende a ilusão para a população de que o problema está sendo resolvido.

Em relação às últimas operações policiais realizadas no Rio de Janeiro, quais os erros e acertos na avaliação da senhora?

Acertos? Sinceramente, não consigo enxergar os acertos. Não consigo enxergar que a violação de algum direito fundamental possa ser acerto. Eles partem de que pressuposto? Que os policiais podem invadir as casas. Meu Deus, não é possível! Ou respeitamos a Constituição ou não.

Na nota, a associação foi bem dura, ressaltando que, ao violar a ordem constitucional, o Estado perde a superioridade ética que o distingue do criminoso. Fica igualmente à margem.

Todos nós somos atingidos por isso. Quando abro uma exceção de violação de um direito, não estou violando só para aquele proprietário da casa na favela X, Y. Na verdade, a violação é de todos nós. Admito a violação, só que não podemos ser ingênuos de imaginar que esse Estado vai atingir outra população. A violação direta é só para um tipo de população, a mais pobre, a mais vulnerável. Vai me dizer que eles vão fazer alguma coisa do gênero em algum outro local? Não vão.

Vamos falar bem claramente: vão fazer uma busca e apreensão... Nem busca e apreensão. Vão simplesmente entrar na minha casa, derrubar a porta para ver se há alguma arma ou droga? Não vão fazer isso. Eu moro nos Jardins, aqui, em São Paulo. É seletivo. Então, "só pode ser o pobre o grande inimigo do Brasil", e as coisas não são assim. O que me incomoda muito é que a imprensa reforça uma ideia que não tem o mínimo de veracidade, o mínimo de racionalidade.

O que exatamente?

Toda essa política de que vão entrar lá (no complexo do Alemão) e resolver o problema, sendo que ele continua. E não é só no complexo do Alemão. Isso não é algo que se resolve a curto prazo. Uma investigação séria demanda um certo tempo, mas é necessário começar. Quem está ganhando tanto dinheiro com o tráfico?

Tem que haver essa vertente de polícia, de criminalidade. Acho que tem que haver mesmo, mas não nesse patamar que estão colocando, que é absurdamente ridículo. O problema não vai terminar nem diminuir. Estão vendendo uma imagem de que estão resolvendo o problema e é mentiroso isso.

Qual seria o caminho mais apropriado?

São dois caminhos básicos. De um lado, o Estado ocupa o território no sentido de fazer as políticas que lhe competem dentro daquela comunidade. Tem que ter uma cultura a ser criada e se cria essa cultura através da garantia dos direitos. Educação, saúde... Quando digo educação, refiro-me a um projeto para aqueles jovens. Qual expectativa que eles podem ter de trabalho? É preciso investir nisso. É uma algo a longo prazo, mas é preciso começar já. Estamos atrasados.

Ao mesmo tempo é preciso ter uma política referente à área criminal que seja efetiva. Hoje, eles podem prender mil. São pessoas consideradas socialmente descartáveis. Amanhã, haverá outros mil para fazer a mesma coisa. Agora, se você "quebrar" quem tem o dinheiro, quem está lucrando com isso, aí se pode haver outra perspectiva. O que me incomoda é que a política adotada não é séria e tem a seguinte caracterísitica: viola os direitos da Constituição.

Como a AJD está acompanhando as denúncias de violação aos direitos humanos nas favelas ocupadas pelas forças policiais?

Agora é que elas estão começando a aparecer. Na verdade, a imprensa ficou vários dias jogando confete para as ilegalidades. Lá no Rio, há várias organizações que estão começando a receber uma série de informações. Não dá para desconsiderar toda essa realidade. É preciso que se dê andamento. Até no Judiciário mesmo.

Fonte JB por Cláudia Barros

domingo, 5 de dezembro de 2010

A milícia é pior que os gangues. Não são negros de bermuda, estão entre nós. Elegem deputados, vereadores.

"Esta guerra vai ter muitas batalhas" mas a mais importante é a "invasão da cidadania"



Por Alexandra Lucas Coelho, no Rio de Janeiro


Zuenir Ventura é um cavalheiro. Difícil imaginá-lo a perder a cabeça. Trata os amigos das favelas e da Zona Sul da mesma forma: "meu querido", "minha querida". Ao fim de meia hora já quer resolver os nossos problemas. Tem 1,80 de altura, vai fazer 80 anos, não passa propriamente despercebido.

E foi este homem que há 16 anos se enfiou na favela Vigário Geral, Zona Norte do Rio de Janeiro, depois de um massacre em que morreram 21 pessoas. Queria conhecer o mundo dos morros, escrever sobre as raízes da violência, e acabou por chamar a esse livro
Cidade Partida.

A expressão ficou um símbolo do Rio. De um lado, a vida-boa cá em baixo (Ipanema, Leblon, Copacabana). Do outro, a vida das favelas lá em cima (da Rocinha à Zona Norte).

Separação, para não dizer
apartheid, porque o brasileiro nunca deixa de ser cordial.

Agora, uma semana depois de o Estado ter ocupado o Complexo do Alemão, quebrando uma fronteira de décadas, Zuenir acha que "pode ser um meio, mas não será um fim", porque "esta guerra vai ter muitas batalhas", e as decisivas não serão militares.

Acordou como todas as manhãs às seis, mas atrasou a caminhada matinal para as oito, hora a que recebe o PÚBLICO no seu apartamento de Ipanema. Tem estantes no patamar. O outro morador do piso é o filho. Lá em baixo há grades e porteiro, como em boa parte da Zona Sul. De qualquer forma, Zuenir pensa que se alguém roubar os livros é porque quer ler, e então está bem.

Esplendor no asfalto

Descemos: Ipanema a uma quadra do mar. Vida-boa, como não? Por exemplo, este céu depois da chuva torrencial de ontem, este mar transparente, estas árvores. O asfalto no Rio parece uma brincadeira ao pé da natureza. A natureza domina sempre. Há dias em que mete medo. E há dias como hoje, um esplendor.

Atravessamos a marginal para o calçadão rente à praia. Cocos frescos, gente a correr, rapazes a jogar vólei, mergulhos.

Ao fundo, na ponta direita, está a favela do Vidigal, que do outro lado da encosta se prolonga na Rocinha. Imaginem a vista: é como um imenso miradouro sobre Ipanema.

E na ponta esquerda, o morrinho do Arpoador onde ninguém mora, dá só para sentar na pedra e ver o sol a pôr-se, lá na favela do Vidigal.

"O Vidigal está tranquilo, mas se comunica com a Rocinha, e há uma certa tensão", diz Zuenir, caminhando na direcção do Arpoador, mar à sua direita. "Eles estão com medo que uma facção do Complexo do Alemão tenha ido para a Rocinha."

Embora o Alemão fosse domínio Comando Vermelho e a Rocinha seja domínio Amigos dos Amigos. Nomes de gangues rivais.

"Reparou que o
Globo nunca lhes chama Comando Vermelho ou Amigos dos Amigos? Porque acha que dar nome institucionaliza essas quadrilhas." E Zuenir não discorda.

O sol já queima. Ainda não são nove da manhã.

Em 2007, o Estado também invadiu o Alemão, coração do tráfico no Rio. "E esta parte da cidade, o asfalto, comemorou. E em 2008 teve a invasão da Vila Cruzeiro, o BOPE [Batalhão de Operações Policiais Especiais] botou lá a bandeira e tudo. E depois tudo voltou ao que era."

Mas agora tudo indica que não será assim. "A diferença é ocupação em vez de invasão. Antes, era entrar, matar e sair. Agora é entrar e ficar por tempo indeterminado. Isso altera muito. O Beltrame [secretário de Segurança do governo do Rio] e o Sérgio Cabral [governador] aprenderam com a experiência desastrada da estratégia de invasão, que a gente aqui chama de "enxugar gelo". Você ia, matava meia-dúzia, o pessoal aqui de baixo dizia "Que óptimo, é isso mesmo, tem de matar esses caras", sem perceber que isso não tinha eficácia nenhuma."

Castelo na areia

A batalha decisiva, diz Zuenir, é "invasão de cidadania". Sem isso, tudo será como este castelo erguido no calçadão, diante do qual paramos, uma elaborada construção de areia com cúpulas orientais, nascida de uma qualquer ilusão das Mil e Uma Noites. Pode desfazer-se em segundos.

O poder do tráfico instala-se num vácuo, e é esse vácuo que é preciso preencher. No fim de 2008, o governo do Rio avançou com as UPP, Unidades de Polícia Pacificadora, que chegam aos morros para ficar. Já há 13, abrangendo 200 mil pessoas. O resultado prático é uma tomada gradual de território ao tráfico.

"As UPP são o começo da reunificação da cidade", resume Zuenir, acenando com a cabeça para cumprimentar conhecidos no calçadão. "É um primeiro passo. Importante, mas um primeiro passo. A seguir tem de haver invasão de cidadania, hospitais, escolas. Não basta polícia. Foi fundamental reivindicar o território, sem isso nada podia ser feito. Acho que essa nova política de ocupação segue um caminho certo. É positivo que essa mudança tenha ocorrido na cabeça do governador e do secretário de Segurança. Mas é preciso reflectir que não se trata de um fim. Infelizmente esta ainda é uma cidade partida. Falta muito. Foram décadas."

Tudo começa, na verdade, há mais de 100 anos. "Logo depois da abolição da escravatura [1888]. Os escravos foram libertados sem as mínimas condições de trabalho, de alojamento. Todo esse processo foi de exclusão social. Como é que surgem as favelas? A da Providência, que foi a primeira, no Centro, surge quando botaram lá os soldados retornados da Guerra de Canudos [1896-97, na Baía], os mais pobres. Aí, quando fizeram o plano de urbanização do Rio era para ser uma nova Paris. O Centro tinha população amontoada em "cortiços" [aglomerado de habitação colectiva] e a nova urbanização empurrou a gente para a favela, para o morro. "Vai aí para cima." Não havia noção de que a vista mais bonita era aí. Deu-se aos pobres não só a melhor vista como a melhor posição de tiro."

Agora, a Rocinha

Fim da baía. A esta luz, a praia do Arpoador parece um postal. Nem sempre a água está limpa, mas hoje vê-se o fundo, manso. Zuenir trepa as grandes lajes douradas. "Vamos sentar aqui na sombra?" À sombra de uma pedra, com a favela do Vidigal como horizonte.

Porque é que as centenas de traficantes do Alemão não resistiram? Foi devido à mediação de José Júnior, o líder da ONG AfroReggae, que fez a ponte entre a polícia e o tráfico? Não, explica Zuenir. "Ele é um grande mediador de conflitos, mas se não houve violência não foi por causa da embaixada dele. Foi a constatação do poderio do invasor, os tanques da Marinha. Os traficantes fugiram quando perceberam que havia blindados."

Imagem simbólica, captada por um helicóptero do
Globo, na Vila Cruzeiro, a favela ocupada antes do Alemão: "Cerca de 200 traficantes fugindo como se fossem formigas. Foram para o Alemão. E aí teve a invasão do Alemão com tanques que nunca tinham sido usados. Aqueles obstáculos [colocados pelos traficantes] sempre tinham impedido o avanço da polícia. Eles têm umas barras com picos que furam os pneus. E os tanques não têm pneus."

Mas a maior parte dos traficantes escapou. "Uma das poucas falhas da operação foi não prever essa fuga. Se eles tivessem um mapa do local teriam visto que ali tem um sistema de esgoto, um negócio de dois quilómetros que sai longe do Alemão."

Agora, todos esses foragidos estarão dispersos.

E enquanto o Estado se instala no Alemão, com as suas carrinhas do governo, da assistência social, de formação para a Copa do Mundo e as Olimpíadas, a pergunta é: e a Rocinha, vai ser quando?

"É a grande meta. Tem um valor simbólico muito grande. É a favela mais charmosa. O Alemão é lá na Zona Norte, mas a Rocinha é aqui, está dentro da Zona Sul, é um lugar de turismo. Rocinha e Vidigal, as duas. Já se comparou o Alemão à invasão da Normandia. Foi importante porque era o sistema nervoso central do tráfico. Mas a batalha da Rocinha vai ser difícil e complicada. Não é por acaso que eles não fizeram UPP na Rocinha ainda, e só entraram agora no Alemão por necessidade, quando começaram aqueles incêndios de carros, aquelas bombas [na Zona Sul] e a população entrou em pânico. Foi uma operação improvisada, os traficantes foram tomados de surpresa."

Parece claro que os arrastões, incêndios e explosivos foram retaliações dos traficantes por causa dos avanços da UPP. Mas porque não aconteceram na campanha eleitoral? "Houve a suspeita de que teria havido negociações [entre o governo e os traficantes] para esperar até depois das eleições. Mas não faz sentido."

Zuenir crê que os traficantes aguardaram o resultado da eleição na esperança de que o governo mudasse, e com ele a política das UPP. "E quando viram que ia continuar tudo, o mesmo secretário de Segurança, saíram em represália: "Se continuam com as UPP vamos incendiar a cidade." Ficou claro que era um protesto contra as UPP, por terem atingido o tráfico de forma muito eficaz."

Funk geral

Há uma discussão que o Brasil nem começou: a legalização das drogas.

Quem é que a Rocinha abastece? A Zona Sul. "Tem muitos jovens que são atraídos pelas drogas e pelos bailes
funk."

O
funk tornou-se um fenómeno, diz Zuenir. "O meu guia na noite, quando fiz A Cidade Partida, chamava-se Marlboro. Levou-me aos primeiros bailes funk, que nessa altura eram uma coisa maldita. Os meus amigos diziam: "Você tá doido!" E o Marlboro dizia: "Olha Zuenir, o funk vai tomar conta da cidade." E hoje a classe média dança o funk."

Muito associado ao tráfico.

Mas quase ninguém quer discutir legalização. "A população tem horror disso. Reage como se essa discussão fosse o começo da legalização. Só uma elite quer discutir."

Que pensa Zuenir? "A única certeza que tenho é que a política repressiva não dá. Hoje as drogas são um instrumento de morte muito por causa da repressão. Agora, a liberalização é uma coisa globalizada. Não dá para fazer isso aqui e não fazer nos Estados Unidos."

Para Zuenir, trata-se de uma guerra pós-moderna, de mercado. "Os traficantes vendem o que as pessoas querem comprar." A vantagem do Brasil, diz, é não haver cartéis, redes organizadas com infiltração nas instituições, como na Colômbia ou no México.

Mas o Brasil tem um problema: as milícias formadas por ex-polícias, retratadas nos filmes
Tropa de Elite (I e II), fenómenos de audiência. "A milícia é pior que os gangues. Não são negros de bermuda, estão entre nós. Elegem deputados, vereadores. É uma resistência de classe contra os traficantes. E nessa história toda [ocupação do Alemão], as milícias estão-se divertindo."


Fonte: O Público


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