(Foto: Gunter Jakobs teórico da tese do Direito Penal do Inimigo)
Prisionalização que não
combate a seletividade. Recrudescimento da execução. Eficácia que esvazia até o
processo.
Por Marcelo Semer*
Eles se propuseram a fazer um
código sem ideologias. Pragmático, mais que dogmático. Atual, mais do que isso,
moderno. Naufragaram – o projeto do
Código Penal faz água por todos os lados.
Não por ser simplesmente
reacionário -está salpicado de boas intenções, aqui e acolá, reduzindo certas
penas e expungindo parte da punição moral do direito.
Mas não deixa de ser um adepto
incondicional da eficácia.
Acredita em demasia no direito
penal e em seu poder simbólico -por isso mesmo não se constrange em mantê-lo
grande, nem se incomoda com o intenso recrudescimento da execução penal e as
tétricas consequências que pode provocar com isso.
Como toda obra com decisiva
influência do marketing, não entrega aquilo que promete.
Deseduca, ao perseverar na
ideia de um direito penal majestoso, que responda a todos os problemas e seja a
solução para a criminalidade.
Flerta com o autoritarismo, ao
trazer para o campo penal a solução dos mais variados conflitos, e é mais
inepto sintomaticamente onde inova.
A incorporação de teorias soa
às vezes, incômoda, mas a redação de novos tipos demonstra ainda mais
imprecisão.
O projeto abre mão de
conceitos para abraçar o mundo em busca da eficácia, e em certas situações se
vê a meio caminho do grotesco.
Que se pode dizer de um código
gigantesco, que ainda encontra condutas para criminalizar, que se torna mais
extravagante que a legislação que incorpora e que é dedicado, na apresentação
de seu relator, a duas vítimas infantes de crimes de grande repercussão?
Um trabalho que joga para a
plateia -e como se espera de todo esse apego demagógico, resulta em um
estrondoso fracasso de crítica.
O projeto é um espelho de sua
produção. Seus juristas mais falaram que ouviram; deram mais entrevistas que
debates. Buscaram reproduzir nas suas votações internas os consensos e
conflitos de acadêmicos que não escutaram.
Ao final, o texto é apressado,
confuso e, muitas vezes, contraditório.
Pretensioso, ainda esvazia o
processo penal, estilhaçando sua noção de garantia, através do utilitário
instituto da barganha.
Tem avanços, em especial ao
reduzir a tutela da propriedade. Mas é tímido em alguns acertos e tíbio quando
se obriga, em razão destes, a ceder a cada momento ao rigorismo, especialmente
na execução penal. Dá, enfim, algumas no cravo, outras tantas na ferradura.
Ao final, o trabalho não se
compromete nem mesmo com suas próprias bandeiras. Sua criminalização não atende
aos princípios que estipula. Suas concessões a um direito penal máximo
comprimem acertos. Ademais da falta de ideologia, portanto, o pragmatismo
também se sai fortemente ameaçado.
Sem a pretensão de um trabalho
exaustivo (pois exaustivo demais é o próprio projeto), compartilho algumas das
principais preocupações após uma primeira impressão.
Somadas as críticas já
veiculadas de comentaristas mais gabaritados, só se pode concluir que o atual
estágio de tramitação está anos-luz na frente de onde o texto merecia estar a
esta altura: proposta para começar a discussão, jamais um projeto na iminência
de se transformar em lei.
Não cabe aqui acolher a escusa
da imprudência.
Se o Código Penal é, como diz
o presidente de sua comissão, a lei mais importante abaixo da Constituição (e
por aí já se vê o prestígio exacerbado que a comissão deu a seu mister e ao
próprio direito penal) ela jamais poderia ter caminhado dessa forma tão
sobranceira e auto-referente.
1-) Prisionalização e seletividade
O principal defeito do sistema
penal brasileiro não é a impunidade –mas a seletividade. Faltam vagas para a
extensa população carcerária, que cresce a cada dia –mas não há pluralidade de
classes nas celas.
Elaborar um Código Penal
significa, em primeiro lugar, ter em mente este problema, bem ainda as
consequências da força do instrumento que é. Como a experiência tem nos
mostrado, enrijecer o sistema penal em busca de nova clientela dificilmente
resolve o problema da seletividade, pois os princípios do rigor, mais hora,
menos hora, acabam sendo replicados também aos mais vulneráveis que contam com
o outro lado da seletividade –a maior fiscalização e a menor possibilidade de
defesa.
Só a diminuição do direito
penal permite reduzir o impacto gravoso do Estado sobre a população mais
carente. Mas em alguns momentos, o candidato a legislador parece agir com
alguma espécie de privação de sentidos. Ou não consegue compreender o caráter
nocivo do direito penal ou, premido pela expectativa social que quer afagar,
não consegue se comportar de acordo com essa compreensão.
Assim, em que pese visíveis
esforços em um sentido de retração da prisionalização (reconheça-se, por
exemplo, em certas normas da parte geral e na redução de pena de tipos como
furto e roubo), são estes mais tímidos do que poderiam e em regra acompanhados
de concessões que, se não os esvaziam de todo, buscam compensações em outros
cantos, como a dizer: se eu baixo aqui, tenho de aumentar ali. Mais um reflexo
da propalada falta de ideologia.
É o caso, por exemplo, da
tentativa.
Estranhamente inserido na
Parte Geral, dispositivo sobre tentativa de crimes patrimoniais refuta
interpretação civilista que vem ganhando terreno na jurisprudência a partir de
decisões dos tribunais superiores: nos crimes contra o patrimônio, a inversão
da posse do bem não caracteriza por si só, a consumação do delito (art. 24, §
único).
Mas a exposição de motivos se
apressou em dizer, ao mesmo tempo, que não se preconizou a adoção do ponto de
vista rival, segundo o qual apenas da posse ‘mansa e pacífica’ adviria o
aperfeiçoamento do tipo penal, fulminando, por uma espécie de interpretação
quase-autêntica a leitura mais tradicional do instituto. Não se sabe bem ao
certo aonde o legislador procurou chegar, então.
O Código reconhece, enfim, o
princípio da insignificância, trazendo à lei critérios que vem sendo utilizados
pela jurisprudência do STF. Pela imensidão de insignificâncias que a redação
exige (mínima ofensividade da conduta, reduzidíssimo grau de reprovabilidade,
inexpressividade da lesão) muito provavelmente vai levar o intérprete que
naturalmente o exclui por falta de previsão a exclui-lo por ausência de seus
requisitos –e ainda pode constranger os que já o aplicam. Não à toa, o infeliz
exemplo trazido pela Exposição de Motivos foi justamente a do furto de
alfinete...
Paradoxalmente, no âmbito dos
crimes tributários, o princípio da insignificância é mais bem tratado: não há
crime se o valor correspondente à lesão for inferior àquele usado pela Fazenda
Pública para a execução fiscal (art. 348, §8º).
Aqui, não se preocupa mais com
a mínima ofensividade da conduta ou com o reduzidíssimo grau de
reprovabilidade. Basta o valor. Ah, a seletividade...
O projeto define, na esteira
da jurisprudência do STF, os limites dos antecedentes criminais, para afastar a
inconstitucional aplicação de processos em andamento ou condenações
recorríveis, e ainda estabelece a caducidade dos maus antecedentes, nos mesmos
padrões da reincidência.
Mas de outra parte, transfere
os antecedentes das circunstâncias judiciais para o status de circunstância
agravante (de aplicação obrigatória).
Ao mesmo tempo em que permite
que o juiz possa desconsiderar a reincidência quando o condenado já tiver
cumprido a pena pelo crime anterior e as atuais condições pessoais sejam
favoráveis à ressocialização (art. 79 §único), impõe que essa mesma condenação
seja utilizada como circunstância agravante (art. 77, II).
O projeto permite que a
circunstância atenuante possa levar à fixação da pena-base abaixo do mínimo
(quando houver aplicação de uma causa de aumento, art. 84, §3º) –todavia,
esvazia a própria circunstância atenuante ao extrair a menoridade relativa de
suas causas, além de levar a idade do idoso atenuado a setenta e cinco (em
franca contradição, aliás, com a redução dos prazos prescricionais, em que
permanecem íntegras a influência da menoridade e da idade de setenta anos, art.
115).
Permite, enfim, o Código que o
juiz excepcionalmente diminua a pena em virtude das circunstâncias do fato e
consequências para o réu, mas talvez em face de um constrangimento ao fazê-lo,
os autores inauguram uma fração abaixo de seu mínimo tradicional: 1/12!
Aliam-se a esses dispositivos
benéficos ma non troppo¸ a redução da
pena de furto e roubo –também de uma forma constrangida.
O furto simples passa a ter
pena mínima de seis meses. Diferentemente de uma plêiade de tipos em que os padrões
se repetem no Código entre 6 meses e dois anos, neste caso, a timidez levou os
autores a fixarem três anos como máxima, com o propósito inescondível de
impedir que o delito possa ser inserido entre os de menor potencialidade
ofensiva –onde de fato deveria estar.
Para não perder a mão apenas
na entrega, o projeto incorpora à extensão da coisa móvel, o sinal de televisão
a cabo ou de internet e item assemelhado que tenha valor econômico –resolvendo,
de forma mais gravosa antigo dissenso jurisprudencial.
E, pior, abre mão do próprio
sentido de crime contra o patrimônio, ao inserir uma inusitada equiparação à
coisa móvel do documento de identificação pessoal. O documento jamais deixou de
ser coisa móvel –sua subtração era atípica apenas pela ausência de valor
patrimonial relevante, o que o dispositivo penal ontologicamente não altera.
As figuras do furto aumentado
ainda se inserem entre aquelas cuja pena não ultrapassa um ano, o que
proporciona consequências positivas (ampliando o campo de incidência da suspensão
processual), mas o projeto continua se rendendo a maior gravidade do furto de
veículo automotor com a finalidade de transportá-lo para outro Estado
(resquício vivo da legislação de emergência que procura combater a nova
criminalidade com aumento de pena) –desbalanceando a tutela, por exemplo, em
relação ao furto à residência.
Reduz também a pena do roubo
ao patamar de três a seis anos e corretamente insere o sequestro relâmpago na
mesma categoria (eliminando a desproporção criada por outra lei de emergência
penal).
Cria o roubo privilegiado (sem
violência real, quando a coisa subtraída for de pequeno valor e o meio
empregado inidôneo para ofender a integridade da vítima), em que inexiste
violência e a ameaça se faz sem emprego efetivo de arma (por exemplo nas
hipóteses de simulação e simulacro) –mas abre a porta para sua não aplicação ao
exigir que também não seja causado à vítima um impreciso dano psicológico relevante.
A contradição é manifesta
entre o critério objetivo da lesividade da ameaça (meio empregado for inidôneo
para ofender a integridade da vítima) e a concessão ao critério subjetivo –que
no cotidiano forense pode reduzir enormemente a incidência.
Sua figura qualificada
mantém-se no patamar antigo do roubo simples –mas a timidez mais uma vez evita
excluir-se da hipótese aumentada o concurso de duas ou mais pessoas que,
equiparado desproporcionalmente ao emprego de arma, é causador frequente de
injustiças.
Avanço considerável, e com
enorme atraso, é tratar crimes patrimoniais sem violência como sujeitos à
representação. O projeto agrega a reparação do dano como forma de extinção da
punibilidade –mas sem olvidar o senão de exigir que a vítima antes aceite.
No entanto, todos esses
avanços contidos, essa liberalidade constrangida, essa entrega receosa, podem
resultar em nada diante das regras que tornam, ao mesmo tempo, mais rigoroso o
sistema progressivo de cumprimento das penas –provocando maior encarceramento.
É certo que a lei passa a
permitir a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de
direitos em caso de violência ou grave ameaça, quando a pena se limita a dois
anos (art. 61, II, b), mas, em contrapartida, veda o ingresso no regime aberto
para crimes com violência ou grave ameaça de 2 até 4 anos (art. 49, III, em
claro retrocesso com o panorama atual).
E ainda cria outros padrões
para a progressão de regime (art. 47): um terço da pena para o condenado
reincidente, se o crime for cometido com violência ou grave ameaça ou a
genérica hipótese de crime que causa grave lesão à sociedade (que consegue a
proeza de tornar indefinido o prazo para a progressão, com as sensíveis
consequências que a insegurança provoca no sistema penitenciário).
Não bastasse dobrar o
cumprimento da pena nos regime mais rigorosos para a progressão, o projeto
ainda estabelece que o cumprimento será de ½ da metade da pena para os casos de
reincidência em crime violento ou no tal crime que tiver causado grave lesão à
sociedade.
Pródigo em tantos outros
artigos em estabelecer desnecessárias balizas para a fixação da pena pelo juiz,
ou superar conflitos jurisprudenciais, aqui o pretenso legislador relega ao
critério do magistrado, tornando de livre interpretação a grave lesão à
sociedade. Deixa de cumprir justamente o papel destinado ao controle
formalizado do direito penal, que é o de estabelecer limites.
Não bastasse o aumento
expressivo na carcerização, a ser provocado pelo endurecimento do regime
progressivo, o projeto ressuscita o exame criminológico para a progressão (que
historicamente sempre foi um entrave para a progressão) e tornam mais rigorosos
os requisitos para a saída temporária. Sem deixar de anotar que o projeto só se
refere à monitoração eletrônica no regime aberto (escancarando o ânimo que já
se vislumbrava na lei específica, que é o de levar um pouco de cadeia à
liberdade e não o reverso).
Enfim, curva-se à crítica da
“opinião pública” no sentido de que as “penas não são cumpridas até o fim” –e
para evitar superposição de benefícios (como se estes realmente fossem
nocivos), abandona os tradicionais institutos da suspensão condicional da pena
e do livramento condicional.
Last, but not least, o projeto
retira a multa das penas restritivas de direito, proibindo, em regra, a
substituição da pena privativa por ela, e a devolve à execução pelo Ministério
Público, supostamente porque, consoante a exposição de motivos, a execução pela
Fazenda Pública como dívida de valor não deu bom resultado.
Mas o propósito vai além,
porque a lei repristina também a conversão da multa em prisão. Não para todos,
bem entendido. Para o solvente, ela se transforma em perda de bens e valores;
para o insolvente em prestação de serviços que, descumprida, leva à prisão.
Ah, a seletividade...
2-) A legislação penal de emergência
A ideia de que o Direito Penal
é a solução para a criminalidade (que não deixa de ser nada mais do que o
triunfo da esperança sobre a experiência) vem norteando o populismo legislativo
há décadas.
A criação de tipos penais que
buscam atingir a todo custo novas situações, ainda que a tutela penal seja
excessiva (e por isso mesmo jamais estiveram dentro dela) ou tornar mais ampla
sua abrangência, mais rigorosas suas penas ou seus regimes, tem claro
comprometimento com essa submissão à “opinião pública”, rendição ao populismo
midiático, que a edição de um Código Penal, estruturado e balanceado, deveria
impedir.
Ao trazer o populismo penal
para dentro do Código, os autores não apenas o legitimam, mas prolongam a sua
sobrevivência. Não dá mais para dizer: quando o novo Código vier, esses tipos
de ocasião serão revogados. Não, os tipos fazem parte agora de um Código de
ocasião.
O Código Penal acolhe os tipos
recentemente criados pelo Estatuto do Torcedor –que chega a punir com prisão de
um a dois anos quem invadir local restrito aos competidores (art. 249), entre
outros tipos criados com a nítida preocupação de preparar a legislação para os
grandes eventos. É sinal de que a realização da Copa do Mundo e das Olímpiadas
prometem nos deixar um legado pior ainda do que apenas um esperado déficit.
A mesma preocupação de exibir
aos visitantes uma legislação “moderna e eficaz”, pode ter levado os autores a
tipificar o terrorismo (art. 239) de uma forma tão ampla e ao mesmo tempo
genérica. Sim, o projeto não esquece de agravar a pena quando a conduta é
praticada por arma de destruição em massa, mas a abrangência do delito sugere
que a preocupação dos autores não foi propriamente o inimigo externo.
O terror pode, como uma novel
Lei de Segurança Nacional, atentar contra o Estado democrático, ser causado por
razões políticas ou ideológicas, e se restringir a condutas como a de manter
alguém em cárcere privado ou invadir qualquer bem púbico ou privado. Será isso
mesmo o terrorismo?
Não é preciso ir longe para
inferir o potencial de criminalização de movimentos sociais que a nova
legislação contém.
O antídoto do projeto, a esse
respeito, é claramente insuficiente. A causa de exclusão esta lançada assim:
“Não constitui crime de terrorismo a conduta individual ou coletiva de pessoas
movidas por propósitos sociais ou reivindicatórios, desde que os objetivos e
meios sejam compatíveis e adequados à sua finalidade”.
A contrario sensu, portanto,
caracteriza-se terrorismo se o juiz entender que os objetivos e meios do
movimento social são incompatíveis e inadequados à sua finalidade. Risco
grande, portanto.
E a punição ao terrorismo se
amplia também para os lados, punindo-se quem dá abrigo ou guarida (seja lá o
que isso queira dizer) a pessoa de quem se saiba ou se tenha fortes motivos
para saber, que tenha praticado ou esteja por praticar crime de terrorismo
-criando uma inédita figura culposa de favorecimento, com a bagatela de quatro
a dez anos de reclusão (art. 241).
Por fim, nada menos conforme a
esse direito penal da emergência, do que a causa de aumento do art. 242, do
tipo de terrorismo, segundo a qual as penas serão aumentadas se as condutas
forem praticadas durante ou por ocasião de grandes eventos esportivos e etc.
Aqui se explica um pouco o porquê da urgência de aprovação do projeto.
Bullying e stalking são temas
da moda e nada melhor do que aproveitar o prestígio e estender a eles a tutela
mágica do Direito Penal. Que Direito Penal será esse, devem se perguntar os
autores do projeto, se não pode ir a todos os campos, perscrutar todas as
asperezas, intervir em todos os conflitos, mesmo os mais íntimos?
A inépcia dos tipos consegue
ser ainda pior que a decisão de criminalizar.
A “perseguição obsessiva ou
insidiosa” (art. 147) destina-se a tutelar a liberdade, mas não se sabe
exatamente qual e por isso atira para todos os lados, protegendo a “integridade
psicológica”, a “capacidade de locomoção” e a “perturbação a esfera de
liberdade”, seja lá o que isso possa significar.
A intimidação vexatória, por
sua vez, é pródiga nos verbos, em que reúne condutas bem distintas: intimidar,
constranger, ameaçar, assediar sexualmente, ofender, castigar, agredir,
segregar. Tira-se de barato que repete o erro da criminalização do assédio
sexual, em que constranger, tradicional verbo transitivo direto e indireto na
linguagem do direito penal, vem esvaziado de seu conteúdo.
A questão mais grave, porém, é
que todas essas condutas, a serem praticadas direta ou indiretamente (o que as
torna ainda mais inimagináveis), devem ocorrer com o agente valendo-se de pretensa
situação de superioridade.
E aqui o busílis é mais sério,
pois ou o agente se vale de uma situação de superioridade (e teremos a
criminalização do assédio moral, comum em especial nas relações de trabalho) ou
apenas projeta sua própria e inexistente situação de superioridade (e o crime
se aproxima, por exemplo, de alguma forma qualificada de injúria).
Mas nada representa melhor a
emergência do que a criação do crime de milícia –dirigido a combater a situação
das comunidades dominadas do Rio de Janeiro. Incapaz de estipular por si só
condutas abstratas, o projeto resolve explicá-las ao público leigo, com a
discutível técnica de exemplificação:
“Se a organização criminosa se
destina a exercer, mediante violência ou grave ameaça, domínio ilegítimo sobre
espaço territorial determinado, especialmente sobre os atos da comunidade ou
moradores, mediante a exigência de entrega de bem móvel ou imóvel, a qualquer
título, ou de valor monetário periódico pela prestação de serviço de segurança
privada, transporte alternativo, fornecimento de água, energia elétrica, venda
de gás liquefeito de petróleo, ou qualquer outro serviço ou atividade não
instituída ou autorizada pelo Poder Público, ou constrangendo a liberdade do
voto”.
O projeto faz crer, e nisso
reside seu defeito, que a situação só pode ser punida pela criação de um novo
tipo –este sim eficaz. Mas a ânsia de explicar as possibilidades de extorsão
fragiliza a própria compreensão do “domínio ilegítimo de território”.
A dificuldade sempre residiu
em questões de prova e, mais precisamente, em enfrentar o poder, não na
ausência de tipo, eis que a cumulação de extorsões e formação de quadrilha
sempre foi juridicamente viável.
Mas a ideia da autoria
incorporada pela cláusula do domínio do fato, a tipificação do enriquecimento
ilícito (plasmando a inversão do ônus da prova), a ampliação do início da
execução para atos preparatórios imediatamente anteriores, segundo o plano do
autor, enfim, tudo está a indicar que, como a jurisprudência que vem se
formando nos momentos de exceção, a exigência da prova tende a ser cada vez
mais flexível.
O futuro parece não reservar
ao direito penal a mesma rigidez do sistema de provas, fato de que, certamente,
vamos nos arrepender no futuro, quando se espalhar para todos os tipos.
Princípios, dificilmente se regeneram, uma vez rompidos.
O direito penal de emergência
se junta ao direito penal do autor, ademais, quando o projeto estabelece
circunstância qualificada pela participação de ex-agente do sistema de
segurança pública (supra item 4). E, a despeito de ser um crime que se dirige
fundamentalmente à intimidação coletiva (pelo tal ‘domínio territorial’ ou
sobre a comunidade) a pena da milícia pode ser ainda aumentada quando a
violência ou grave ameaça recair sobre pessoa incapaz, com deficiência ou idoso
–como se fosse possível a existência de uma comunidade sem incapazes, idosos ou
deficientes.
Quando a causa de aumento é
obrigatória, representa na verdade, um disfarçado aumento de pena. E aí sim, o
legislador da emergência pode se dar por satisfeito, porque o novo tipo já
atingiu a pena máxima de trinta anos. Não há mais por onde crescer –quem poderá
lhe acusar de não ter resolvido definitivamente o problema das milícias?
E como convém a um país que
cresce no cenário internacional e passa a ser disputado como destino de
imigrantes, nada melhor do que prevenir e dobrar as penas de quem, por exemplo,
oculta clandestino ou estrangeiro irregular. Bush manda lembranças.
3-) O desbalanceamento dos crimes
Uma das principais funções da
codificação, na área penal, é justamente o balanceamento dos crimes.
A edição de leis
extravagantes, em momentos distintos, com preocupações imediatistas em regra
impede esse equilíbrio da tutela dos bens jurídicos. A questão costuma se
resolver com os códigos, quando todos os tipos podem ser reequilibrados no
mesmo momento, condensando as diversidades de tratamento que as influências do
tempo marcaram. Desperdiçar essa oportunidade é quase como jogar o esforço de
produzir um Código fora.
As lesões corporais, por
exemplo, por mais graves que sejam (e o projeto cria lesões graves de
diferentes graus) são sempre tênues perto da dimensão de outros crimes, como os
patrimoniais ou provenientes da emergência penal. O furto qualificado equivale
à lesão dolosa que provoca enfermidade grave e incurável; incapacidade
permanente para o trabalho então exercido ou debilidade permanente de membro,
sentido ou função.
O roubo de uma carteira
equivale à lesão que causa perda de membro, inutilização de sentido,
incapacidade para qualquer trabalho ou deformidade permanente. Afinal, entre
patrimônio e integridade física, o direito penal nunca teve dúvidas qual
tutelar melhor; continua não tendo.
O desnível do sequestro (pena
de um a quatro anos) que tutela só a liberdade com os crimes patrimoniais se
mantém –profundo, quando se compara com a tutela da mesma liberdade na
extorsão. Com a elevação das penas dos crimes contra a honra, torna-se muito
mais grave ofender alguém pela internet do que mantê-lo em cativeiro por até
quinze dias.
O furto de automóvel, se o
objetivo for levar o veículo a outro Estado, é mais grave do que o de uma
residência. O bem jurídico tutelado tem pouco a ver com o direito penal -é, na
verdade, o interesse das companhias seguradores –porque existe bem mais seguros
de automóvel do que residências.
Na mesma linha do interesse de
grandes corporações, reside a gravidade mantida aos crimes de violação de
direito autoral de videofonograma. O camelô, vendedor de CDs e DVDs piratas,
que são basicamente os únicos alcançados pela seletividade do sistema de
repressão pela proteção do direito autoral, continuam párias da suspensão
condicional do processo.
Na ânsia de aumentar penas, o
projeto amplia a punição das falsidades até a sanção de cinco a mais de dez
anos (se na atividade comercial, art. 262, § 2º) e revoga a falsidade e uso de
atestado e certidão, sob o pretexto de unificar a figura do documento,
aumentando sensivelmente a punição que o legislador anterior reconhecera de menor
gravidade.
A receptação culposa (art.
166, §3º) também está entre os crimes que teve sua pena ampliada, no caso para
se equiparar ao furto doloso –e a receptação dolosa torna-se mais grave do que
o próprio furto (que deve gerar no cotidiano forense situações inusitada de réu
que prefere confessar ter subtraído o bem, por ser menos grave do que adquirir
de quem o subtraiu). Afinal, receptação é crime grave que desassossega a
coletividade...
E na figura de lavagem de
capitais o projeto fez o que parecia inimaginável criando uma elasticidade na
pena ainda maior que a do tráfico de entorpecentes e que beira a
inconstitucionalidade, pois oscila nada mais do que entre o mínimo de 3 e o
máximo de 18 anos.
A preocupação ecológica cria
outros tantos monstros –além da já propalada omissão de socorro animal.
Nenhum deles parece mais
desproporcional do que crime contra a fauna do art. 388, com o acréscimo de seu
§5º (caça profissional) que, entre outras barbaridades, leva uma conduta como
perseguir espécimes da fauna silvestre a atingir a pena de seis a doze anos de
reclusão -praticamente a mesma do homicídio, mas sem a necessidade de um
cadáver, nem mesmo do mundo animal.
Talvez se equivalha à promoção
ou mera participação de confronto de animais que possa levar à mutilação ou
morte (art. 395). Se ocorre a lesão grave do animal (nesta rinha de galo
criminalizada) a pena mínima é de três anos de reclusão (§1º); mas se a mesma
lesão for praticada intencionalmente no ser humano, com debilidade permanente
de membro, sentido ou função, ou causando enfermidade grave e incurável (por
exemplo, art. 129§2º), a pena mínima é de apenas dois.
Mas o desbalanceamento do
direito penal não se dá apenas pelo quantum, mas também pelo conteúdo da
proibição.
E nesse sentido, o projeto
corrompe seus próprios princípios, ao fazer tábula rasa da ofensividade que
trouxe como estandarte na Parte Geral, com a expansão das hipóteses do perigo
abstrato, a coqueluche do direito penal preventivo.
É o caso mais especificamente
do crime contra o patrimônio de “Dano aos dados informáticos”, por equiparação.
Na mesma pena de quem destrói, danifica, deteriora, etc, incide quem produz,
mantém, vende, obtém, importa ou distribui... programas e outros dados
informáticos, destinados a destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia
(art. 164, § único).
É a transposição para o campo
cibernético da antiga contravenção de posse de gazua ou chave falsa, de
discutível constitucionalidade. O legislador optou por dar um passo atrás,
tornando punível a simples conduta de obter ou manter um programa desse tipo,
inaugurando a criminalização do perigo abstrato ao patrimônio.
A punição do perigo abstrato
também se repete na sabotagem informática (art. 210), em que à ação do hacker
se equipara quem produz, mantém, vende, obtém, importa ou distribui códigos de
acesso –mais ou menos como punir o fabricante da arma pelo crime posterior com
ela empregado, ou o porte de arma com a mesma pena do crime de dano com
realizado com o instrumento.
Antecipação de tutela, aliás,
que o projeto herda acriticamente do ECA, em relação à posse, aquisição e
armazenamento de fotografia ou vídeo com sexo envolvendo crianças e
adolescentes (art. 496)
E a ânsia de antecipação do
punir acaba por provocar inexplicáveis inversões, como o fato de que guardar
moeda falsa seja punida com pena de 3 a 8 anos (art. 259, §2º), ao passo que a
aquisição de produtos de pequeno valor com ela só é punido com pena de 1 a 4
anos de prisão.
No estelionato massivo, outra
badalada inovação, o projeto contempla a ideia de causa de perigo (destinada a
produzir efeitos em um número expressivo de vítimas) para aumentar a pena em um
crime de dano.
E na tumultuada legislação de
trânsito, a que mais sofre alterações de emergência, na direção sob influência
de álcool, o projeto optou pela solução de manter convivendo um tipo de perigo
abstrato (sendo manifesta a incapacidade para fazê-lo com segurança) e outro de
perigo concreto (expondo a dano potencial a segurança viária), ambos com a
mesma pena e ainda sem prejuízo da responsabilidade por qualquer outro crime cometido.
A redação sugere a
possibilidade de uma cumulação inédita, na mesma ação, de crime de dano, perigo
concreto e perigo abstrato –o que certamente será repelido pela jurisprudência
(quem sabe mais adiante acusada de amolecer com os criminosos de trânsito).
4-) O direito penal do autor
Da mesma forma que a
proliferação dos crimes de perigo abstrato esvazia a promessa da ofensividade,
os resquícios de direito penal do autor corrompem a vinculação da pena à
culpabilidade, merchandising do projeto estampado em seu artigo primeiro.
Se o agente é punido mais pelo
que é, do que pelo fez, a noção de culpabilidade perde força –trata-se de carta
marcada antes mesmo de ser sorteada.
Os resquícios desse
despropósito se encontram ocultos, disfarçados, mas ainda presentes no projeto.
A fúria punitiva que
determinou a criação da associação qualificada pela milícia produz um exemplo
virtuoso –a causa de aumento, que praticamente faz dobrar a pena, se a
associação é integrada por agentes ou ex-agentes do sistema de segurança
pública ou das forças armadas, ou por agentes políticos (art. 256, §3º).
É certo que a realidade
demonstra há tempos que o crime organizado se escora no próprio Estado (daí a
dificuldade de punição, mais do que a falta de um tipo), mas querer combatê-la
com um apenamento de emergência chega às raias do absurdo –a qualificação por
ser o autor um ex-agente do sistema de segurança (ou seja, nem sequer pelo que
é, mas pelo que foi) não se coaduna minimamente com o conceito de direito penal
do fato.
E eis que o direito penal do
autor também ressurge no ponto alto do projeto, a descriminalização do porte
para uso pessoal de entorpecente. Entre os critérios para determinar se a droga
se destinava a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da
substância apreendida, à conduta, ao local e às condições em que se desenvolveu
a ação, bem como às circunstâncias sociais e pessoais do agente.
Ao introduzir no tipo penal as
circunstâncias sociais e pessoais do agente como elemento distintivo do porte
para uso pessoal ou comércio, recria-se a ideia de que o agente pode ser punido
pelo que é (ou foi) e não pelo que fez.
Embora os indícios apontem no
sentido de que os autores até tenham agido de boa-fé, não afastam, ou ao revés,
estimulam, que determinado agente seja ao final punido pelo tráfico, havendo
alguma espécie de dúvida em razão, por exemplo, de uma reincidência. A partir
do momento em que uma reincidência pode ajudar a definir o crime praticado em
outro delito, o direito penal se afasta do fato –em um caminho sem volta.
E, a propósito, o Código
também perde a oportunidade de corrigir uma outra invasão do direito penal do
autor, com a importação quase sem alterações, da recente lei de entorpecentes
(estatísticas do Departamento Penitenciário estipulam que a proporção de presos
por tráfico de entorpecentes simplesmente dobrou depois de sua edição).
A hipótese do tráfico
privilegiado, que permite a redução de 1/6 a 1/3, desde que o agente seja
primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem
integre associação ou organização criminosa de qualquer tipo.
Temperar a punição, nestas
situações, é um dos poucos avanços da Lei de Entorpecentes. Mas, uma vez que o
dedicar-se a atividades criminosas é quase letra morta (criando uma
circunstância não apreciável para além da reincidência ou primariedade), e a
integração a organizações criminosas em regra de difícil prova, a redução tem
mesmo sido expressivamente vedada nos casos de reincidência (ou de maus
antecedentes).
E nestes casos, a aplicação do
direito penal do autor exsurge com evidência. A diferença entre uma pena de 5
anos a quem não é primário (ou não tem bons antecedentes) e a de 1 ano e 8
meses a quem é, é tão profunda que se pode dizer, sem chance de erro, que dois
terços da pena são decorrentes não do tráfico que o agente praticou -mas do
reincidente que ele é.
E a reincidência aqui (ou os
maus antecedentes) nem são específicos: uma condenação anterior por porte para
uso pessoal, por exemplo, tem sido aceita na jurisprudência para impedir a
redução (e triplicar o valor da pena se assim não fosse). A ofensa à
proporcionalidade é manifesta.
5-) Os pecados da redação
No direito penal, linguagem
não é apenas instrumento –é também garantia.
A redação do tipo concentra a
limitação do poder de punir. O princípio da legalidade é também esvaziado
quando a linguagem é vaga ou demasiadamente ampla que deixa de cumprir a função
de controle. Neste sentido, o projeto amplia a tendência da segunda metade do
século XX na expansão verbal dos tipos, retratando a ânsia de cercar todos os
comportamentos possivelmente nocivos, rumo ao direito penal máximo (em que
todas as condutas possam ser confortavelmente acolhidas).
Mas os pecados de redação, no
caso do projeto, vão além das digressões ideológicas. Circunstâncias legais que
invadem competências judiciais, causas de aumento que desrespeitam a lógica do
tipo, equiparações dissonantes. De tudo um pouco, se encontra nas redações que
não apenas evitaram corrigir erros de legisladores antigos, se solidarizam
praticando outros.
Eles até podiam se escusar na
pressa, mas tendo sido esta deliberada, feita inimiga não só da perfeição, como
do debate, aos autores não lhe será permitida arguir a própria torpeza como atenuante.
Alguns exemplos que uma
observação rápida nos permite identificar.
O art. 71, § único, determina
que as causas de aumento ou de diminuição terão os limites cominados em lei,
não podendo ser inferiores a um sexto, salvo disposição expressa em contrário.
Mas se elas terão os limites cominados em lei, a quem é o comando de que não
poderão ser inferiores a um sexto? Nem ao próprio legislador que excetua as
disposições expressas em contrário (uma delas, aliás, é a causa de diminuição
genérica, com a mínima redução de 1/12, a que já fizemos referência).
A multa não depende mais da
previsão expressa (decisão no mínimo imprudente) e passa a ser aplicada em
todos os crimes que tenham produzido ou possam produzir prejuízo materiais à
vítima.
A função da cominação das
penas é do legislador, no caso, indevidamente transferida ao juiz (e, portanto,
também à instrução do processo) pela cláusula do prejuízo. Mais, a regra do
prejuízo potencial é mais ainda indeterminada.
E, por fim, uma questão em
aberto: porque condicionar a previsão de multa ao prejuízo da vítima, se a
multa será paga ao Estado (Fundo Penitenciário)? Fosse optar pela
indeterminação da cominação, seria melhor que estabelecesse multa nos casos de
obtenção de vantagem patrimonial pelo agente –respeitando a lógica da cominação
anterior.
O projeto cria a distinção, em
vários dispositivos, de crime que afete a vida. Supõe-se que quer tratar de
crimes com resultado morte (incluindo-se os que não são contra a vida). Teria
sido mais razoável que eliminasse uma desnecessária causa de divergências.
A inclusão da violência
doméstica como circunstância qualificadora do homicídio é, no mínimo,
temerária, pois pode contemplar situações das mais divergentes. Não se trata de
forma de execução ou motivação, mas apenas um contexto.
A chance de propagar
injustiças (tratamento isonômico de situações díspares) é gigantesca. Tanto que
os próprios autores temperaram a redação com o acréscimo da locução em situação
de especial reprovabilidade ou perversidade do agente.
A especial reprovabilidade,
que é também vaga, se refere mais à aplicação da pena do que propriamente à
figura típica, aumentando a indeterminação que esvazia a proteção do princípio
da legalidade. Se a conduta é mais ou menos reprovável é questão do campo da
censura, ou seja, da fixação da pena pelo juiz, não do estabelecimento da
distinção entre a figura simples e a qualificada (com todas as consequências
que um enquadramento errôneo produz). E a perversidade já estaria contemplada
na qualificadora do meio cruel.
Parece que o legislador
compreendeu que a violência doméstica cria situações distintas que não se pode
equiparar. Devia ter evitado fazê-lo para os efeitos de criar mais uma dúvida.
A criação da culpa gravíssima
(art. 121, §5º) tem um destino específico: evitar a propagação da punição dos
crimes de trânsito por dolo eventual. Nesse sentido é justa. Mas é
desnecessária a explicitação de exemplos no tipo penal, técnica de redação das mais
discutíveis. É certo que as leis devem ser redigidas em linguagem
compreensível, mas transformar o tipo penal em explicação para o leigo não é a
melhor forma de preservar a formalização do controle e o sentido da tipicidade.
O perdão judicial poderia ser
estendido a outras hipóteses ou mesmo servir de cláusula genérica para que o
juiz, dosando as consequências que o fato já provocou na vida do agente,
pudesse considerar a punição desnecessária. Não foi. O máximo que o projeto
chegou foi inserir um causa de diminuição, quando a exposição pelo crime
debilitou a privacidade do agente.
A simples alteração de redação
dos casos de perdão nos crimes contra a vida só veio a trazer maior
indeterminação. Não parece razoável que o parentesco possa servir de causa suficiente
para a isenção da pena como indica o ou que a redação do parágrafo 8º faz
presumir. É preciso, de toda a forma, um vínculo subjetivo de afeição ou
sofrimento.
O projeto faz bem em
distinguir atos de violação de outros atos libidinosos; mas o novo molestamento
sexual não é de fácil compreensão, especialmente em sua modalidade
privilegiada. O tipo básico criminaliza quem, mediante violência ou grave
ameaça ou se aproveitando de situação que dificulte a defesa da vítima,
constrange outrem à prática de ato libidinoso.
Uma vez que aquele que se
aproveita da situação de vulnerabilidade (o bolinar no ônibus lotado, exemplo
midiático da exposição de motivos) também está contido no caput, qual seria
exatamente o molestamento sem violência ou grave ameaça da figura privilegiada?
O equívoco da redação do
assédio sexual não se deve aos autores do projeto. Mas é certo que não a
corrigiram. Constranger para o direito penal tem o sentido de forçar (a fazer o
que não se quer, no constrangimento ilegal; à prática de ato sexual, no
estupro; a fazer ou tolerar que se faça, na extorsão etc). Falta um verbo a que
seja a vítima constrangida enfim –até porque constranger ao ato sexual seria
estupro.
E o erro da lei de
entorpecentes também se mantém íntegro, fixando entre os critérios de aplicação
da pena a natureza do entorpecente.
Se o tipo penal só se aplica a
substâncias entorpecentes, porque distingui-las por sua natureza?
Isso abre caminho para
decisões que apenam de forma mais gravosa o tráfico de cocaína sobre o de
maconha e o de crack sobre o de cocaína em pó, por exemplo, como se a fazer,
por via jurisdicional, e sem qualquer amparo científico, um ranking de
entorpecentes, impreciso e inseguro, aberto, inclusive, a discriminações
sociais.
O crime de denunciação falsa é
paradigmático. A conduta proibida é dar causa à instauração de investigação ou
procedimento contra quem sabe inocente; a causa de aumento amplia a punição se
o agente se serve de anonimato. A questão aqui é o absurdo de dar causa à
instauração de inquérito policial ou outra investigação por meio de denúncia
anônima –o Estado pune o agente por sua própria leviandade.
Mas a redação mais grotesca é
a da exclusão do crime de emissão ou distribuição de título ou valor mobiliário
irregular (art. 352, §2º), que fala por
si só: não incorre no crime descrito neste artigo o autor que não dispunha de
meios razoavelmente disponíveis para ter conhecimento da imprecisão ou
falsidade...
6-) O esvaziamento do processo
O projeto não se satisfaz em
engrandecer o direito penal, reverenciado como instrumento eficaz de controle
de criminalidade e regulação social. Investe também no esvaziamento do
processo.
A pretensão de regular também
as normas processuais se insinua ao longo do texto, quando os autores pretendem
estabelecer a prova cabível (no delito de direção sob influência de álcool,
art. 202, §s1º e 2º), o valor da prova (delação somente será admitida quando
acompanhada de outros elementos probatórios convincentes, art. 106, III) ou
quando se assume na função de definir o recebimento de denúncia (assim
considerado o momento posterior à resposta preliminar do acusado, art. 348,
§4º).
Mas é a criação do instituto
da barganha (sintomaticamente inserido no mesmo título que a colaboração com a
justiça¸ art. 105) em que a pretensão de esvaziar o processo se mostra mais
efetiva e, infelizmente, eficaz.
O projeto faculta às partes,
no exercício da autonomia das suas vontades (pressupondo-se, lógico, o
equilíbro entre o Estado e o indivíduo acusado de um crime e muitas vezes
preso), a celebração de acordo para aplicação imediata das penas, antes da
audiência de instrução e julgamento (art. 105).
O projeto exige a confissão do
acusado, antes da audiência de instrução (ainda que o interrogatório pela lei
processual só tenha lugar após a oitiva das testemunhas) e em troca entrega a
ele a obrigatoriedade de fixação da pena no mínimo legal, a proibição do regime
fechado e, se houver acordo com o acusador, também uma causa de diminuição.
O projeto tonifica o poder do
Ministério Público (pois sua manifestação, em regra vinculada, é tratada como
autonomia da vontade) e estimula a confissão com a promessa de uma pena mínima
(e se houver vontade, uma redução). Ignora as condições em que essa autonomia
da vontade possa estar presente, nas circunstâncias de uma acusação e admite,
enfim, que alguém possa cumprir pena de prisão sem processo.
O desmantelamento do processo
tem o álibi da vontade do réu, transformando-o de irrenunciável a disponível, e
confere plena eficácia à confissão (o que décadas de refinamento da doutrina
buscaram evitar).
A ideia do processo como
garantia, que informa o conteúdo de um processo penal democrático, se esvai e
tal como o direito penal, é substituído pela utilitária noção da eficácia.
Civiliza, por assim dizer, o processo penal, reduzindo-o a um acordo de
vontades, no qual se sobreleva, em especial, a vontade de não haver processo.
O processo penal como garantia
é um bastião essencial para conter o poder punitivo –função última do aplicador
da pena. Esvaziá-lo é mais um condimento da expansão do direito penal e, por
conseguinte, da redução do controle.
Apostar na eficácia diante da
garantia é talvez o mais grave pecado do projeto –uma opção que não tem volta.
7-) O projeto pelo projeto
O ambicioso projeto de Código
Penal é, sobretudo, uma atualização.
Não há profunda alteração de
paradigmas. O projeto não abandona a pena de prisão, como sugere sua exposição
de motivos –antes, a vulgariza.
Não balanceia a incorporação
dos tipos da legislação extravagante como insinua –mas se contamina por ela.
Não introduz um veio teórico
definido, embora vá superpondo registros mais modernos (como a imputação
objetiva) às teorias tradicionais.
E mesmo quando elenca sua
exposição de princípios, a esvazia paulatinamente na individualização de tipos
e penas.
Como atualização, insere
novidades que são seus maiores pecados e reproduz quase integralmente a
legislação mais recente, cujos princípios se chocavam com a própria codificação
–e por isso se acomodam tão desconfortavelmente a ela.
É dirigista nas penas,
tratando circunstâncias judiciais como agravantes ou causas de aumento e
formatando regras para aquelas que deixa a cargo do juiz –mas ao mesmo tempo abre
enormes espaços à indeterminação naquilo que é menos indeterminado, como o
tipo, a cominação e a progressão.
Enfim, sob o ponto de vista
lógico, é o samba do jurista doido. Sob o ponto de vista ideológico, cumpre a
tradição do inusitado, ao deixar a esquerda perplexa e a direita enraivecida.
No campo moral, há avanços
nítidos, com a revogação da hipócrita casa de prostituição (que a
jurisprudência começa a fazer por conta própria), a ampliação das hipóteses do
aborto legal, a descriminalização do porte de entorpecentes e a instituição dos
novos tipos de eutanásia e ortotanásia. Mas o início do processo legislativo
parece ter deixado claro que estes são os dispositivos menos propensos a ganhar
força, correndo o risco de terem servido como meros fogos de artifício.
Em certa medida, o processo de
construção do projeto antecipou-se às práticas do próprio parlamento que buscou
replicar: votações por maioria, concessões recíprocas, temas interditados. Ao
final, um término apressado que não condiz com a tarefa de codificar setenta
anos de vigência do anterior.
A urgência na votação supõe
que a edição do Código é, em si mesma, mais importante do que seu conteúdo
–talvez pela propalada necessidade de adequar a legislação a um patamar
globalizado, como conviria a um país em franca ascensão e pleno de visibilidade
internacional.
Mas será que neste campo tão
intimamente ligado aos direitos humanos e aos limites do poder vale a pena
avançar neste frenesi, apenas para carimbar o país com uma tal modernidade que
talvez, na essência, não seja mesmo a nossa?
Vale a pena entregar
garantias, em nome de uma propalada eficácia?
Fonte: Sem Juízo, MarceloSemer.
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