quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Descoberta de Garrincha (Nelson Rodrigues)





Descoberta de Garrincha


(Nelson Rodrigues - 1912/1980)


E eis que, pela primeira vez, um “seu” Manuel é o meu personagem da semana. Com esse nome cordial e alegre de anedota, ele tomou conta da cidade, do Brasil e, mais do que isso, da Europa. Creiam, amigos: o jogo Brasil x Rússia* acabou nos três minutos iniciais. Insisto: nos primeiros três minutos da batalha, já o “seu” Manuel, já o Garrincha, tinha derrotado a colossal Rússia, com a Sibéria e tudo o mais. E notem: bastava ao Brasil um empate. Mas o meu personagem não acredita em empate e se disparou pelo campo adversário, como um tiro. Foi driblando um, driblando outro e consta inclusive que, na sua penetração fantástica, driblou até as barbas de Rasputin.

Amigos: a desintegração da defesa russa começou exatamente na primeira vez em que Garrincha tocou na bola. Eu imagino o espanto imenso dos russos diante desse garoto de pernas tortas, que vinha subverter todas as concepções do futebol europeu. Como marcar o imarcável? Como apalpar o impalpável? Na sua indignação impotente, o adversário olhava Garrincha, as pernas tortas de Garrincha e concluía: — “Isso não existe!”. E eu, como os russos, já me inclino a acreditar que, de fato, domingo Garrincha não existiu. Foi para o público internacional uma experiência inédita. Realmente, jamais se viu, num jogo de tamanha responsabilidade, um time, ou melhor, um jogador começar a partida com um baile. Repito: — baile, sim, baile! E o que dramatiza o fato é que foi baile não contra um perna-de-pau, mas contra o time poderosíssimo da Rússia.
 

Só um Garrincha poderia fazer isso. Porque Garrincha não acredita em ninguém e só acredita em si mesmo. Se tivesse jogado contra a Inglaterra, ele não teria dado a menor pelota para a rainha Vitória, o lord Nelson e a tradição naval do adversário. Absolutamente. Para ele, Pau Grande, que é a terra onde nasceu, vale mais do que toda a Comunidade Britânica. Com esse estado de alma, plantou-se na sua ponta para enfrentar os russos. Os outros brasileiros poderiam tremer. Ele não e jamais. Perante a plateia internacional, era quase um menino. Tinha essa humilhante sanidade mental do garoto que caça cambaxirra com espingarda de chumbo e que, em Pau Grande, na sua cordialidade indiscriminada, cumprimenta até cachorro. Antes de começar o jogo, o seu marcador havia de olhá-lo e comentar para si mesmo, em russo: “Esse não dá pra saída!”. E, com dois minutos e meio, tínhamos enfiado na Rússia duas bolas na trave e um gol. Aqui, em toda a extensão do território nacional, começávamos a desconfiar que é bom, que é gostoso ser brasileiro.

Está claro que não estou subestimando o peito dos outros jogadores brasileiros. Deus me livre. Por exemplo: cada gol de Vavá era um hino nacional. Na defesa, Bellini chutava até a bola. E quando, no segundo tempo, Garrincha resolveu caprichar no baile, foi um carnaval sublime. A coisa virou show de Grande Otelo. E tem razão um amigo que, ouvindo o rádio, ao meu lado, sopra-me: “Isso que o Garrincha está fazendo é pior do que xingar a mãe!”. Calculo que, a essa altura, as cinzas do czar haviam de estar humilhadíssimas. O marcador do “seu” Manuel já não era um: eram três. E, então, começou a se ouvir, aqui no Brasil, na praça da Bandeira, a gargalhada cósmica, tremenda, do público sueco. Cada vez que Garrincha passava por um, o público vinha abaixo. Mas não creiam que ele fizesse isso por mal. De modo algum. Garrincha estava ali com a mesma boa-fé inefável com que, em Pau Grande, vai chumbando as cambaxirras, os pardais. Via nos russos a inocência dos passarinhos. Sim: os adversários eram outros tantos passarinhos, desterrados de Pau Grande.

Calculo que, lá pelas tantas, os russos, na sua raiva obtusa e inofensiva, haviam de imaginar que o único meio de destruir Garrincha era caçá-lo a pauladas. De fato, domingo, só a pauladas e talvez nem isso, amigos, talvez nem assim.

* Brasil 2 x 0 União Soviética, 15/6/1958, em Gotemburgo (Suécia)

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