terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Que venha 2014!

Que venha 2014!

E,

Que nossos amores sejam ainda mais amorosos e que longe passem do desamor.
Que nossos sonhos se materializem com a força de nossa luta ou de nossa fé, mas que se realizem;
Que a humanidade tenha mais humanidade que humanos, e a justiça frequente mais as ruas que os salões.
Que o mundo tenha paz, que não haja fome nem guerras, que os orçamentos militares sejam contingenciados para a demanda de alimento para os homens de boa vontade, e que sejamos todos de boa vontade.
Que os sorrisos renasçam como as flores que enfeitam as manhãs de domingo, trazendo em cada um uma mensagem de gratidão à Vida. Que todos amemos a Vida.
Que não exista órfão que não encontre pais, que não existam velhos pilhados pela solidão, que não habite em canto nenhum da terra um cão abandonado, um animal com fome ou explorado, e que todos eles tenham a liberdade do vôo do condor, mesmo que seja amputado.
Que sejamos solidários uns com os outros, que a intolerância seja alijada da terra, levando, junto com ela, para o Hades mais profundo, o preconceito e o racismo.
Que a Política faça política com ética, que a Justiça semeie justiça sem política, e que os homens públicos só atuem com ética.
Que possam ser construídas mais escolas do que prisões, com cada vez menos prisões e mais justiça social.
Que possamos andar pelas ruas de nossas cidades, sem medo, de noite ou de dia, no sol ou na chuva, e que a natureza conspire em nosso favor eliminando as tragédias.
E que a única tragédia seja não ter vivido um grande amor.
Feliz Ano Novo para todos!

(Paulo da Vida Athos)

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Ponte Ditador Costa e Silva

O Congresso Nacional, aprovou quinta-feira, 21/11, o Projeto de Resolução 4/2013, que anula a sessão de 1964 na qual foi declarada vaga a Presidência da República, então ocupada por João Goulart (1919-1976). A sessão anulada, foi presidida pelo presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, tendo ocorrido "na madrugada de 1° para 2 de abril, quando Jango se encontrava no Rio Grande do Sul, e abriu caminho para a instalação do regime militar, que durou até 1985". 

Segundo os autores do projeto, os senadores Simon e Randolfe Rodrigues "a declaração de vacância da Presidência foi inconstitucional, porque a perda do cargo só se daria em caso de viagem internacional sem autorização do Congresso, e o presidente João Goulart se encontrava em local conhecido e dentro do país".

Quando findar esse processo legislativo, parte da história estará sendo retificada em nome da verdade.  Importante frisar que todos os presidentes militares que sucederam ao cargo após a sessão anulada, deverão perder esse título, por vício na origem.  

E, nos livros de História que nossa crianças lerão nas escolas daqui para frente, cada um  daqueles "presidentes" deverá passar a ostentar o verdadeiro título que lhe cabe na história: ditador!

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Genoíno: Se eu morrer aqui, o povo livre saberá apontar os meus algozes"

Miruna Genoino: “Peço que a sociedade se informe sobre meu pai”


No começo da tarde de domingo, fui procurado por amigos da família de José Genoino. Pediram-me ajuda para divulgar um drama humanitário que vai se formando por ação da prisão intempestiva dos réus do julgamento do mensalão.
A família do ex-presidente do PT teme por sua vida e, conforme matéria do jornalista Paulo Henrique Amorim em seu blog, um laudo médico apoia tal temor.
De posse dos telefones de Rioko e Miruna – respectivamente, esposa e filha de Genoino – escolho a filha, julgando que estaria, talvez, menos abalada do que a mãe. Ledo engano. Estava muito abalada, mas, assim mesmo, falou sobre a saúde do pai e mandou um recado à sociedade.
Miruna conversou comigo aos prantos, arrastando-me para o seu estado de espírito, o que me fez terminar a entrevista igualmente abalado. Mas falou muito bem. A professora paulista de 32 anos é uma moça de mente ágil e, apesar da emoção, conseguiu exprimir com clareza do que seu pai, sua família e seus amigos mais precisam neste momento.
Segue, abaixo, a transcrição da entrevista com Miruna Genoino.
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Blog da Cidadania – A imprensa está repercutindo o estado de saúde do seu pai, de que seria delicado e ele não estaria sendo mantido em boas condições, o que poderia gerar risco para a saúde dele. O que você pode dizer sobre isso?
Miruna Genoino – No dia 24 de julho, meu pai contraiu a doença mais grave da cardiologia, uma dissecção da aorta, e teve que sofrer uma cirurgia de 8 horas, da qual tinha 10% de chance de sobreviver, mas ele sobreviveu porque é um guerreiro. Em seguida, porém, ele sofreu um micro AVC.
Meu pai está tomando cinco medicamentos diferentes em dois horários do dia. Até então, ele não tinha entrado em nenhum avião. O voo o fez passar mal, talvez a pressão da cabine.  A médica que o acompanha nos informou que alguém que passou por tudo isso não poderia estar sendo submetido a tal pressão. Meu pai deveria ser hospitalizado.
Ele viajou ontem de manhã a Brasília e às duas horas da manhã deste domingo ainda não estava acomodado.
Estamos com uma grande preocupação com a saúde dele; é a nossa maior preocupação, agora. A nossa luta é para provar a inocência do meu pai, mas, neste momento, a grande preocupação é com a saúde dele.
Blog da Cidadania – Como está o emocional da sua família?
Miruna Genoino – A gente está num momento muito, muito difícil. O meu pai, antes de sair de casa para ser preso, nos disse que já tinha ficado confinado muito tempo em cela forte [durante a ditadura] e que estava preparado para isso.
Ele tem dois netos, os meus filhos, e eles estão muito assustados…
Blog da Cidadania – As crianças estão com vocês aí em Brasília?
Miruna Genoino – Eles ficaram em São Paulo.
Mas ele ter sido transferido para Brasília ainda nos causa um transtorno emocional ainda maior, porque a gente tem que ficar longe das crianças…
[Miruna chora]
É muito complicado o nosso estado emocional…
Blog da Cidadania – Miruna, você está abalada com tudo isso e, assim, não gostaria de prolongar esta entrevista. Mas como sabemos que você, com suas declarações, está ajudando a que as pessoas entendam que há seres humanos por trás de toda essa história, concluo perguntando o que a família de José Genoino tem a dizer à sociedade.
Miruna Genoino – Pedimos que a sociedade se informe. Qualquer pessoa que se informar de verdade, que não assumir o discurso da Rede Globo, do jornal Folha de São Paulo, da revista Veja, de todos os grandes meios, ela vai saber que a única coisa que meu pai fez nesta vida foi colocar acima de tudo o ideal dele por justiça social…
[Miruna volta a chorar]
Ele saiu do sertão do Ceará para tentar melhorar a vida das pessoas. E a vida inteira ele se sacrificou em todos os sentidos porque essa sempre foi a única luta dele. Então, se as pessoas se informarem todo mundo vai saber o homem que ele é…
[Chora de novo]
Eu só peço isso….
[O pranto aumenta]
Que não assumam…  O discurso… Dessa mídia… Que procurem saber a verdade, ouvir o outro lado, o que meu pai tem a dizer…
(…)
—–
Percebi, nesse ponto da conversa, que só me cabia deixar a família com sua dor e, em vez de continuar chorando do lado de cá enquanto essa menina da idade da minha filha maior chorava do lado de lá, vir escrever o clamor emocionado dessa família, que pode perder aquele que tanto ama.
Concluo, pois, exortando as autoridades judiciárias a que respeitem o direito, apenas o direito de Genoino. Não pedimos, os parentes, amigos e até os admiradores dele que tenha regalias que ultrapassem os limites da lei, mas que não seja retaliado. Ele tem direito de receber cuidados médicos como qualquer cidadão privado de liberdade.
Genoino deveria estar num hospital. Levem-no para lá. Quem lhe nega esse direito a um tratamento digno responderá pelo que vier a lhe acontecer. Essa é a promessa de muitos que não se deixaram enganar pelos inimigos dele e que estarão muito atentos a cada minuto da vida desse homem, a partir de agora.

Fonte: Blog da Cidadania

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

De crianças, navegantes e mar

"Bom dia, venci!" Esse é o brado que sinto vontade de dar nesse momento, mas o que é vitória e o que é derrota no campo do tempo e da vida, se nascemos tendo no corpo escrito um endereço certo, chão?

No que diz respeito a vida em si, quando é ela que está em jogo, o "máximo" que temos são vitórias em batalhas temporárias nas quais recuperamos um período ou prorrogamos o tempo que nos seria arrebatado. Parece pouco, mas não é; indague ao moribundo ou ao sentenciado a morte.

O que tento dizer Dostoiévski deixou muito claro em sua obra "Recordação da Casa dos Mortos", quando relata sua condenação a morte por divulgar idéias revolucionárias em seus debates e o exato momento da execução da sentença, com o pelotão de fuzilamento em forma, no instante em que o comandante lhe dá os cinco minutos que pedira para refletir. Logo depois a sentença seria comutada, era uma farsa que ele desconhecia, e seria enviado para a Sibéria.

Naquela hora em que soube que não seria fuzilado, de que não morreria - pelo menos não naquele momento - se sentiu inebriado, já que, minutos antes, odiara ter perdido tanto tempo tentando modificar as coisas ao invés de viver; também se sentiu inebriado, provavelmente, por não imaginar o inferno que viveria na prisão siberiana onde passaria seus próximos quatro anos.

No entanto, Dostoiévski tinha razão por se sentir inebriado. Ninguém vence o tempo e a morte e o máximo que conseguimos entre um momento e outro do embarcar e desembarcar na estação da Vida, são as vitórias em pequenas ou grandes batalhas, os tempos de felicidade, os amores e esperanças vividas, as chegadas e despedidas, a alegria e a coragem com que nos lançamos ao mar, e o que aprendemos e vamos transmitindo ao longo dessa viagem.

Alguns preferem encontrar um porto nesse mar, outros preferem ter às mãos sua própria âncora para não dependerem do cais. Não há erro na escolha, apenas opção. Mas tanto uns quanto outros conhecem a máxima do poeta: -"Navegar é preciso!"

Para navegar, não se pode temer as tempestades nem os monstros marinhos e o velho navegante sabia disso. Mas se o terror do navegante são as tempestades, sua maior alegria é sentir os raios do sol no corpo após cada uma delas.

É assim, sempre foi assim e continuará sendo assim na vida de cada um de nós. Afinal, o que é que nós faz chorar hoje senão aquilo que nos fazia sorrir ontem, e o que nós faz sorrir hoje senão aquilo que nos tornará tristes amanhã? O nascimento e a morte, o casamento e a separação, provam isso. Mas não é nem em um nem em outro momento que podemos viver nossas maiores alegrias nem nossas tristezas mais profundas. Só existe um tempo possível, que é o agora, o hoje, o já. Daí a importância de vivermos bem cada instante presente.

Muita gente, eu mesmo muitas vezes, esquece de dizer "te amo" para as pessoas amadas, deixando isso "para depois"; é curioso, pois não temos qualquer certeza quanto a esse "depois"... É sempre melhor dizer logo, na hora, e de preferência sempre; até porque o sempre é tão incerto e volátil quanto o nunca.

Como navegante me sinto um velho marujo que o sal e o sol desenharam a face e a alma. O navegante sente medo, não é um intimorato como pensam alguns: apenas tem a coragem um pouquinho maior que o medo.

Mas esse velho marujo tem a alma canina, tem alma criança, que esquece fácil as coisas ruins vividas e se surpreende sempre com cada amanhecer.

Hoje é uma nova manhã em minha vida. Acabo de vencer mais uma batalha.

Nunca vencerei a guerra. Mas lutarei todas as batalhas e viverei todos os momentos da Vida.

Bom dia a todos!

Rio de Janeiro, 14 de novembro de 2013.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Torcer pelo Botafogo

Torcer pelo Botafogo é ser xiita, fundamentalista e apaixonado. É paixão que não morre. Não apenas as vitórias, ou os títulos conquistados (esse ano já ganhamos o Campeonato Carioca), mas até as derrotas fortalecem nosso amor pelo alvinegro de General Severiano.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Discurso de Luiz Rufatto na Feira de Frankfurt


"Nascemos sob a égide do genocídio. Dos quatro milhões de índios que existiam em 1500, restam hoje cerca de 900 mil", disse Luiz Rufatto em seu discurso na Feira de Frankfurt, que fez Ziraldo zurrar...


Ruffato: 

"O que significa ser escritor num país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo capitalismo selvagem definitivamente não é uma metáfora?

Para mim, escrever é compromisso. Não há como renunciar ao fato de habitar os limiares do século XXI, de escrever em português, de viver em um território chamado Brasil. Fala-se em globalização, mas as fronteiras caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas. 

Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à tentativa autoritária de aplainar as diferenças. O maior dilema do ser humano em todos os tempos tem sido exatamente esse, o de lidar com a dicotomia eu-outro. Porque, embora a afirmação de nossa subjetividade se verifique através do reconhecimento do outro – é a alteridade que nos confere o sentido de existir –, o outro é também aquele que pode nos aniquilar… E se a Humanidade se edifica neste movimento pendular entre agregação e dispersão, a história do Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do outro, por meio da violência e da indiferença. 

Nascemos sob a égide do genocídio. Dos quatro milhões de índios que existiam em 1500, restam hoje cerca de 900 mil, parte deles vivendo em condições miseráveis em assentamentos de beira de estrada ou até mesmo em favelas nas grandes cidades. Avoca-se sempre, como signo da tolerância nacional, a chamada democracia racial brasileira, mito corrente de que não teria havido dizimação, mas assimilação dos autóctones. Esse eufemismo, no entanto, serve apenas para acobertar um fato indiscutível: se nossa população é mestiça, deve-se ao cruzamento de homens europeus com mulheres indígenas ou africanas – ou seja, a assimilação se deu através do estupro das nativas e negras pelos colonizadores brancos. 

Até meados do século XIX, cinco milhões de africanos negros foram aprisionados elevados à força para o Brasil. Quando, em 1888, foi abolida a escravatura, não houve qualquer esforço no sentido de possibilitar condições dignas aos ex-cativos. Assim, até hoje, 125 anos depois, a grande maioria dos afrodescendentes continua confinada à base da pirâmide social: raramente são vistos entre médicos, dentistas, advogados, engenheiros, executivos, jornalistas, artistas plásticos, cineastas, escritores. 

Invisível, acuada por baixos salários e destituída das prerrogativas primárias da cidadania – moradia, transporte, lazer, educação e saúde de qualidade –, a maior parte dos brasileiros sempre foi peça descartável na engrenagem que movimenta a economia: 75% de toda a riqueza encontra-se nas mãos de 10% da população branca e apenas 46 mil pessoas possuem metade das terras do país. Historicamente habituados a termos apenas deveres, nunca direitos, sucumbimos numa estranha sensação de não-pertencimento: no Brasil, o que é de todos não é de ninguém… 

Convivendo com uma terrível sensação de impunidade, já que a cadeia só funciona para quem não tem dinheiro para pagar bons advogados, a intolerância emerge. Aquele que, no desamparo de uma vida à margem, não tem o estatuto de ser humano reconhecido pela sociedade, reage com relação ao outro recusando-lhe também esse estatuto. Como não enxergamos o outro, o outro não nos vê. E assim acumulamos nossos ódios – o semelhante torna-se o inimigo. 

A taxa de homicídios no Brasil chega a 20 assassinatos por grupo de 100 mil habitantes, o que equivale a 37 mil pessoas mortas por ano, número três vezes maior que a média mundial. E quem mais está exposto à violência não são os ricos que se enclausuram atrás dos muros altos de condomínios fechados, protegidos por cercas elétricas, segurança privada e vigilância eletrônica, mas os pobres confinados em favelas e bairros de periferia, à mercê de narcotraficantes e policiais corruptos. 

Machistas, ocupamos o vergonhoso sétimo lugar entre os países com maior número de vítimas de violência doméstica, com um saldo, na última década, de 45 mil mulheres assassinadas. Covardes, em 2012 acumulamos mais de 120 mil denúncias de maus-tratos contra crianças e adolescentes. E é sabido que, tanto em relação às mulheres quanto às crianças e adolescentes, esses números são sempre subestimados. 

Hipócritas, os casos de intolerância em relação à orientação sexual revelam, exemplarmente, a nossa natureza. O local onde se realiza a mais importante parada gay do mundo, que chega a reunir mais de três milhões de participantes, a Avenida Paulista, em São Paulo, é o mesmo que concentra o maior número de ataques homofóbicos da cidade. 

E aqui tocamos num ponto nevrálgico: não é coincidência que a população carcerária brasileira, cerca de 550 mil pessoas, seja formada primordialmente por jovens entre 18 e 34 anos, pobres, negros e com baixa instrução. O sistema de ensino vem sendo ao longo da história um dos mecanismos mais eficazes de manutenção do abismo entre ricos e pobres. Ocupamos os últimos lugares no ranking que avalia o desempenho escolar no mundo: cerca de 9% da população permanece analfabeta e 20% são classificados como analfabetos funcionais – ou seja, um em cada três brasileiros adultos não tem capacidade de ler e interpretar os textos mais simples. 

A perpetuação da ignorância como instrumento de dominação, marca registrada da elite que permaneceu no poder até muito recentemente, pode ser mensurada. O mercado editorial brasileiro movimenta anualmente em torno de 2,2 bilhões de dólares, sendo que 35% deste total representam compras pelo governo federal, destinadas a alimentar bibliotecas públicas e escolares. No entanto, continuamos lendo pouco, em média menos de quatro títulos por ano, e no país inteiro há somente uma livraria para cada 63 mil habitantes, ainda assim concentradas nas capitais e grandes cidades do interior. 

Mas, temos avançado. 

A maior vitória da minha geração foi o restabelecimento da democracia – são 28 anos ininterruptos, pouco, é verdade, mas trata-se do período mais extenso de vigência do estado de direito em toda a história do Brasil. Com a estabilidade política e econômica, vimos acumulando conquistas sociais desde o fim da ditadura militar, sendo a mais significativa, sem dúvida alguma, a expressiva diminuição da miséria: um número impressionante de 42 milhões de pessoas ascenderam socialmente na última década. 

Inegável, ainda, a importância da implementação de mecanismos de transferência de renda, como as bolsas-família, ou de inclusão, como as cotas raciais para ingresso nas universidades públicas. 

Infelizmente, no entanto, apesar de todos os esforços, é imenso o peso do nosso legado de 500 anos de desmandos. Continuamos a ser um país onde moradia, educação, saúde, cultura e lazer não são direitos de todos, mas privilégios de alguns. Em que a faculdade de ir e vir, a qualquer tempo e a qualquer hora, não pode ser exercida, porque faltam condições de segurança pública. Em que mesmo a necessidade de trabalhar, em troca de um salário mínimo equivalente a cerca de 300 dólares mensais, esbarra em dificuldades elementares como a falta de transporte adequado. Em que o respeito ao meio-ambiente inexiste. Em que nos acostumamos todos a burlar as leis. 

Nós somos um país paradoxal. 

Ora o Brasil surge como uma região exótica, de praias paradisíacas, florestas edênicas, carnaval, capoeira e futebol; ora como um lugar execrável, de violência urbana, exploração da prostituição infantil, desrespeito aos direitos humanos e desdém pela natureza. Ora festejado como um dos países mais bem preparados para ocupar o lugar de protagonista no mundo – amplos recursos naturais, agricultura, pecuária e indústria diversificadas, enorme potencial de crescimento de produção e consumo; ora destinado a um eterno papel acessório, de fornecedor de matéria-prima e produtos fabricados com mão-de-obra barata, por falta de competência para gerir a própria riqueza. 

Agora, somos a sétima economia do planeta. E permanecemos em terceiro lugar entre os mais desiguais entre todos… 

Volto, então, à pergunta inicial: o que significa habitar essa região situada na periferia do mundo, escrever em português para leitores quase inexistentes, lutar, enfim, todos os dias, para construir, em meio a adversidades, um sentido para a vida? 

Eu acredito, talvez até ingenuamente, no papel transformador da literatura. Filho de uma lavadeira analfabeta e um pipoqueiro semianalfabeto, eu mesmo pipoqueiro, caixeiro de botequim, balconista de armarinho, operário têxtil, torneiro-mecânico, gerente de lanchonete, tive meu destino modificado pelo contato, embora fortuito, com os livros. E se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade. Em nossos tempos, de exacerbado apego ao narcisismo e extremado culto ao individualismo, aquele que nos é estranho, e que por isso deveria nos despertar o fascínio pelo reconhecimento mútuo, mais que nunca tem sido visto como o que nos ameaça. Voltamos as costas ao outro – seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual – como tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir. 

Sucumbimos à solidão e ao egoísmo e nos negamos a nós mesmos. Para me contrapor a isso escrevo: quero afetar o leitor, modificá-lo, para transformar o mundo. Trata-se de uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias. Porque penso que o destino último de todo ser humano deveria ser unicamente esse, o de alcançar a felicidade na Terra. 

Aqui e agora."

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

O discurso de Mujica na ONU - 2013

Amigos, sou do sul, venho do sul. Esquina do Atlântico e do Prata, meu país é uma planície suave, temperada, uma história de portos, couros, charque, lãs e carne. Houve décadas púrpuras, de lanças e cavalos, até que, por fim, no arrancar do século 20, passou a ser vanguarda no social, no Estado, no Ensino. Diria que a social-democracia foi inventada no Uruguai.

Durante quase 50 anos, o mundo nos viu como uma espécie de Suíça. Na realidade, na economia, fomos bastardos do império britânico e, quando ele sucumbiu, vivemos o amargo mel do fim de intercâmbios funestos, e ficamos estancados, sentindo falta do passado.

Quase 50 anos recordando o Maracanã, nossa façanha esportiva. Hoje, ressurgimos no mundo globalizado, talvez aprendendo de nossa dor. Minha história pessoal, a de um rapaz — por que, uma vez, fui um rapaz — que, como outros, quis mudar seu tempo, seu mundo, o sonho de uma sociedade libertária e sem classes. Meus erros são, em parte, filhos de meu tempo. Obviamente, os assumo, mas há vezes que medito com nostalgia.

Quem tivera a força de quando éramos capazes de abrigar tanta utopia! No entanto, não olho para trás, porque o hoje real nasceu das cinzas férteis do ontem. Pelo contrário, não vivo para cobrar contas ou para reverberar memórias.

Me angustia, e como, o amanhã que não verei, e pelo qual me comprometo. Sim, é possível um mundo com uma humanidade melhor, mas talvez, hoje, a primeira tarefa seja cuidar da vida.

Mas sou do sul e venho do sul, a esta Assembleia, carrego inequivocamente os milhões de compatriotas pobres, nas cidades, nos desertos, nas selvas, nos pampas, nas depressões da América Latina pátria de todos que está se formando.

Carrego as culturas originais esmagadas, com os restos de colonialismo nas Malvinas, com bloqueios inúteis a este jacaré sob o sol do Caribe que se chama Cuba. Carrego as consequências da vigilância eletrônica, que não faz outra coisa que não despertar desconfiança. Desconfiança que nos envenena inutilmente. Carrego uma gigantesca dívida social, com a necessidade de defender a Amazônia, os mares, nossos grandes rios na América.

Carrego o dever de lutar por pátria para todos.

Para que a Colômbia possa encontrar o caminho da paz, e carrego o dever de lutar por tolerância, a tolerância é necessária para com aqueles que são diferentes, e com os que temos diferências e discrepâncias. Não se precisa de tolerância com aqueles com quem estamos de acordo.

A tolerância é o fundamento de poder conviver em paz, e entendendo que, no mundo, somos diferentes.

O combate à economia suja, ao narcotráfico, ao roubo, à fraude e à corrupção, pragas contemporâneas, procriadas por esse antivalor, esse que sustenta que somos felizes se enriquecemos, seja como seja. Sacrificamos os velhos deuses imateriais. Ocupamos o templo com o deus mercado, que nos organiza a economia, a política, os hábitos, a vida e até nos financia em parcelas e cartões a aparência de felicidade.

Parece que nascemos apenas para consumir e consumir e, quando não podemos, nos enchemos de frustração, pobreza e até autoexclusão.

O certo, hoje, é que, para gastar e enterrar os detritos nisso que se chama pela ciência de poeira de carbono, se aspirarmos nesta humanidade a consumir como um americano médio, seriam imprescindíveis três planetas para poder viver.

Nossa civilização montou um desafio mentiroso e, assim como vamos, não é possível satisfazer esse sentido de esbanjamento que se deu à vida. Isso se massifica como uma cultura de nossa época, sempre dirigida pela acumulação e pelo mercado.

Prometemos uma vida de esbanjamento, e, no fundo, constitui uma conta regressiva contra a natureza, contra a humanidade no futuro. Civilização contra a simplicidade, contra a sobriedade, contra todos os ciclos naturais.

O pior: civilização contra a liberdade que supõe ter tempo para viver as relações humanas, as únicas que transcendem: o amor, a amizade, aventura, solidariedade, família.

Civilização contra tempo livre que não é pago, que não se pode comprar, e que nos permite contemplar e esquadrinhar o cenário da natureza.

Arrasamos a selva, as selvas verdadeiras, e implantamos selvas anônimas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insônia com comprimidos, a solidão com eletrônicos, porque somos felizes longe da convivência humana.

Cabe se fazer esta pergunta, ouvimos da biologia que defende a vida pela vida, como causa superior, e a suplantamos com o consumismo funcional à acumulação.

A política, eterna mãe do acontecer humano, ficou limitada à economia e ao mercado. De salto em salto, a política não pode mais que se perpetuar, e, como tal, delegou o poder, e se entretém, aturdida, lutando pelo governo. Debochada marcha de historieta humana, comprando e vendendo tudo, e inovando para poder negociar de alguma forma o que é inegociável. Há marketing para tudo, para os cemitérios, os serviços fúnebres, as maternidades, para pais, para mães, passando pelas secretárias, pelos automóveis e pelas férias. Tudo, tudo é negócio.

Todavia, as campanhas de marketing caem deliberadamente sobre as crianças, e sua psicologia para influir sobre os adultos e ter, assim, um território assegurado no futuro. Sobram provas de essas tecnologias bastante abomináveis que, por vezes, conduzem a frustrações e mais.

O homenzinho médio de nossas grandes cidades perambula entre os bancos e o tédio rotineiro dos escritórios, às vezes temperados com ar condicionado. Sempre sonha com as férias e com a liberdade, sempre sonha com pagar as contas, até que, um dia, o coração para, e adeus. Haverá outro soldado abocanhado pelas presas do mercado, assegurando a acumulação. A crise é a impotência, a impotência da política, incapaz de entender que a humanidade não escapa nem escapará do sentimento de nação. Sentimento que está quase incrustado em nosso código genético.

Hoje é tempo de começar a talhar para preparar um mundo sem fronteiras. A economia globalizada não tem mais condução que o interesse privado, de muitos poucos, e cada Estado Nacional mira sua estabilidade continuísta, e hoje a grande tarefa para nossos povos, em minha humilde visão, é o todo.

Como se isto fosse pouco, o capitalismo produtivo, francamente produtivo, está meio prisioneiro na caixa dos grandes bancos. No fundo, são o vértice do poder mundial. Mais claro, cremos que o mundo requer a gritos regras globais que respeitem os avanços da ciência, que abunda. Mas não é a ciência que governa o mundo. Se precisa, por exemplo, uma larga agenda de definições, quantas horas de trabalho e toda a terra, como convergem as moedas, como se financia a luta global pela água e contra os desertos.

Como se recicla e se pressiona contra o aquecimento global. Quais são os limites de cada grande questão humana. Seria imperioso conseguir consenso planetário para desatar a solidariedade com os mais oprimidos, castigar impositivamente o esbanjamento e a especulação. Mobilizar as grandes economias não para criar descartáveis com obsolescência calculada, mas bens úteis, sem fidelidade, para ajudar a levantar os pobres do mundo. Bens úteis contra a pobreza mundial. Mil vezes mais rentável que fazer guerras. Virar um neo-keynesianismo útil, de escala planetária, para abolir as vergonhas mais flagrantes deste mundo.

Talvez nosso mundo necessite menos de organismos mundiais, desses que organizam fórums e conferências, que servem muito às cadeias hoteleiras e às companhias aéreas e, no melhor dos casos, não reúne ninguém e transforma em decisões…

Precisamos sim mascar muito o velho e o eterno da vida humana junto da ciência, essa ciência que se empenha pela humanidade não para enriquecer; com eles, com os homens de ciência da mão, primeiros conselheiros da humanidade, estabelecer acordos para o mundo inteiro. Nem os Estados nacionais grandes, nem as transnacionais e muito menos o sistema financeiro deveriam governar o mundo humano. Sim, a alta política entrelaçada com a sabedoria científica, ali está a fonte. Essa ciência que não apetece o lucro, mas que mira o por vir e nos diz coisas que não escutamos. Quantos anos faz que nos disseram coisas que não entendemos? Creio que se deve convocar a inteligência ao comando da nave acima da terra, coisas assim e coisas que não posso desenvolver nos parecem impossíveis, mas requeririam que o determinante fosse a vida, não a acumulação.

Obviamente, não somos tão iludidos, nada disso acontecerá, nem coisas parecidas. Nos restam muitos sacrifícios inúteis daqui para diante, muitos remendos de consciência sem enfrentar as causas. Hoje, o mundo é incapaz de criar regras planetárias para a globalização e isso é pela enfraquecimento da alta política, isso que se ocupa de todo. Por último, vamos assistir ao refúgio de acordos mais ou menos “reclamáveis”, que vão plantear um comércio interno livre, mas que, no fundo, terminarão construindo parapeitos protecionistas, supranacionais em algumas regiões do planeta. A sua vez, crescerão ramos industriais importantes e serviços, todos dedicados a salvar e a melhorar o meio ambiente. Assim vamos nos consolar por um tempo, estaremos entretidos e, naturalmente, continuará a parecer que a acumulação é boa, para a alegria do sistema financeiro.

Continuarão as guerras e, portanto, os fanatismos, até que, talvez, a mesma natureza faça um chamado à ordem e torne inviáveis nossas civilizações. Talvez nossa visão seja demasiado crua, sem piedade, e vemos ao homem como uma criatura única, a única que há acima da terra capaz de ir contra sua própria espécie. Volto a repetir, porque alguns chamam a crise ecológica do planeta de consequência do triunfo avassalador da ambição humana. Esse é nosso triunfo e também nossa derrota, porque temos impotência política de nos enquadrarmos em uma nova época. E temos contribuído para sua construção sem nos dar conta.

Por que digo isto? São dados, nada mais. O certo é que a população quadruplicou e o PIB cresceu pelo menos vinte vezes no último século. Desde 1990, aproximadamente a cada seis anos o comércio mundial duplica. Poderíamos seguir anotando dados que estabelecem a marcha da globalização. O que está acontecendo conosco? Entramos em outra época aceleradamente, mas com políticos, enfeites culturais, partidos e jovens, todos velhos ante a pavorosa acumulação de mudanças que nem sequer podemos registrar. Não podemos manejar a globalização porque nosso pensamento não é global. Não sabemos se é uma limitação cultural ou se estamos chegano a nossos limites biológicos.

Nossa época é portentosamente revolucionária como não conheceu a história da humanidade. Mas não tem condução consciente, ou ao menos condução simplesmente instintiva. Muito menos, todavia, condução política organizada, porque nem se quer tivemos filosofia precursora ante a velocidade das mudanças que se acumularam.

A cobiça, tão negatica e tão motor da história, essa que impulsionou o progresso material técnico e científico, que fez o que é nossa época e nosso tempo e um fenomenal avanço em muitas frentes, paradoxalmente, essa mesma ferramenta, a cobiça que nos impulsionou a domesticar a ciência e transformá-la em tecnologia nos precipita a um abismo nebuloso. A uma história que não conhecemos, a uma época sem história, e estamos ficando sem olhos nem inteligência coletiva para seguir colonizando e para continuar nos transformando.

Porque se há uma característica deste bichinho humano é a de que é um conquistador antropológico.

Parece que as coisas tomam autonomia e essas coisas subjugam os homens. De um lado a outro, sobram ativos para vislumbrar tudo isso e para vislumbrar o rombo. Mas é impossível para nós coletivizar decisões globais por esse todo. A cobiça individual triunfou grandemente sobre a cobiça superior da espécie. Aclaremos: o que é “tudo”, essa palavra simples, menos opinável e mais evidente? Em nosso Ocidente, particularmente, porque daqui viemos, embora tenhamos vindo do sul, as repúblicas que nasceram para afirmas que os homens são iguais, que ninguém é mais que ninguém, que os governos deveriam representar o bem comum, a justiça e a igualdade. Muitas vezes, as repúblicas se deformam e caem no esquecimento da gente que anda pelas ruas, do povo comum.

Não foram as repúblicas criadas para vegetar, mas ao contrário, para serem um grito na história, para fazer funcionais as vidas dos próprios povos e, por tanto, as repúblicas que devem às maiorias e devem lutar pela promoção das maiorias.

Seja o que for, por reminiscências feudais que estão em nossa cultura, por classismo dominador, talvez pela cultura consumista que rodeia a todos, as repúblicas frequentemente em suas direções adotam um viver diário que exclui, que se distância do homem da rua.

Esse homem da rua deveria ser a causa central da luta política na vida das repúblicas. Os gobernos republicanos deveriam se parecer cada vez mais com seus respectivos povos na forma de viver e na forma de se comprometer com a vida.

A verdade é que cultivamos arcaísmos feudais, cortesias consentidas, fazemos diferenciações hierárquicas que, no fundo, amassam o que têm de melhor as repúblicas: que ninguém é mais que ninguém. O jogo desse e de outros fatores nos retém na pré-história. E, hoje, é impossível renunciar à guerra cuando a política fracassa. Assim, se estrangula a economia, esbanjamos recursos.

Ouçam bem, queridos amigos: em cada minuto no mundo se gastam US$ 2 milhões em ações militares nesta terra. Dois milhões de dólares por minuto em inteligência militar!! Em investigação médica, de todas as enfermidades que avançaram enormemente, cuja cura dá às pessoas uns anos a mais de vida, a investigação cobre apenas a quinta parte da investigação militar.

Este processo, do qual não podemos sair, é cego. Assegura ódio e fanatismo, desconfiança, fonte de novas guerras e, isso também, esbanjamento de fortunas. Eu sei que é muito fácil, poeticamente, autocriticarmo-nos pessoalmente. E creio que seria uma inocência neste mundo plantear que há recursos para economizar e gastar em outras coisas úteis. Isso seria possível, novamente, se fôssemos capazes de exercitar acordos mundiais e prevenções mundiais de políticas planetárias que nos garantissem a paz e que a dessem para os mais fracos, garantia que não temos. Aí haveria enormes recursos para deslocar e solucionar as maiores vergonhas que pairam sobre a Terra. Mas basta uma pergunta: nesta humanidade, hoje, onde se iria sem a existência dessas garantias planetárias? Então cada qual esconde armas de acordo com sua magnitude, e aqui estamos, porque não podemos raciocinar como espécie, apenas como indivíduos.

As instituições mundiais, particularmente hoje, vegetam à sombra consentida das dissidências das grandes nações que, obviamente, querem reter sua cota de poder.

Bloqueiam esta ONU que foi criada com uma esperança e como um sonho de paz para a humanidade. Mas, pior ainda, desarraigam-na da democracia no sentido planetário porque não somos iguais. Não podemos ser iguais nesse mundo onde há mais fortes e mais fracos. Portanto, é uma democracia ferida e está cerceando a história de um possível acordo mundial de paz, militante, combativo e verdadeiramente existente. E, então, remendamos doenças ali onde há eclosão, tudo como agrada a algumas das grandes potências. Os demais olham de longe. Não existimos.

Amigos, creio que é muito difícil inventar uma força pior que nacionalismo chovinista das grandes potências. A força é que liberta os fracos. O nacionalismo, tão pai dos processos de descolonização, formidável para os fracos, se transforma em uma ferramenta opressora nas mãos dos fortes e, nos últimos 200 anos, tivemos exemplos disso por toda a parte.

A ONU, nossa ONU, enlanguece, se burocratiza por falta de poder e de autonomia, de reconhecimento e, sobretudo, de democracia para o mundo mais fraco que constitui a maioria esmagadora do planeta. Mostro um pequeno exemplo, pequenino. Nosso pequeno país tem, em termos absolutos, a maior quantidade de soldados em missões de paz em todos os países da América Latina. E ali estamos, onde nos pedem que estejamos. Mas somos pequenos, fracos. Onde se repartem os recursos e se tomam as decisões, não entramos nem para servir o café. No mais profundo de nosso coração, existe um enorme anseio de ajudar para que o homem saia da pré-história. Eu defino que o homem, enquanto viver em clima de guerra, está na pré-história, apesar dos muitos artefatos que possa construir.

Até que o homem não saia dessa pré-história e arquive a guerra como recurso quando a política fracassa, essa é a larga marcha e o desafio que temos daqui adiante. E o dizemos com conhecimento de causa. Conhecemos a solidão da guerra. No entanto, esses sonhos, esses desafios que estão no horizonte implicam lutar por uma agenda de acordos mundiais que comecem a governar nossa história e superar, passo a passo, as ameaças à vida. A espécie como tal deveria ter um governo para a humanidade que superasse o individualismo e primasse por recriar cabeças políticas que acudam ao caminho da ciência, e não apenas aos interesses imediatos que nos governam e nos afogam.

Paralelamente, devemos entender que os indigentes do mundo não são da África ou da América Latina, mas da humanidade toda, e esta deve, como tal, globalizada, empenhar-se em seu desenvolvimento, para que possam viver com decência de maneira autônoma. Os recursos necessários existem, estão neste depredador esbanjamento de nossa civilização.

Há poucos dias, fizeram na Califórnia, em um corpo de bombeiros, uma homenagem a uma lâmpada elétrica que está acesa há cem anos. Cem anos que está acesa, amigo! Quantos milhões de dólares nos tiraram dos bolsos fazendo deliberadamente porcarias para que as pessoas comprem, comprem, comprem e comprem.

Mas esta globalização de olhar para todo o planeta e para toda a vida significa uma mudança cultural brutal. É o que nos requer a história. Toda a base material mudou e cambaleou, e os homens, com nossa cultura, permanecem como se não houvesse acontecido nada e, em vez de governarem a civilização, deixam que ela nos governe. Há mais de 20 anos que discutimos a humilde taxa Tobin. Impossível aplicá-la no tocante ao planeta. Todos os bancos do poder financeiro se irrompem feridos em sua propriedade privada e sei lá quantas coisas mais. Mas isso é paradoxal. Mas, com talento, com trabalho coletivo, com ciência, o homem, passo a passo, é capaz de transformar o deserto em verde.

O homem pode levar a agricultura ao mar. O homem pode criar vegetais que vivam na água salgada. A força da humanidade se concentra no essencial. É incomensurável. Ali estão as mais portentosas fontes de energia. O que sabemos da fotossíntese? Quase nada. A energia no mundo sobra, se trabalharmos para usá-la bem. É possível arrancar tranquilamente toda a indigência do planeta. É possível criar estabilidade e será possível para as gerações vindouras, se conseguirem raciocinar como espécie e não só como indivíduos, levar a vida à galáxia e seguir com esse sonho conquistador que carregamos em nossa genética.

Mas, para que todos esses sonhos sejam possíveis, precisamos governar a nos mesmos, ou sucumbiremos porque não somos capazes de estar à altura da civilização em que fomos desenvolvendo.

Este é nosso dilema. Não nos entretenhamos apenas remendando consequências. Pensemos na causa profundas, na civilização do esbanjamento, na civilização do usa-tira que rouba tempo mal gasto de vida humana, esbanjando questões inúteis. Pensem que a vida humana é um milagre. Que estamos vivos por um milagre e nada vale mais que a vida. E que nosso dever biológico, acima de todas as coisas, é respeitar a vida e impulsioná-la, cuidá-la, procriá-la e entender que a espécie é nosso “nós”.

Obrigado.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Ideologia: ódio ao PT

Vez ou outra me vejo na necessidade de defender o PT em, como diria meu amigo Marcão, esgrima virtual. Duro é debater com pessoas que sequer ostentam sua preferência partidária, como se isso fosse uma doença contagiosa, como se tivessem vergonha de não serem petistas ou, pelo menos, de esquerda (invariavelmente são do PSDB ou da direita raivosa). Para mim muitas vezes é duro de aturar esse tipo de ideologia anônima ou simplesmente anti-petista. Mas apenas para não deixar o interlocutor sem resposta, o que seria falta de educação de minha parte vez que ele insiste com a vontade de argumentar e traz novos argumentos à conversa, dou prosseguimento. Algumas colocações até são compartilhadas por mim, principalmente as desairosas com relação ao PMDB, sobre Cabral e Paes, sobre alianças expúrias em nome da governabilidade, e o muito mais que poderia, já, ter sido feito. Não posso concordar com o que chamam de "política de assistencialismo" para o único programa feito e efetivamente implementado por um governo, para tirar a maior parte do povo da pobreza absoluta ou da miséria, o bolsa-família. Quem tem fome tem pressa, disse Betinho. Não creio que alguém realmente classifique programas individuais como Cotas, Bolsa-Família, PAC, Pronatec, Minha Casa, Minha Vida, ProUni, Ifets, Fies, ReUni, na categoria de assistencialismo e não de resgate de cidadania e de um mínimo de justiça social. Só o bolsa-família reduziu trabalho precoce "na faixa de 15 a 17 anos, evitando o abandono da escola para ajudar na renda doméstica. Em 2003, estes jovens eram 26% da População Economicamente Ativa (PEA) índice que foi reduzido a 18,9% em 2011. Tudo isto nas regiões metropolitanas de São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Recife, Salvador e Porto Alegre, segundo o IBGE. Observamos também uma significativa redução do trabalho infantil que, de 2001 a 2011, caiu de 11,6% para 5,5%, na faixa de 10 a 14 anos." A velha mídia e a oposição faz isso, esconde essa realidade, mas com o viés de revanchismo e um pouco de inveja, e esse é o discurso da Veja, da Globo e de toda velha mídia golpista. E é golpista assumida, como vimos em O Globo. A mídia alternativa é a arma de desmentido que hoje temos à mão. Alguns comparam Carta Capital com o Globo, a Veja e a mídia tradicional. Mas nem quem o faz acredita nisso. Comparar a Veja com qualquer "blog sujo", ou site de esquerda, é concluir que a mídia alternativa é límpida e cheirosa, e isso está na história. A velha mídia que está fazendo oposição no lugar de PSDB, DEM, etc., ê a mesma que sempre esteve e está contra o povo, e que, confessadamente, apoiou a ditadura. As editorias tradicionais, por fazerem parte dessa elite, nunca jogou ou jogará a favor do povo e isso é incontestável e não serve como argumento, muito menos é legítimo comparar. Onze famílias comandam a mídia no Brasil. Famílias da elite, que jogam no time da elite que joga contra o povo. Dê uma olhada nesse vídeo: http://evoluindo-sempre.blogspot.com.br/... Mas, continuando, criticar o PT com esse mesmo discurso usado pela velha mídia, apenas aponta desconhecimento, ou deliberado intuito de esconder o impossível de ser escondido, com relação ao conquistado pelo povo na era do petismo. Como descartar o aumento da geração de empregos, o aumento da renda do trabalhador, o avanço (que insistem em subestimar) na educação, na qualidade do ensino, na redução da pobreza e as conquista na área habitacional? Isso a velha mídia tenta esconder, assim como a oposição, mas o povo, o beneficiário, responde que existem sim, com seu voto, como espero ocorrer em 2014, em que pese a sanha mídia, da elite e da burguesia. Alguns dos detratores dizem que, um dia, estiveram com Lula, que o apoiaram. Creio ser verdade, assim como sei que Arnaldo Jabor já esteve na esquerda. Quanto a alianças espúrias, como governar o Brasil diante de um sistema presidencialista com dispositivos parlamentaristas? Foi o que fez Janio renunciar por não poder presidir, de fato, a República. Jango quando assumiu fez um plebiscito e derrubou o parlamentarismo. A elite civil e militar insuflou a burguesia com a velha história de que o comunismo estava batendo às portas do Brasil para cimeras criancinhas e houve o golpe contra um governo legitimamente eleito, o de Jamgo, que tinha aprovação, segundo pesquisas à época, realizadas entre "os dias 20 e 30 de março de 1964, quando a democracia já era tangida ao matadouro pelos que bradavam a sua defesa em manchetes e editoriais, mostram que: a) 69% dos entrevistados avaliavam o governo Jango como ótimo (15%), bom (30%) e regular (24%). Apenas 15% o consideravam ruim ou péssimo, fazendo eco dos jornais; b) 49,8% cogitavam votar em Jango, caso ele se candidatasse à reeleição, em 1965 (seu mandato expirava em janeiro de 1966); 41,8% rejeitavam essa opção; c) 59% apoiavam as medidas anunciadas pelo Presidente na famosa sexta-feira, 13 de março." Pois bem, o que é o mensalão, fraude contra o erário? Tá, que se julgue sem espetacularização e dentro das regras do devido processo legal. Ele e todas as demais denúncias de fraude, sem preferencias partidárias, tudo ao comando das regras processuais em vigor, sem julgamentos de exceção. Ora, mas isso não importa! O importante é fritar o PT, e o povo junto, como fizeram com Jango. O que estamos assistindo nada mais é que um golpe disfarçado em prestação jurisdicional. Não fosse, o julgamento não seria esse espetáculo midiático e violador de princípios seculares de direitos individuais, conquistado com muito sangue e muita dor pela humanidade. Repito, isso é o mais importante em jogo nesse momento. Só cego não vê. Se o PT fez tudo que poderia fazer, claro que não. Precisa fazer muito mais. Mas nada justifica esse ódio que atropelou a justiça brasileira, envergonhando o mundo jurídico. Mas eles preferem o golpe, para depois fazer o que sempre fizeram pelo povo brasileiro: nada.

sábado, 24 de agosto de 2013

Os médicos cubanos, a hipocrisia burguesa e a oposição

A oposição e as instituições representativas da categoria, são contra a vinda dos médicos estrangeiros, de qualquer nacionalidade ainda que a velha mídia os mencione apenas como "os médicos cubanos".

A conduta daqueles que se opõem é censurável, em maior ou menor grau, em razão de seus interesses. 

As corporações representativas da categoria, são contra,  e argumentam, para fundamentar essa posição, que eles "são despreparados", o que já restou desmentido. São preparados, não são recém formados, e guardam experiências de outras ações semelhantes em locais onde a miséria, ou a falta de profissionais do ramo, os levaram. Ridiculamente até os nomearam curandeiros, afirmando que os processarão por esse crime.

A oposição fala em trabalho escravo e falta de transparência na contratação, enquanto aqui são a favor da terceirizaçào que solapa direitos dos trabalhadores em favor de quem bancou suas candidaturas, os empresários.

Ambos estão na mesma trincheira: contra o povo desasistido. Esse povo que vive em rincões distantes, ou em áreas de risco nas favelas e nas periferias, onde nossos médicos não podem ou não querem estar.

As associações médicas, em nome do dinheiro.

A oposição, em nome do poder.

Um poder que querem e nunca receberão do povo que preferem ver desasistido ou morto.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Pode ser a gota d’água: enfrentar a direita avançando a luta socialista




Por Mauro Iasi*

O mundo se move sob nossos pés, as velhas formas se rompem, surgem novas e as contradições que se acumulavam explodem buscando o caminho necessário, encontrando sua forma de expressão.

A explosão social que abalou o país brotou do terreno escondido das contradições. La para onde se costuma exilar as contradições incômodas: a miséria, a dissidência, a alteridade, a feiura, a violência. Germinaram no terreno do invisível, escondido e escamoteado pela neblina ideológica e o marketing cosmético que epidermicamente encobre a carne pobre da ordem capitalista com grossas camadas de justificativa hipócrita, de cinismo laudatório de uma sociabilidade moribunda.

As autoridades, os especialistas, sociólogos, politicólogos e jornalistas estão perdidos dando razão à dissertativa atribuída a Marx segundo a qual “a história só surpreende quem de história nada entende”. Declamam seu espanto querendo acreditar na extrema novidade, pois só isto explicaria sua brutal ignorância. No terreno da história nada é absolutamente novo.

Se há algo que é muito conhecido para quem não se limita ao presentismo – ou, foucaultianamente, à álea singular do acontecimento – é a insurreição, a explosão de massas. Caso tenham preconceitos contra nossa tradição marxista e se recusem a ler as brilhantes análises de Lênin em Os ensinamentos da insurreição de Moscou, ou de Trotski em A arte da insurreição, pode se remeter aos estudos de Freud em A psicologia de massas e análise do eu, ou a magistral análise de Sartre em A critica da razão dialética.

As massas explodem em uma dinâmica que altera profundamente o comportamento dos indivíduos isolados que pacificamente se dirigiam diariamente ao matadouro do capital, em ordem, pacificamente, saindo de suas casas humildes, pegando ônibus superlotados e precários, sendo humilhados pela polícia, vivendo de seus pequenos salários, vendo a orgia ostensiva do consumo e tendo que “subviver” com o que não tem.

Os jovens do Movimento Passe Livre (MPL) estão de parabéns por uma luta que não vem de agora (lembremos de Goiânia e Florianópolis) e por conseguir dar consistência a esta luta e ao confronto que os levou a dobrar a prepotência dos que afirmavam de início que a tarifa não seria rebaixada. As manifestações contra o aumento da passagem, no entanto, são apenas o desencadeador de algo muito maior. O movimento funcionou como um catalisador de um profundo descontentamento que estava soterrado pela propagando oficial.

Analisemos, então, as determinações mais profundas que se apresentam nesta explosão social.

Em primeiro lugar as manifestações expressam um descontentamento que germinava e que era alimentado pela ação que queria negá-lo, isto é, pela arrogância de um discurso oficial que insistia em afirmar que tudo ia bem: a economia estava bem, não porque garantia a produção e reprodução da vida, mas porque permitia a reprodução do capital com taxas de lucros aceitáveis, o Brasil escapara do pior da crise internacional a golpes de pesados subsídios às empresas monopolistas, a inflação estava “dentro da meta”, o Brasil recebia eventos esportivos e se transformava em um canteiro de obras, os trabalhadores apassivados e suas entidades amortecidas pelo transformismo e pela democracia de cooptação se rendiam ao consumo via endividamento, o governo se regozijava com índices de aceitação que pareciam sólidos.

Acontece aqui um velho e conhecido fenômeno. A vida real não combina com o discurso ideológico. A inflação dentro da meta explodia na hora das compras, de pagar o aluguel, de pagar as contas, de pegar um ônibus. As delícias do consumo voltavam na forma de dívidas impagáveis. O acesso ao ensino vira o pesadelo da falta de condições de permanência. O emprego desejado se transforma em doença ocupacional. O orgulho de receber eventos esportivos internacionais se apresenta na farra do boi de gastos enquanto a educação, a saúde, a moradia, os transportes ficam às moscas.

O estopim foi o aumento das passagens, e aqui se apresenta um elemento altamente esclarecedor. Nas primeiras experiências de governos municipais do PT o enfrentamento da questão do transporte se deu através da municipalização deste serviço. Em São Paulo chegou-se a falar e tarifa zero no governo de Erundina. Em uma segunda geração de governos petistas, todas as empresas municipais foram devolvidas aos empresários que exploravam o setor (e explorar é um termo preciso). Coincidentemente os empresários do transporte se tornaram uma das principais fontes de financiamento das campanhas deste partido.

Entendendo que a explosão é perfeitamente compreensível como forma de manifestação de um profundo descontentamento, sabemos que é mais do que isto. Representa, também, o esgotamento de uma forma que tem sido muito eficaz de domínio e controle político. Cultivamos um fetiche pela forma democrática como se ela em si mesmo fosse a solução enfim encontrada pela humanidade para superar um dilema histórico da ordem burguesa que a acompanha desde o nascimento e que não tem solução dentro da sociedade capitalista: o abismo entre sociedade e Estado.

A sociedade se representa através de políticos eleitos que formam as esferas decisórias, legislativas ou executivas, por meio do voto que transfere o poder para um conjunto de pessoas que supostamente expressam as diferentes posições e interesses existentes na sociedade. Abstrai-se, desta forma, o quanto os reais interesses políticos e econômicos em jogo deformam esta suposta límpida representação resultando na consagração do poder das classes dominantes, confirmando a dura descrição e Montesquieu segundo a qual “a República é uma presa; e sua força não passa do poder de alguns cidadãos e da licença de todos”, ou na ainda mais incisiva afirmação de Marx (e depois de Lênin): a democracia é o direito dos explorados escolher a cada quatro anos quem os representará e esmagará no governo.

Desta maneira é compreensível o espanto daqueles que acreditavam que estava tudo bem em uma sociedade marcada pelas contradições da forma capitalista e de sua expressão política, ignorando as profundas e conhecidas contradições que tal ordem gera inevitavelmente.

Uma contradição, no entanto, encontra sempre uma forma particular para se expressar. A forma como se expressaram as contradições descritas também é perfeitamente compreensível.

O último período político foi marcado por uma profunda despolitização dos movimentos sociais e dos movimentos reivindicativos da classe trabalhadora. Em dez anos de governo os trabalhadores não foram uma vez sequer chamados a participar ativa e independentemente da correlação de forças políticas em defesa de seus interesses e no terreno que lhe é próprio: as ruas, as praças, a cidade. Optou-se por uma governabilidade sustentada por alianças de cúpula nos limites da ordem política existente e do presidencialismo de coalizão, mantendo seus métodos, isto é, oferta de cargos, liberação de verbas e facilidades. Não é de se estranhar que em dez anos não se tenha implementado uma reforma política.

Em nenhum momento no qual uma demanda das massas trabalhadoras (reforma agrária, previdência, direitos trabalhistas, garantia de serviços públicos, etc.) que se chocava com a resistência dos setores conservadores foi resolvida chamando os trabalhadores a se manifestar e inverter a correlação de forças desfavorável às mudanças. Pelo contrário, via de regra, as soluções conservadoras foram propostas pelo governo que se pretendia popular e se pedia às massas que se calassem e dessem, como prova de sua infinita paciência, mais um voto de confiança em suas lideranças que deles se alienavam.

Quando os trabalhadores se chocam com a orientação governista, como na última greve dos professores e dos funcionários públicos federais, são tratados com arrogância e prepotência.

Por isso, não nos espanta que a explosão social se dê da forma como se deu e traga os elementos contraditórios que expressa: despolitizada e sem direção, ainda que com alvos precisamente definidos: os governos e aquilo que representa a ordem estabelecida.

A despolitização se expressa de varias formas, mas duas delas se apresentam com mais evidentes: violência e antipartidarismo. Comecemos pela violência.

Quanto à forma violenta que tanto espanta os ardorosos defensores da ordem temos que constatar que ela não é homogênea. Há pelo menos três vertentes da violência. Uma delas, difusa e desorganizada, é aquela que expressa a raiva e o ódio contra uma ordem que oprime, não por acaso esta se dirige contra as expressões desta ordem, seja os prédios públicos que abrigam as instituições da ordem política burguesa (sedes de governo, parlamentos, prédios do judiciário, etc.), mas também os monopólios da imprensa, da televisão, assim como os templos do consumo ostensivo. Esta manifestação é compreensível e até, em certa medida, justificada. Marx e Engels, ao analisar a situação alemã de 1850 dizem a respeito:

“Os operários não só não devem opor-se aos chamados excessos, aos atos de vingança popular contra indivíduos odiados ou contra edifícios públicos que o povo só possa relembrar com ódio, não somente devem admitir tais atos , mas assumir sua direção.”
[Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas]

Deixemos aos patéticos novos defensores da “ordem e da tranquilidade” a defesa do fetiche do patrimônio público, uma vez que é esta “ordem” é que tem garantido às classes dominantes e seus aliados de plantão a “tranquilidade” para saquear e depredar o verdadeiro patrimônio público.

Há uma segunda vertente da violência. Jovens das periferias, dos bairros pobres, das áreas para onde se expulsou os restos incômodos desta ordem de acumulação e concentração de riqueza, que são cotidianamente agredidos e violentados, estigmatizados, explorados e aviltados, que agora, aproveitando-se do mar revolto das manifestações expressam seu legítimo ódio contra esta sociedade hipócrita e de sua ordem de cemitérios. Sua forma violenta em saques e depredações assustam, é verdade, mas a consciência cínica de nossa época passou a assumir como normal as chacinas, a violência policial. Pseudointelectuais chegaram a justificar como normal que a polícia entre nas favelas e invada casas sem mandato, prenda, torture e mate em nome da “ordem”; ou seja, a violência só é aceitável contra pobres, contra bandidos, contra marginais, mas é inadmissível contra lixeiras, pontos de ônibus, bancos e vitrines.

Há uma terceira violência e esta não é espontânea e emocional como as duas primeiras: a extrema direita. Ela, lá dos esgotos para onde foi jogada pela história recente, se sentia também ofendida e agredida – evidente que não pela ordem burguesa e capitalista que sempre defendeu, mas pelo irrespirável ar democrático que acertava as contas com nosso passado tenebroso, como a denúncia contra o golpe de 1964 e seus sujeitos, com as comissões da verdade, mas sobretudo o mal estar desta extrema direta com um regime político que permite a organização dos trabalhadores e sua expressão, mesmo nos precários limites de uma democracia representativa de cooptação. Assim como os movimentos sociais e de classe se despolitizam, a direita também. Para a extrema direita não interessa que a atual forma política permita aos monopólios seus gigantescos lucros e à burguesia sua pornográfica concentração de riquezas. A burguesia que já se serviu da truculência para garantir as condições de acumulação de capital, hoje se serve da ordem e tranquilidade democrática para os mesmos fins e neste contexto não há função clara para seus antigos cães de guarda.

Estes não suportam nos ver andando com nossas camisetas que lembram nossos mártires, nossas bandeiras que recolhem o sangue de todos que lutaram, nossas firmes convicções que nos mantêm nas lutas diárias ao lado dos trabalhadores em defesa da vida, mas com o olhar certeiro no futuro necessário e urgente que supere a ordem do capital por uma alternativa socialista. Por isso nos atacam, usam das manifestações para acertar suas contas com a esquerda, de forma organizada, intencional e, certamente, com apoio formal ou informal dos aparatos de repressão.

A ação da extrema direita encontra respaldo na despolitização das massas, principalmente na expressão gritante do antipartidarismo. No entanto, neste caso temos que ter cautela ao analisar os fatos. O comportamento contra os partidos é compreensível, ainda que não justificado. Compreensível por dois motivos: as massas, graças à triste experiência petista, estão cansadas de partidos que usam as demandas populares para eleger seus vereadores, deputados e presidentes que depois voltam as costas para estas demandas para fazer seus jogos e alianças para manter em seus cargos; também, acertadamente, não podem aceitar que certos partidos pulem na frente de manifestações e movimentos para tentar dirigi-los sem a legitimidade de ter construído organicamente as lutas.

Tal atitude, portanto, compreensível, é injustificável pelo fato que ao mirar os partidos de esquerda erra pelo fato que foram os militantes dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais que mantiveram no pior momento da correlação de força desfavorável as lutas entorno das demandas populares, por moradia, na luta pela terra, contra a reforma da previdência, contra as privatizações, em defesa da educação e da saúde públicas, contra os gastos com os eventos esportivos, contra as remoções. E o fizeram em um contexto em que as massas estavam submetidas a um profundo apassivamento e no qual o transformismo do PT em partido da ordem isolava a esquerda e a estigmatizava. Neste sentido os partidos de esquerda como o PCB, o PSTU, o PSOL e outras organizações de esquerda, assim como os movimentos sociais e sindicatos, não precisam pedir licença a ninguém para participar de lutas e manifestações sociais, conquistaram legitimamente este direito na luta, com sua coerência e compromisso.

Para onde vão as manifestações? Alguns ingenuamente, ou de forma interesseira, acreditam que a mera existência da ação independente de massas configura em si mesma um fator positivo de transformação. Infelizmente, a história também nos traz elementos para questionar esta tese. Alguns exemplos da história muito recente: muitos saudaram a derrocada do leste europeu advinda do desmonte da URSS como a possibilidade de uma revolução política que retomasse o rumo interrompido das experiências socialistas, mas o que vimos foi a restauração capitalista. Agora saúdam a chamada “primavera árabe”, mas o que temos visto, e a Líbia e o Egito são exemplos paradigmáticos, é o aproveitamento dos monopólios na partilha do botim de países estratégicos isolando mais uma vez os setores populares.

O sentido e futuro das manifestações estão em disputa e temo em dizer que a esquerda está perdendo esta disputa para um sentido perigosamente direitista e conservador. Recentemente afirmei que a experiência política do último período, ao contrário do que alguns esperavam, havia produzido um desmonte na consciência de classe e se expressava em uma virada conservadora no senso comum. Este processo ficou evidente nas manifestações, para além da intenção de seus originais promotores. O produto multifacetado das contradições mescla nas manifestações elementos de bom senso e senso comum, criticas difusas às manifestações mais evidentes da sociabilidade burguesa em que estamos inseridos ao lado de reafirmações de valores próprios desta mesma ordem, o que seria natural se entendermos o processo de despolitização descrito.

Quando os adeptos do espontaneísmo alardeiam a virtude de uma manifestação sem direção e que hostiliza partidos, esquecem-se de que se você não tem uma estratégia, não se preocupe, você faz parte da estratégia de alguém. Além da evidente eficiência dos monopólios da comunicação – o “partido da pena”, nos termos de Marx – em pautar o movimento selecionando as bandeiras que interessa à ordem (luta contra a corrupção, nacionalismo, diminuição de impostos, etc.), outros elementos muito perigosos se apresentam.

Um cartaz na manifestação no Rio dizia: se o povo precisar, as Forças Armadas estão prontas para ajudar. Significativamente os militantes antipartido não destruíram esta faixa, talvez porque não sabem que existe, além do partido da pena, o “partido da espada”. Em nota dos clubes militares da marinha, exército e aeronáutica, os militares afirmam que as manifestações expressam majoritariamente a indignação com o descaso das autoridades com as aspirações da sociedade e que diante da dos vícios e omissões que se repetem chegou a hora de se “manifestar clamorosamente” e não aceitar “ser conduzido, resignadamente, como grupo ingênuo” dando “um basta à impostura e à impunidade”. A nota dos militares termina com uma clara provocação e cita Vandré: “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

A direita só germina e cresce no vazio deixado pela esquerda. A ilusão de um desenvolvimento capitalista capaz de resolver as demandas populares e garantir lucros aos capitalistas, sustentado por um governo de coalizão com a burguesia desarma os trabalhadores e a direita ocupa o terreno. Há um evidente cheiro de golpe no ar. A embaixadora dos EUA que estava na Nicarágua na época dos contras, na Bolívia quando da tentativa de dividir o pais, no Paraguai quando do golpe contra Lugo, chegou ao Brasil.

Ao prefaciar o livro sobre de Leandro Konder sobre o fascismo republicado em 2009, dizia, alertando para a atualidade do risco desta alternativa contra aqueles que achavam que este fenômeno estaria condenado ao passado:

“Capital monopolista em crise, imperialismo, ofensiva anticomunista, criminalização dos movimentos sociais, decadência cultural, hegemonia da política pequeno-burguesa em detrimento da política revolucionária do proletariado, irracionalismo, neo-positivismo, misticismo, chauvinismos nacionalistas acompanhados ou não de racismo… Não se enganem. Só posso alertar, como certa vez fez Marx: ‘esta fábula trata de ti’.”

A explosão de massas deu o recado: olha só meu coração, ele é um pote até aqui de mágoa, qualquer desatenção, faça não… pode ser a gota d’água.


*Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.http://blogdaboitempo.com.br/2013/06/26/pode-ser-a-gota-dagua-enfrentar-a-direita-avancando-a-luta-socialista/

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