Descoberta de Garrincha
(Nelson Rodrigues - 1912/1980)
E eis que, pela primeira vez,
um “seu” Manuel é o meu personagem da semana. Com esse nome cordial e alegre de
anedota, ele tomou conta da cidade, do Brasil e, mais do que isso, da Europa.
Creiam, amigos: o jogo Brasil x Rússia* acabou nos três minutos iniciais.
Insisto: nos primeiros três minutos da batalha, já o “seu” Manuel, já o
Garrincha, tinha derrotado a colossal Rússia, com a Sibéria e tudo o mais. E
notem: bastava ao Brasil um empate. Mas o meu personagem não acredita em empate
e se disparou pelo campo adversário, como um tiro. Foi driblando um, driblando
outro e consta inclusive que, na sua penetração fantástica, driblou até as barbas
de Rasputin.
Amigos: a desintegração da
defesa russa começou exatamente na primeira vez em que Garrincha tocou na bola.
Eu imagino o espanto imenso dos russos diante desse garoto de pernas tortas,
que vinha subverter todas as concepções do futebol europeu. Como marcar o
imarcável? Como apalpar o impalpável? Na sua indignação impotente, o adversário
olhava Garrincha, as pernas tortas de Garrincha e concluía: — “Isso não
existe!”. E eu, como os russos, já me inclino a acreditar que, de fato, domingo
Garrincha não existiu. Foi para o público internacional uma experiência
inédita. Realmente, jamais se viu, num jogo de tamanha responsabilidade, um
time, ou melhor, um jogador começar a partida com um baile. Repito: — baile,
sim, baile! E o que dramatiza o fato é que foi baile não contra um
perna-de-pau, mas contra o time poderosíssimo da Rússia.
Só um Garrincha poderia fazer
isso. Porque Garrincha não acredita em ninguém e só acredita em si mesmo. Se
tivesse jogado contra a Inglaterra, ele não teria dado a menor pelota para a
rainha Vitória, o lord Nelson e a tradição naval do adversário. Absolutamente.
Para ele, Pau Grande, que é a terra onde nasceu, vale mais do que toda a
Comunidade Britânica. Com esse estado de alma, plantou-se na sua ponta para
enfrentar os russos. Os outros brasileiros poderiam tremer. Ele não e jamais.
Perante a plateia internacional, era quase um menino. Tinha essa humilhante
sanidade mental do garoto que caça cambaxirra com espingarda de chumbo e que,
em Pau Grande, na sua cordialidade indiscriminada, cumprimenta até cachorro.
Antes de começar o jogo, o seu marcador havia de olhá-lo e comentar para si
mesmo, em russo: “Esse não dá pra saída!”. E, com dois minutos e meio, tínhamos
enfiado na Rússia duas bolas na trave e um gol. Aqui, em toda a extensão do
território nacional, começávamos a desconfiar que é bom, que é gostoso ser
brasileiro.
Está claro que não estou
subestimando o peito dos outros jogadores brasileiros. Deus me livre. Por
exemplo: cada gol de Vavá era um hino nacional. Na defesa, Bellini chutava até
a bola. E quando, no segundo tempo, Garrincha resolveu caprichar no baile, foi
um carnaval sublime. A coisa virou show de Grande Otelo. E tem razão um amigo
que, ouvindo o rádio, ao meu lado, sopra-me: “Isso que o Garrincha está fazendo
é pior do que xingar a mãe!”. Calculo que, a essa altura, as cinzas do czar
haviam de estar humilhadíssimas. O marcador do “seu” Manuel já não era um: eram
três. E, então, começou a se ouvir, aqui no Brasil, na praça da Bandeira, a
gargalhada cósmica, tremenda, do público sueco. Cada vez que Garrincha passava
por um, o público vinha abaixo. Mas não creiam que ele fizesse isso por mal. De
modo algum. Garrincha estava ali com a mesma boa-fé inefável com que, em Pau
Grande, vai chumbando as cambaxirras, os pardais. Via nos russos a inocência
dos passarinhos. Sim: os adversários eram outros tantos passarinhos,
desterrados de Pau Grande.
Calculo que, lá pelas tantas,
os russos, na sua raiva obtusa e inofensiva, haviam de imaginar que o único
meio de destruir Garrincha era caçá-lo a pauladas. De fato, domingo, só a
pauladas e talvez nem isso, amigos, talvez nem assim.
* Brasil 2 x 0 União
Soviética, 15/6/1958, em Gotemburgo (Suécia)