O ladrão da BabilôniaElizabeth Bishop (tradução de Paulo Henriques Britto)
Nos morros verdes do Rio
Há uma mancha a se espalhar:
São os pobres que vêm pro Rio
E não têm como voltar.
São milhares, são milhões,
São aves de arribação,
Que constróem ninhos frágeis
De madeira e papelão.
Parecem tão leves que um sopro
Os faria desabar
Porém grudam feito líquens
Sempre a se multiplicar,
Pois cada vez vem mais gente.
Tem o morro da Macumba,
Tem o morro da Galinha,
E o morro da Catacumba;
Tem o morro do Querosene,
O Esqueleto, o do Noronha,
Tem o morro do Pasmado
E o morro da Babilônia.
Micuçú era ladrão,
Assassino, salafrário.
Tinha fugido três vezes
Da pior penitenciária.
Dizem que nunca estuprava,
Mas matou uns quatro ou mais.
Da última vez que escapou
Feriu dois policiais.
Disseram: "Ele vai atrás da tia,
Que criou o sem-vergonha.
Ela tem uma birosca
No morro da Babilônia".
E foi mesmo lá na tia,
Beber e se despedir:
"Eu tenho que me mandar,
Os home tão vindo aí.
Eu peguei noventa anos,
Nem quero viver tudo isso!
Só quero noventa minutos,
Uma cerveja e um chouriço.
"Brigado por tudo, tia,
A senhora foi muito legal.
Vou tentar fugir dos home,
Mas sei que eu vou me dar mal".
Encontrou uma mulata
Logo na primeira esquina.
"Se tu contar que me viu
Tu vai morrer, viu, menina?"
Lá no alto tem caverna,
Tem esconderijo bom,
Tem um forte abandonado
Do tempo de Villegaignon.
Micuçú olhava o mar
E o céu, liso como um muro.
Viu um navio se afastando,
Virando um pontinho escuro,
Uma mosca na parede,
Até desaparecer
Por detrás do horizonte.
E pensou: "Eu vou morrer".
Ouvia berro de cabra,
Ouvia choro de bebê,
Via pipa rabeando,
E pensava: "Eu vou morrer".
Urubu voou bem baixo,
Micuçú gritou: "Péra aí",
Acenando com o braço,
"Que eu ainda não morri!"
Veio helicóptero do Exército
Bem atrás do urubu.
Lá dentro ele viu dois homens
Que não viram Micuçú.
Logo depois começou
Uma barulheira medonha.
Eram os soldados subindo
O morro da Babilônia
Das janelas dos barracos,
As crianças espiavam.
Nas biroscas, os fregueses
Bebiam pinga e xingavam.
Mas os soldados tinham medo
Do terrível meliante.
Um deles, num acesso de pânico,
Metralhou o comandante.
Três dos tiras acertaram
Os outros tiraram fino.
O soldado ficou histérico:
Chorava feito um menino.
O oficial deu suas ordens,
Virou pro lado, suspirou,
Entregou a alma a Deus
E os filhos ao governador.
Buscaram depressa um padre,
Que lhe deu a extrema-unção.
– Ele era de Pernambuco,
O mais moço de onze irmãos.
Queriam parar a busca,
Mas o Exército não quis.
E os soldados continuaram
A procurar o infeliz.
Os ricos, nos apartamentos,
Sem a menor cerimônia,
Apontavam seus binóculos
Pro morro da Babilônia.
Depois, à noite no mato,
Micuçú ficou de vigília,
De ouvido atento, olhando
Pro farol lá longe, na ilha,
Que olhava pra ele também,
Depois dessa noite de insônia
Estava com frio e com fome,
No morro da Babilônia.
O sol nasceu amarelo,
Feio feito um ovo cru.
Aquele sol desgraçado
Era o fim de Micuçú.
Ele via as praias brancas,
Os banhistas bem dormidos,
Com barracas e toalhas.
Mas ele era um foragido.
A praia era um formigueiro:
Toda a areia fervilhava,
E as pessoas dentro d'água
Eram cocos que boiavam.
Micuçú ouviu o pregão
Do vendedor de barraca,
E o homem do amendoim
Rodando sua matraca.
Mulheres que iam à feira
Paravam um pouco na esquina
Pra conversar com as vizinhas,
E às vezes olhavam pra cima.
Os ricos, com seus binóculos,
Voltaram às janelas abertas.
Uns subiam nos telhados
Para assistir mais de perto.
Um soldado – ainda era cedo,
Oito horas, oito e dez –
Fez mira no Micuçú
E errou pela última vez.
Micuçú ouvia o soldado
Ofegando, esbaforido,
Tentou se embrenhar no mato:
Levou uma bala no ouvido.
Ouviu um bebê chorando
E sua vista escureceu.
Um vira-lata latiu.
Então Micuçú morreu.
Tinha um revólver Taurus
E mais as roupas do corpo,
Com dois contos no bolso.
Foi tudo que acharam com o morto.
A polícia e a população
Respiraram aliviadas.
Porém na birosca a tia
Chorava desesperada.
"Eu criei ele direito,
Com carinho, com amor.
Mas não sei, desde pequeno
Micuçú nunca prestou.
"Eu e a irmã dava dinheiro,
Nunca faltou nada, não.
Por que foi que esse menino
Cismou de virar ladrão?
"Eu criei ele direito,
Mesmo aqui, nessa favela".
No balcão os homens bebiam,
Sérios, sem olhar pra ela.
Mas já fora da birosca
Comentou um dos fregueses:
"Ele era um ladrão de merda.
Foi pego mais de seis vezes".
Hoje está chovendo fino
E estão de volta os soldados,
Com fuzis metralhadoras
E capacetes molhados.
Vieram dar mais uma batida,
Só que é outro criminoso.
Mas o pobre Micuçú –
Dizem – era mais perigoso.
Nos morros verdes do Rio
Há uma mancha a se espalhar:
São os pobres que vêm pro Rio
E não têm como voltar.
Tem o morro do Querosene,
O Esqueleto, o do Noronha,
Tem o morro do Pasmado
E o morro da Babilônia.
The Burglar Of BabylonElizabeth Bishop
On the fair green hills of RioThere grows a fearful stain:The poor who come to RioAnd can't go home again.
On the hills a million people,A million sparrows, nest,Like a confused migrationThat's had to light and rest,
Building its nests, or houses,Out of nothing at all, or air.You'd think a breath would end them,They perch so lightly there.
But they cling and spread like lichen,And people come and come.There's one hill called the Chicken,And one called Catacomb;
There's the hill of Kerosene,And the hill of Skeleton,The hill of Astonishment,And the hill of Babylon.
Micuçú was a burglar and killer,An enemy of society.He had escaped three timesFrom the worst penitentiary.
They don't know how many he murdered(Though they say he never raped),And he wounded two policemenThis last time he escaped.
They said, "He'll go to his auntie,Who raised him like a son.She has a little drink shopOn the hill of Babylon."
He did go straight to his auntie,And he drank a final beer.He told her, "The soldiers are coming,And I've got to disappear."
"Ninety years they gave me.Who wants to live that long?I'll settle for ninety hours,On the hill of Babylon.
"Don't tell anyone you saw me.I'll run as long as I can.You were good to me, and I love you,But I'm a doomed man."
Going out, he met a mulataCarrying water on her head."If you say you saw me, daughter,You're as good as dead."
There are caves up there, and hideouts,And an old fort, falling down.They used to watch for FrenchmenFrom the hill of Babylon.
Below him was the ocean.It reached far up the sky,Flat as a wall, and on itWere freighters passing by,
Or climbing the wall, and climbingTill each looked like a fly,And then fell over and vanished;And he knew he was going to die.
He could hear the goats baa-baa-ing.He could hear the babies cry;Fluttering kites strained upward;And he knew he was going to die.
A buzzard flapped so near himHe could see its naked neck.He waved his arms and shouted,"Not yet, my son, not yet!"
An Army helicopterCame nosing around and in.He could see two men inside it,but they never spotted him.
The soldiers were all over,On all sides of the hill,And right against the skylineA row of them, small and still.
Children peeked out of windows,And men in the drink shop swore,And spat a little cachaçaAt the light cracks in the floor.
But the soldiers were nervous, evenwith tommy guns in hand,And one of them, in a panic,Shot the officer in command.
He hit him in three places;The other shots went wild.The soldier had hystericsAnd sobbed like a little child.
The dying man said, "FinishThe job we came here for."he committed his soul to GodAnd his sons to the Governor.
They ran and got a priest,And he died in hope of Heaven--A man from Pernambuco,The youngest of eleven.
They wanted to stop the search,but the Army said, "No, go on,"So the soldiers swarmed againUp the hill of Babylon.
Rich people in apartmentsWatched through binocularsAs long as the daylight lasted.And all night, under the stars,
Micuçú hid in the grassesOr sat in a little tree,Listening for sounds, and staringAt the lighthouse out at sea.
And the lighthouse stared back at him,til finally it was dawn.He was soaked with dew, and hungry,On the hill of Babylon.
The yellow sun was ugly,Like a raw egg on a plate--Slick from the sea. He cursed it,For he knew it sealed his fate.
He saw the long white beachesAnd people going to swim,With towels and beach umbrellas,But the soldiers were after him.
Far, far below, the peopleWere little colored spots,And the heads of those in swimmingWere floating coconuts.
He heard the peanut vendorGo peep-peep on his whistle,And the man that sells umbrellasSwinging his watchman's rattle.
Women with market basketsStood on the corners and talked,Then went on their way to market,Gazing up as they walked.
The rich with their binocularsWere back again, and manyWere standing on the rooftops,Among TV antennae.
It was early, eight or eight-thirty.He saw a soldier climb,Looking right at him. He fired,And missed for the last time.
He could hear the soldier panting,Though he never got very near.Micuçú dashed for shelter.But he got it, behind the ear.
He heard the babies cryingFar, far away in his head,And the mongrels barking and barking.Then Micuçú was dead.
He had a Taurus revolver,And just the clothes he had on,With two contos in the pockets,On the hill of Babylon.
The police and the populaceHeaved a sigh of relief,But behind the counter his auntieWiped her eyes in grief.
"We have always been respected.My shop is honest and clean.I loved him, but from a babyMicuçú was mean.
"We have always been respected.His sister has a job.Both of us gave him money.Why did he have to rob?
"I raised him to be honest,Even here, in Babylon slum."The customers had another,Looking serious and glum.
But one of them said to another,When he got outside the door,"He wasn't much of a burglar,He got caught six times--or more."
This morning the little soldiersare on Babylon hill again;Their gun barrels and helmetsShine in a gentle rain.
Micuçú is buried already.They're after another two,But they say they aren't as dangerousAs the poor Micuçú.
On the green hills of RioThere grows a fearful stain:The poor who come to RioAnd can't go home again.
There's the hill of Kerosene,And the hill of the Skeleton,The hill of Astonishment,And the hill of Babylon.
Fonte: O Jardim Alheio, do poeta J. Alexandre Sartorelli