domingo, 24 de junho de 2007

A CONVIVÊNCIA HIPÓCRITA E O OLHAR ESTRANGEIRO


"Estude numa creche. Olhe para as crianças. Elas somos nós antes de sermos violentados e nos tornado estrangeiros dentro de nós mesmos. Sejamos filhos pródigos e voltemos para nossa própria natureza: essa incompletude infinita e frágil que nos faz necessariamente vigilantes fabricadores de sentidos."



(Odemar Leotti)






A CONVIVÊNCIA HIPÓCRITA E O OLHAR ESTRANGEIRO


Odemar Leotti*


Estranhamentos, familiaridades e desacomodação. O não querer uma cultura geléia geral. Não há um mundo onde as coisas têm sentido em si. O que precisamos é nos separar das correntes sagradas da tradição. Aí vamos procurar o golpe derradeiro nessa metafísica transcendental, vamos proclamar o fracasso do projeto iluminista racional que se quer único e fora desse mundo, agindo em oposição à vida na terra. Temos que dar adeus a essas pretensões religiosas clericais e ilustradas que querem acabar com a religiosidade mágica das comunidades das gentes culturais. Temos que negar essa filosofia, aduladora da verdade, disse Nietzsche e me ensinou a não pensar dentro do rebanho. Então devemos lutar contra a universalização das leis naturais, em tudo que nela não sabemos. Vivemos para um não saber, lemos porque nunca sabemos, nunca saberes. Para isso devemos ser como os gregos pré-platônicos que aprendiam um saber para logo vivê-lo. Saber é para a vida vertiginosa e que flutua sobre o oceano do nada, essa barca de papel que precisa zingar sobre tempestades e calmarias. Devemos acabar com muletas como porvir, devir, progresso, desenvolvimento, perfeição. Devemos pensar agora e usar na mesma hora da feitura e depois pensar de novo. Só há sentir em primeira mão. Saber é para ação, é como pão, é o suficiente para o instante. Não devemos nos entulhar de saberes para não roncarmos acordados com a barriga cheia de pedras. Comer, beber, olhar, ouvir, tocar e pensar andam juntos, sabendo comemos, bebemos, olhamos, ouvimos, tocamos e pensamos e começamos a pensar para fazer tudo de novo em instantes mil. Pensamos saberes que nos tragam a vida como forma da sobareá-la em toda a sua intensidade instantânea de dor e prazer, de chegada e de despedida, de morte e de vida: eis a via que sempre vivemos. A perdemos muitas vezes, pisoteando-a na busca estéril de uma salvação do ser para uma vida ascética. Isso são formas não de sentir e sim de um re-sentir anulador e fechador da vida em sua porosidade molecular da fungada, do roçar entre o prazer em sua sensualidade divina que não acaba mas não termina, não vem de vez mas não vai para sempre, dá mas nega dizer que não faltará. Somos fruto desse frenesi constante de indigentes. Somos sim indigentes constantes em busca de maravilhamentos. Mas sofremos sentindo dor e prazer. Re-sentir não é sentir. É detrito que deve ser despejado, excluído do ser: sentir sim é importante: para rir e para chorar, para ver chegar e para ver partir, para a volta e a não volta. É assim que inventamos a vida, tocamos nossa jangada no oceano da vazio, do buraco profundo e abismal que é o infinito. É nele que nos alimentamos e tememos sua escuridão assombradora mas não vivemos sem sua infinitude que nos faz pequenos e temerosos. Sentir é alimentar-se não se sabe de que mas sabe um saber sobre nada, sobre o impensável, eis o paradoxo do saber por não saber.


Potência implica vontade que implica desejo de querer ir além de si mesmo para estender a vida continuamente. Querer criar um caminho preconcebido e certo é anular nossa forma de um saber sabor do momento conquistado às duras penas de um saber sobre o nada e o sombrio e ameaçador que é o não-saber sempre. Cada dia temos que construir um novo espaço para podermos nos instalar como pertencimento. A vida está implicada nessa relação como o viver constante e ininterrupto que é fruto de nossa tessitura constatante e incansável. Negar isso e se entregar a um saber superior que defina um poder sobre nossa vida é o mesmo que dispersar nossas forças dentro da própria vida.


É contra esse ascetismo que nega a vida , criador do ser ressentido que devemos jogar nossa força. Devemos sim é construir uma perspectiva que nos afirma a vida e não uma que a anule. Natureza, sabedoria e vida: a existência já está na própria vida. A estética não deve se prender a um sentido transcendental como a queria Kant. Ele mesmo chegou em um seu tempo maior a por em dúvida da possibilidade de se construir pensamento fora da experiência. O conhecimento não é algo que nos é revelado pela aplicação do método. Não é algo a ser buscado como objetivo de formação. Quais são as questões que devemos colocar acerca da própria possibilidade do conhecimento? Quais as condições de possibilidades do conhecer então. O conhecimento é uma forma de linguagem que necessitamos para fazer funcionar a intelecção entre as palavras e as coisas e daí nos instalar na vida: vida fruto de nossa própria criação. Vida feita da escrita, da nossa língua que inventamos para nela construir nossa pátria, nossa morada, nossa nação. Essa escrita nasce como fruto da experiência se sua feitura no roçar dos desejos, das imagens por ele fornecida com seus múltiplos componentes que faz funcionar nosso lento gesto. Precisamos de participar de sua tessitura, de sua feitura, pois é o prato que vai nos alimentar. Deixar para outros sua feitura é correr o risco de morrer envenenado. Portanto conhecer é se sentir no mundo sem ser uma ovelha no rebanho a espera da ordem do pastor. A construção contínua e ininterrupta do conhecimento deve ser feito para logo ser usada e jogado de lado como faz a criança. É um jogo para ser jogado sempre. Portanto experiência deve ser vista como o jogo de aion, já nos ensinou Heráclito. Experiência para ser esse jogo da vida precisa de liberdade para sua experienciação. Não pode ser uma liberdade castradora como a liberdade que nega a vida presente em busca de um mundo transcendentalizado fora desse mundo. Palavras constituem subjetividades, cuidemos delas sempre para que sejamos sujeitos como fruto de nossas cumplicidades. Não existe a vida como uma coisa em si. Não existe o pensamento, o saber como uma coisa em si fora desse mundo. Não existe uma qualidade superior oculta que devemos desvelar. Existe sim o abismo da infinitude do saber e a necessidade de estarmos construindo-o como faz o jangadeiro que precisa ir e vir ao mar: tronco por tronco, cordas entrelaçadas entre eles, panos viram velas e usam a força dos ventos. Nem vento de mais nem vento de menos. Eis o conhecimento: devemos construí-lo palavra por palavras. Entrelaçá-las com as cordas das conexões das escritas com suas noções, estratégias e sua táticas. Só assim o mundo emerge na magia maravilhadora, essa mirabilis que não é milagre como quis o pensamento clerical. As coisas não tem um sentido em si que devemos descobrir, desvelar como quis o pensamento ascético, tanto dos filósofos socráticos, tanto dos pensadores cristãos, dos judaicos. As coisas não são capturáveis, são assemelhadas, são metaforizadas. Chegam a nós por analogia e não por descoberta. Quando não construímos essas jangadas da vida, as coisas voltam contra nós com violências incontroláveis, incontornáveis. E a vida vai perdendo sua comunidade. E o egoísmo recrudesce, e surgem as violências, o confinamento do rico nos condomínios e dos pobres nos presídios. Eis o paradoxo das coisas violentadas por uma vontade de saber destruidora dos mistérios de sua infinitude. Não devemos ter pressa. A vida não foi feita para ser antecipada nem os saberes foram feitos para serem armazenados. A vida foi feita para ser inventada toda hora por saberes que se faz e se quer logo usar: aprendam com as crianças. Estude numa creche. Olhe para as crianças. Elas somos nós antes de sermos violentados e nos tornado estrangeiros dentro de nós mesmos. Sejamos filhos pródigos e voltemos para nossa própria natureza: essa incompletude infinita e frágil que nos faz necessariamente vigilantes fabricadores de sentidos.


Os sentidos não se encontram para além das estrelas. O que é bom é o sentir do instante que não se eliminou o fluir constante e, após esmagá-lo a filosofia ensinou ao corpo mutilado o caminho perverso de uma busca fora da porosidade e do suor cotidiano caliente, fora deste mundo, deste tempo, deste espaço. Não há um outro tempo verdadeiro que deva ser buscado. Não há outros lugares, outros espaços, não há um além-mundo a não ser na imaginação estéril e dissecada e anulada. o que há é o mundo, isto é, se entenderes que vives. O momento é para ser vivido, só ele existe, só nele é que sente dores e alegrias, não as apartem e tome cuidado com os que querem harmonizar sua vida dando-lhes certezas castradoras em si. Aceite a dor e alegria para poder viver: não há um tempo de harmonia nos esperando. Viva nesse rebuliço milenar, viva enquanto há vida. a vida é o que é apalpável, o que é possível alcançar com nossas ilusões mágicas. Sejamos múltiplos, ou como afirma a maravilhosa Gilda Arantes, sejam muitas em uma só.



*Odemar Leotti, é professor da UFMT, Campus de Rondonólis-MT, tem mestrado em História Social pela Unicamp e escreve nos blogs Deferenti e Poder Repensado .

Um comentário:

Anônimo disse...

foi gloriosa essa produção. ela começou logo cedo, inspirado no album da Gilda Arantes, quando ela mostrando uma foto com várias formas fotográficas dela, escreve uma metáfora linda ao dizer que nao sabia qual era ela, pois era muitas em uma só. a partir daí resolvi lhe escrever uma mensagem e agarrei um manuscrito, entre vários que habitam meu escritório, essa caverna de meus entendimentos mundanos. daí saíu isso, que tem uma parte final que foi feita primeiro, pois o que escrevi primeiro para ela, estava no final. afinal o começo voltou a ser começo e o final voltou a ser afinal. afinal tudo são só fábulas que a ciência nao desvendou. desvendar é tirar a venda. como um vendado tira a venda dos olhos do outro quando nao aceita sua cegueira. afinal as coisas retornam e entornam e, voltam a se remexer pra lá e pra cá. ave cesar, inté e axé ogum etc. abraços. já que ninguém comenta comento eu, com menta de hortelã e gosto de noite sem dormir. viva

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