INSEGURANÇA BLINDADA
Alfredo Boneff
De acordo com dados do Sistema Integrado de Administração Financeira para os Estados e Municípios (Siafem/RJ), até o último dia 10 de novembro, o governo de Rosinha Garotinho não havia aplicado um centavo sequer na área de inteligência em segurança pública. Em todo o ano de 2005, os investimentos destinados a tal finalidade foram módicos R$ 61.371. Tais números são sintomáticos de uma gestão que tem como um de seus principais problemas justamente a questão da segurança.
Símbolo de uma lógica pouco criteriosa de intervenções nas favelas, um personagem ganhou destaque na mídia nos últimos meses: o caveirão. Veículo blindado utilizado em incursões cuja finalidade seria o combate ao tráfico, talvez seja a representação mais concreta de uma política ineficaz, que expõe moradores(as) de comunidades e policiais.
A recente declaração (15/11) do governador eleito, Sergio Cabral Filho – de que extinguiria o veículo – provoca discussão sobre os rumos a serem tomados nessa área. Estudiosos(as) da segurança pública, vítimas de violência e representantes de entidades de defesa dos direitos humanos e de corporações policiais contribuem para um debate que expõe os desdobramentos de uma questão complexa. Nela misturam-se traços históricos de opressão, de cunho racial, e argumentações sobre a vulnerabilidade do trabalho da polícia.
Relatos de terror e abuso reforçam a urgência de uma guinada no setor. Sobretudo, tais opiniões apontam para uma conclusão óbvia: uma política sólida na área da segurança não passa por métodos obscuros como invadir comunidades em busca de “almas”. A tarefa de construir essa nova lógica é bem mais árdua, mesmo porque corpos e almas de cidadãos e cidadãs não podem ser avaliados em reais.
“Tu é advogado de bandido?”
No último dia 13 de março, diversas entidades lançaram uma campanha contra o caveirão para denunciar abusos e ameaças que teriam sido sofridos por moradores(as) de favelas em ações que contaram com a utilização do blindado. Mais recentemente, em 24 de outubro, moradores(as), associações de moradores(as) e organizações de defesa dos direitos humanos realizaram uma coletiva de imprensa na Vila Olímpica do complexo do Alemão, conjunto de 12 comunidades que abrange os bairros de Ramos, Olaria, Inhaúma e Bonsucesso (Zona Norte do Rio), e que tem população estimada em 300 mil pessoas. O objetivo foi o de tornar públicas violações de direitos humanos que estariam ocorrendo desde que o Batalhão de Operações Especiais (Bope) da PM ocupou a comunidade, no dia 11 de outubro.
Um das testemunhas de tais violações é o eletricista Jorge Ribeiro. Nascido há 41 anos na favela Nova Brasília, no Complexo do Alemão, trabalha atualmente na rádio comunitária Sinai. Recentemente, ao tentar sair da favela dirigindo seu carro, ele relata que foi abordado por integrantes do Bope. Jorge diz que foi ameaçado de violência física e obrigado a retirar do veículo bancos e tapetes. Ao reagir, dizendo que conhecia seus direitos, teria sido alvo da ironia de um policial: “Tu é advogado de bandido?.”
Para ele, não se trata de um problema exclusivo do atual governo ou, tampouco, de uma questão racial. “Isso ocorre desde governos passados. A parte racial fica de lado. O policial – muitas vezes um pai de família – é jogado numa comunidade onde não conhece nada”, analisa. Mesmo assim, ele não deixa de criticar a política de segurança vigente. “A culpa vem de cima, não do PM. Caveirão não resolve o problema. Tem que haver uma política de policiamento diferenciado, capaz de integrar policial e comunidade”, defende.
Novos diálogos
Coordenador do Ibase, Itamar Silva comenta as declarações de Sergio Cabral com ceticismo. “O que se espera de um novo governo é um sinal claro de que direitos humanos serão incorporados na relação com as comunidades. Não percebi isso”. De acordo com ele, é urgente que os movimentos sociais convoquem o novo executivo estadual para um diálogo.
Para Itamar, tais reflexões e debates sobre segurança pública devem acontecer no próprio âmbito das instituições, na forma de uma saudável autocrítica. Ele exemplifica ao falar dos “Diálogos Contra o Racismo”, lançado pelo Ibase em 2001 com a proposta de dar visibilidade à questão racial no Brasil. “A iniciativa é muito legal, tem esse caráter de provocar reflexões a partir de uma cultura do racismo e de seus comportamentos. Mas tem que enfrentar temas como esse da segurança pública. É preciso avançar nesse sentido em 2007.”
Athayde Motta, coordenador do Ibase, concorda com a percepção de Itamar. Ele acrescenta que, em 2007, a campanha terá como uma de suas prioridades a incorporação de propostas de políticas públicas a partir das demandas de movimentos populares.
Violência e raça
Divulgados em 23 de novembro, os dados da pesquisa “Caminhada de crianças, adolescentes e jovens na rede do tráfico de drogas no varejo do Rio de Janeiro – 2004 / 2006” mostram pontos em comum e outros contrários ao raciocínio de Jorge. Realizado pela ONG Observatório de Favelas, o levantamento apresenta um retrato sem disfarces do recorte racial dentro da equação segurança pública/tráfico.
Coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos da instituição e doutora em psicologia social, Raquel Willadino ressalta esse aspecto. “O viés racial está presente em diferentes práticas de violência no Brasil e, sem dúvida, tem sido consolidado historicamente. Um exemplo contundente são os dados sobre violência letal contra adolescentes e jovens no Brasil, que colocam em evidência a idade, a cor e a geografia destas mortes no país: jovens, negros, de 15 a 24 anos, moradores de favelas e periferias dos grandes centros urbanos são as principais vítimas dos homicídios. A vitimização deste grupo tem configurado um verdadeiro genocídio, com repercussões na estrutura demográfica do país”, afirma.
A pesquisa ouviu 230 jovens em 34 comunidades em diversas áreas do Rio de Janeiro. Na primeira fase foi aplicado um questionário com 94 questões relativas às relações de adolescentes e jovens com o tráfico. Numa etapa posterior, novas perguntas atualizaram os dados e, no período final, houve uma última atualização, entre abril e maio deste ano. Na fase de conclusão, constatou-se que, dos 230 jovens entre 11 e 24 anos consultados, pelo menos 46 haviam morrido.
Inteligência
Outros dados da pesquisa indicam que adolescentes e jovens que trabalham no tráfico não são invisíveis para grupos de policiais desonestos: 75% já foram espancados. Mais da metade foi extorquida e, no entanto, menos de 30% foram conduzidos para o sistema judiciário. “A pesquisa demonstra que as condições da vida no tráfico são muito duras e que o principal resultado da política de ‘guerra às drogas’, estabelecida há cerca de 25 anos e dirigida, em especial, aos grupos de jovens armados nas favelas, tem sido um número de mortes alarmante. Os principais atingidos são jovens, mas também são muitos os policias mortos e os reflexos dessa violência sobre todos os moradores dos espaços populares”, argumenta Raquel.
De acordo com ela, a construção de uma relação renovada entre polícia e comunidades exige revisão completa de métodos, uma verdadeira mudança na cultura de segurança no Rio de Janeiro. “Quando falamos em compatibilidade entre a eficiência policial e os direitos humanos nos referimos, por exemplo, a investimentos na inteligência policial; a uma maior integração dos diferentes atores do sistema de justiça e segurança pública para que as ações sejam mais eficientes e coordenadas; a medidas concretas para acabar com a corrupção e a impunidade; a uma formação de mais qualidade para os policiais com ênfase no uso de técnicas não letais; à independência dos IMLs; aos mecanismos de controle externo da atividade policial e, sobretudo, a estratégias que privilegiem a proteção à vida.”
Polícia, política e imprensa
Na opinião do pesquisador da ONG Justiça Global e deputado estadual eleito pelo PSOL, Marcelo Freixo, a “polícia do Rio de Janeiro é a de maior grau de letalidade do mundo inteiro, o que não significa qualquer eficácia”. Segundo ele, o atual governo não apresenta quaisquer propostas. “O problema maior é não haver uma política. O caveirão é um símbolo dessa lacuna. A campanha contra o veículo é contra uma concepção de segurança de guerra”, diz.
Em artigo intitulado “O blindado do Bope”, publicado no blog “Segurança Pública – Idéias e Ações”, o tenente-coronel Mário Sérgio de Brito Duarte, atual comandante do Bope, defende a utilização do polêmico veículo. “Ao dotar a Polícia Militar de equipamentos de proteção para deslocamentos em áreas e situações de risco máximo, quando o fogo de fuzis bandidos é realidade e não construção social e lingüística, o Estado procura incrementar uma estratégia eficaz de fazer-lhes frente; subtrair-lhes a capacidade de domínio nos espaços em que se apresentam, se homiziam e comercializam. A presença policial, como fato social legal, deve ser meta de todos os governos e aspiração das populações”.
Não parece ser exatamente essa a aspiração das várias instituições que divulgaram nota, no dia 17 de novembro, a respeito das declarações de Sergio Cabral sobre o caveirão. “Ressaltamos a importância política das declarações feitas pelo governador eleito, mas acreditamos que as mesmas só terão efetivo valor diante da extinção imediata dos blindados e, acima de tudo, é imprescindível que o governo eleito implemente uma mudança estrutural, priorizando a geração de emprego e o desenvolvimento de políticas sociais que apontem perspectivas reais para a juventude e para os trabalhadores.” A lista de signatários inclui Justiça Global, Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis, Observatório de Favelas e Grupo Legítima Defesa.
Outro aspecto levantado por Marcelo Freixo é a atuação da imprensa em episódios de violência ocorridos nas favelas. Para ele, as abordagens seguem uma tendência de mercantilização da violência nas comunidades. “É como se houvesse uma invisibilização de quem mora ali. Uma manchete como ‘Polícia mata três no morro do alemão’ é uma espécie de legitimação desta ação, sem que haja explicações para justificá-la”.
A marca da caveira
Entidades ligadas aos direitos humanos também apontam a prática da intimidação nas incursões do caveirão como outro problema a ser abordado. Esse caráter de terror já estaria implícito no próprio símbolo do Bope: dentro de um escudo preto e vermelho, uma caveira é cravada por um sabre e há duas pistolas cruzadas atrás dela. A nota já citada assinala tratar-se de “uma mensagem forte e inequívoca: o combate armado, a guerra e a morte”.
Em seu blog, o tenente-coronel Mário Sérgio comenta o símbolo da tropa: “Não fosse a intenção de reforçar o todo de idéias propostas para invalidar o uso da Viatura de Transporte Blindada, dir-se-ia que o símbolo do Bope tem esse significado, já que as pistolas anunciam as armas da PMERJ, ou seja, a força das armas; a caveira, com o sabre encravado, ladeada por louros, a morte, mas vencida por seus integrantes, mesmo os que pereceram, pois se transformaram em ‘sóis no céu do Brasil’ (frase da Canção do Policial Militar). ‘Vitória sobre a morte é nossa glória prometida’; este trecho da canção do Bope não deixa dúvidas sobre a intenção do símbolo. Vivemos a possibilidade da morte todos os dias. Que profissão neste país exige riscos e sacrifícios maiores? Quem duvida que visite nossa home page. Procurem na “Patrulha da Saudade”. Lá acharão fotos e informações sobre abnegados “Caveiras” que venceram a morte, encontrando-a. São filhos jovens e pais de filhos mais jovens ainda. Vida eterna aos Caveiras! Vitória sobre a morte!.”
No que diz respeito a intimidações do tipo “Se você deve, eu vou pegar a sua alma”, que seriam proferidas pelos auto-falantes do blindado, o comandante é enfático: “O alto-falante existe, mas seu uso deve ser técnico. Nenhuma utilização fora das prescrições deve ser tolerada. O Bope estará atento para isso.”
Corrupção
As práticas corruptas por parte de uma banda podre da PM ganham contornos nítidos na frase de uma ex-gerente do tráfico entrevistada pela pesquisa do Observatório de Favelas. “ (...) fui presa com umas cápsulas de fuzil e ai (sic) eu perdi R$ 5 mil. Fui presa na comunidade mas os policiais sabiam quem eu era e perdi mais R$ 5 mil. Depois fui presa em outro lugar e perdi R$ 10 mil porque os policiais também sabiam quem eu era (...) Por último, na quarta vez eu perdi R$ 6 mil. Meus amigos fizeram uma vaquinha e deram pra me soltar.”
Integrante da Comissão de Comunicação da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, o engenheiro Maurício Campos acredita que os blindados tornam-se um instrumento a mais nas mãos da parcela corrupta da polícia. Ele defende a restrição dos poderes policiais e a investigação da corrupção em todas as instâncias. “O combate à corrupção policial é urgente e não apenas em baixos escalões. O tráfico é uma rede que envolve ações nas fronteiras, políticos e a própria polícia.”
Caso Ítalo
Produtor cultural, 29 anos, Ítalo Lopes dos Passos era produtor cultural e integrante do grupo de hip hop Setor BF. Aluno do curso de audiovisual na Central Única das Favelas (Cufa), trabalhava em um programa de uma rádio comunitária da cidade de Mesquita e atuava na rede de grupos artísticos e culturais da Baixada Fluminense. Também participava da comissão responsável pela elaboração do Plano Diretor de Mesquita, representando a juventude do município.
Tais atividades e projetos – e todos os desejos e sonhos que os impulsionavam – foram abortados no dia 14 de setembro. Ao saírem de uma festa, Ítalo e o amigo Rafael Borges Andrade foram baleados por policiais à paisana. Atingido por nove tiros, Ítalo morreu no local. Rafael levou um único tiro e sobreviveu. Permanece sob proteção policial.
Após o crime, os policiais Paulo Rogério Barbosa Soares, lotado no 16º Batalhão da Policial Militar de Olaria, e André Marcelo Pereira Soares, lotado no Batalhão de Operações Policiais (Bope), foram detidos por policiais militares do 20º Batalhão da Policia Militar de Mesquita. O auto de prisão em flagrante é de nº199/53ª/06/set-06 e o RO nº3812/53ª/2006. Depois de serem presos, os policiais foram levados ao Batalhão Especial Prisional. O inquérito policial está sob a responsabilidade o delegado Jorge F. Zahra, da 53ª Delegacia Policial de Mesquita.
Um dos responsáveis pelas mobilizações por justiça é o vereador André Taffarel, do PT de Mesquita. Conhecido pela militância em movimentos sociais da região, Taffarel acredita que uma das soluções para o problema da segurança no Rio é o investimento em inteligência. “Falta à nossa polícia o que falta às melhores do mundo, ou seja, a questão técnica e investigativa. Muitas vezes a ação da polícia é feita para gerar resultados para a mídia.”
Ele lembra que os policiais que efetuaram a prisão dos criminosos acusados pela morte de Ítalo haviam entrado recentemente para a corporação. Os supostos criminosos ainda estão detidos.
Alternativas
Enquanto o próximo governo não tem início – e o destino do caveirão permanece no terreno das hipóteses –, determinadas possibilidades para a segurança pública são analisadas. Uma delas é o policiamento comunitário. Morador de Niterói, Marcelo Freixo cita o exemplo do Morro do Cavalão, na Zona Sul da cidade. Desde 2003 não se registra um homicídio na comunidade.
A estatística – que soa quase ficcional no atual contexto –, seria o resultado da atuação do Grupamento de Policiamento de Áreas Especiais (Gpae), instalado no local desde 2002. O trabalho conjunto de policiais treinados, realizado com associações de moradores do morro e do asfalto – aliado a projetos de saneamento básico e saúde –, resultou numa relação respeitosa entre moradores(as) e corporação.
Vale lembrar que, em 2002, oito policiais foram presos pela tortura e morte do ajudante de pedreiro Francisco Aldir de Souza, de 18 anos. O crime desencadeou protestos e dois ônibus foram incendiados. Posteriormente, levou também à instalação do Gpae no morro. “O estado tem que ocupar as comunidades de fato”, aponta Freixo.
Diretora do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm) e coordenadora da Rede Educação – principal eixo de programas do Centro – Eliana Sousa Silva afirma que a atual política de segurança pública tem como princípio, historicamente, uma divisão entre pessoas ricas e pobres. “Nas favelas estão os grupos socialmente mais vulneráveis, como os negros. Esta política acontece em função dessa conformação social. Mas houve um acirramento da violência neste governo, a partir de lógica de enfrentamento quase militar”, analisa.
Ela defende novas relações entre favela e Estado. “Há uma representação distorcida das favelas, com estereótipos formados em função dos conflitos. É preciso ter a compreensão do espaço da cidade como único, onde a segurança deve ser a mesma para todos os cidadãos.”
Apesar da constatação de que as palavras do novo governador acenam para a possibilidade de uma nova política de segurança, ela mantém uma postura cautelosa. “Apenas esta declaração não significa mudança. Por enquanto, é somente uma possibilidade.”
É a mesma posição do dublê de eletricista e radialista Jorge Ribeiro, aquele morador da favela Nova Brasília. “Estamos habituados a ouvir tanta coisa que não se concretiza... É esperar para ver.”
Fonte