segunda-feira, 2 de julho de 2007

GUERRA NO ALEMÃO E A CORTINA DE FUMAÇA


MILÍCIAS SÃO A NOVIDADE, MAS PERMANECEM OCULTAS

(Segundo debate sobre as raízes da violência)

Todo o noticiário atual sobre embates entre polícia e traficantes no conjunto de favelas chamado Complexo do Alemão, mais especificamente na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, omite uma informação essencial: entre bandidos e polícia existe hoje uma terceira força que estende seu domínio territorial na cidade do Rio de Janeiro, que há cerca de dois anos o jornal O Globo denominou de “milícias”, mas cujo nome correto é grupos de extermínio. É formada por policiais e ex-policiais. A crise atual no Complexo do Alemão esconde esse fenômeno, abordado em importantes reportagens nos jornais em 2005 e 2006.

Raramente se terá visto episódio em que a falta de visão crítica na mídia tenha sido tão escandalosa. Emissoras de televisão e de rádio, jornais e revistas tratam do “cerco” aos bandidos da Vila Cruzeiro como uma operação de segurança pública a serviço da população, coisa que, na opinião de três professores entrevistados pelo Observatório da Imprensa, ela não é.

Ontem (18/6), os três professores do Rio de Janeiro que participaram do segundo debate sobre as raízes da violência promovido pelo O.I. (leia adiante) foram ouvidos para atualizar suas participações, à luz do noticiário das 14 semanas transcorridas desde então.

“O cerco é uma dramaturgia”

O sociólogo Paulo Baía diz que destino do cerco no Complexo do Alemão é o mesmo de cercos anteriores, como os realizados na Rocinha em 2003/2004 e no início dos anos 1980. Baía diz que há uma mise-en-scène: a polícia atira para o alto e os bandidos atiram no blindado.

“Ninguém discute hoje no Rio o que é a novidade das milícias”

O sociólogo José Cláudio Souza Alves diz que o problema básico da segurança pública no Rio de Janeiro é a milícia, “que é simplesmente a polícia que antes fazia toda uma estrutura oculta, sempre de forma ilegal e escondida, em termos de violência, e hoje parte para um esquema muito mais aberto, de concorrência mesmo em relação ao mercado do crime, da ilegalidade”.

“Existe alguma coisa que movimenta quantidades de dinheiro e provoca a disputa”

Segundo o geógrafo Andrelino Campos, “existe alguma coisa mais adiante, que a gente não está conseguindo perceber, que movimenta quantidades de dinheiro que talvez sejam interessantes para manter a disputa. Porque só droga, atualmente, eu acho que é muito pouco. Seqüestro e outras coisas movimentam bastante, ou existe uma outra perspectiva, uma coisa bastante encoberta, que a gente não consegue detectar, que motiva essa luta desesperada por pontos de venda. Que agora eu não sei mais se são de drogas, se são de armas, de que são”.

A FALSA AUSÊNCIA DO ESTADO

Artigos e reportagens recentes falam de uma ausência do Estado em favelas do Rio de Janeiro dominadas por traficantes. Em 9 de junho, no Globo, Merval Pereira (“O Haiti é aqui? A ocupação”) citou o sociólogo da Universidade de Brasília Antonio Jorge Ramalho da Rocha, que trabalha com a tropa brasileira em missão de paz no Haiti, referindo-se ao Rio de Janeiro: “.... bairros marcados pela ausência de autoridades públicas e locais assemelhados”.

No Estado de S. Paulo de domingo, 17 de junho, reportagem de Márcia Vieira (“R$ 1 bi do PAC bancará teleférico no Alemão, parque e obras em favelas”) reitera citações do gênero. Por exemplo, a do arquiteto Luiz Carlos Toledo, que instalou um escritório na Rocinha: “O governo está pagando por ter virado as costas para a Rocinha durante 80 anos”.

Afirmações aceitas sem contestação pelos jornalistas. Fazem parte do discurso “oficial” da mídia, que é o discurso das autoridades. Mas que três estudiosos do Rio de Janeiro contestaram com máxima veemência durante debate sobre as raízes da violência organizado pelo Observatório da Imprensa em 12 de março.

Paulo Baía:

“.... Quando eu escuto falar em ausência do Estado me dá uma certa irritação. Eu estudei dois anos e meio a Rocinha. A Rocinha tem todos os serviços públicos e privados que se possa imaginar. Tem um arrecadação formal altíssima. Tem uma sonegação de impostos fortíssima, independentemente do comércio ilegal de drogas e de armas, que também é muito elevado, graças às facilidades da classe média endinheirada para ter acesso à compra de drogas na Rocinha. E a receptação de roubo de cargas e combustíveis, esquema que a Baixada Fluminense comanda via a antiga organização dos bicheiros”.

José Cláudio Souza Alves:

“.... Eu tento mostrar, ao longo do tempo, o Estado e o poder econômico sempre casados, unidos, essa é a história da Baixada, do Rio de Janeiro, do Brasil, do mundo inteiro. As estruturas dos grupos de extermínio na Baixada vão revelando justamente isso: um aparelho que funciona. Agentes do Estado na Polícia Militar, sobretudo, mas tem Polícia Civil, Bombeiros, Guardas Noturnas, sobretudo gente que lida com a segurança. Estão envolvidos diretamente na operação das execuções sumárias”. (....). O Rio de Janeiro tem uma estrutura muito diferente. Existe o tráfico. A polícia tem acesso a todas as favelas, só entra para quebrar, matar ou destruir quando é interesse, ou quando há quebra de acordo, ou quer vender imagem. A Secretaria de Segurança, os governadores têm interesse em vender para a mídia, para a classe média, uma ação dura de repressão”.

Andrelino Campos:

“A sociedade em si é violenta, os mais pobres se tornam violentos em função da fragilidade. (....) Determinados estados de coisas são colocados para que se possa acreditar que o Estado nunca esteve presente nessas comunidades. O Estado nunca esteve ausente. Ele pode ser pouco operacional. Na Rocinha ele é bastante operacional, mas na maior parte das 600 comunidades ele é pouco operacional. As pessoas, em geral, desconhecem a possibilidade de acesso à própria cidade. O direito à cidade é claro. Mas direito à cidade para quem? Não é para todos”.

Foi a segunda reunião dessa natureza organizada no Rio. (Clique aqui para ler o primeiro debate.) Os participantes foram os sociólogos Paulo Baía, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, e José Cláudio Souza Alves, decano de Extensão da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, UFRRJ, o geógrafo Andrelino Campos, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o jornalista Sérgio Torres, da sucursal do Rio da Folha de S. Paulo, e o autor destas linhas.

Três trabalhos foram o ponto de partida da segundo rodada de uma discussão feita deliberadamente na contramão do tiroteio noticioso:

1) Tese de doutorado de Baía, ainda não convertida em livro, que pode ser lida aqui em arquivo pdf.

2) O livro de Souza Alves Dos Barões ao Extermínio – Uma história da violência na Baixada Fluminense, publicado em 2003 e totalmente inincontrável em livrarias ou sebos. É tornado acessível aqui na forma ainda original de tese de doutorado, defendida em 1998 com o título de “Baixada Fluminense: a violência na construção do poder”, em seis arquivos pdf. Gentileza do autor. Clique aqui para ter acesso às partes da tese.

3) O livro de Andrelino Campos Do Quilombo à Favela – A Produção do “Espaço Criminalizado” no Rio de Janeiro, editado em 2005 e ainda disponível nas livrarias.

O enunciado que explica o método empregado na montagem e edição deste debate pode ser copiado da abertura do primeiro debate, realizado em 5 de janeiro, tão cedo quanto possível após a ofensiva criminosa do final de 2006 no Rio de Janeiro:

Nada conspira tanto contra a compreensão da crise da segurança pública no Brasil quanto a sucessão de acontecimentos terríveis que põem a mídia e a opinião pública em estado permanente de sobressalto e tensão. A mídia não pode, é claro, brigar com os fatos. Acompanhar os acontecimentos, antes de mais nada descrevê-los, é condição indispensável para tentar compreendê-los. Sem esse entendimento mínimo é impossível produzir uma reflexão séria e, portanto, uma ação política – em todos os sentidos da palavra – eficaz”.

O ritmo, claro, não precisava ser tão lento. Houve problemas para transcrever a gravação, feita em condições técnicas precárias, combinados com problemas de força maior que enfrentei nesses meses. A reunião foi realizada em dependências da Universidade Rural localizadas na Avenida Presidente Vargas, centro do Rio de Janeiro.

Os três trabalhos relatam um processo de resistência de populações excluídas, ou desclassificadas – a terminologia varia um pouco – que não aparece com clareza na mídia.

Diferentemente do que está nesses trabalhos, as narrativas sobre a criminalidade na mídia só muito raramente contemplam a questão fundiária – o livro de Andrelino se estrutura em torno disso, a Lei de Terras de 1850 (“a violência, que grassa no tecido sócio-espacial urbano de algumas metrópoles brasileiras, tem como uma de suas origens a estrutura fundiária estabelecida desde o período imperial”) – e a questão política, de que os outros falam muito. Baía faz um estudo mostrando que Nilópolis é um todo integrado na política oficial, onde o ilegal se torna poder, e a Rocinha não é um todo, é um mosaico onde há pontes entre o ilegal e os poderes legais.

E no livro Dos Barões ao Extermínio temos relatos políticos muito aguçados, até chocantes. Em agosto de 1953, um delegado de polícia, Albino Imparato, foi executado em Duque de Caxias e o governador do Estado do Rio, Ernâni Amaral Peixoto, decretou a prisão preventiva do principal acusado, Tenório Cavalcanti, deputado federal pela UDN. Tenório recebe a solidariedade de deputados federais – Afonso Arinos, Artur Ramos, José Augusto, Flores da Cunha, Danton Coelho, Mário Palmério. E o ministro da Fazenda, Oswaldo Aranha, é um dos que dão proteção a Tenório em sua “fortaleza” de Caxias, residência cercada por altos muros. Tenório é um matador, uma espécie de assassino profissional, um herói dos matadores... Esse entrelaçamento não está presente na narrativa da mídia, em geral, e esse entendimento mudaria toda a percepção do público.

Sérgio Cabral Filho ainda está com boa imagem perante a classe média, pessoas que não moram em lugares invadidos pelo Caveirão. Quem lançou a candidatura de Sérgio Cabral Filho à presidência da Assembléia Legislativa, lê-se na tese de Paulo Baía, foi Gilberto Rodrigues. Gilberto Rodrigues é ex-presidente da Assembléia Legislativa fluminense, deputado estadual eleito várias vezes por Nilópolis, onde era aliado político das famílias Abraão David-Sessim.

Sempre há narrativas, quer na academia, quer na mídia. A narrativa é muito importante. Se a narrativa incluísse os conceitos contidos nesses três trabalhos, ela mudaria, criaria grandes problemas para a política do jeito que a política está organizada.

A visão crítica que têm da narrativa midiática corrente sobre a violência no Rio de Janeiro faz com que em algumas passagens os debatedores soem excessivamente categóricos, talvez um semitom ou um tom acima da prudência acadêmica. O aparato de análise ainda é precário. Só em anos recentes a violência atrai um número mais significativo de pesquisadores e de instituições. E tema é, por sua própria natureza, obscuro, velado, perigoso. Em todos os sentidos. Mas as visões expostas no debate sacodem idéias-feitas.

Diferentemente do critério adotado na edição do primeiro debate, onde as intervenções foram transcritas linearmente, aqui cada bloco temático ganha uma entrada separada.

Seguem-se as falas dos participantes no debate de 12 de março.

Crime organizado e poder

Paulo Baía não aceita o uso da expressão “crime organizado” para definir bocas de fumo. O crime organizado propriamente dito estaria mais associado ao poder. O sociólogo segue análise de sua colega Jacqueline Muniz na qual as Polícias Militares desempenham no Brasil o papel que foi desempenhado na Itália pela Máfia.

Crime, polícia e política

José Cláudio Souza Alves faz um paralelo entre os padrões criminosos da Baixada e da cidade do Rio de Janeiro. Liga crime, polícia e política. Mais: liga empresas ao mercado financeiro operado pelo crime. Souza Alves, secundado por Paulo Baía, afirma que o famigerado Caveirão da Polícia Militar é “alugado” por grupos criminosos. Um grupo conta com apoio policial para tomar determinado território, o grupo rival “compra” uma incursão policial que facilite a retomada. Assunto praticamente blindado na mídia.

Não pode haver diferença entre cidade formal e favela: não pode haver favela

“Na cidade formal, se você cometer algum delito, o oficial de justiça chega na sua porta com um mandado de busca e apreensão. No Chapéu Mangueira, o mandado de busca e apreensão é o coturno de qualquer policial", diz Andrelino Campos. "Para falar em direito, em cidadania, eu necessito falar do desmonte de tudo que é provisório. Não há possibilidade de eu reconstruir, ou de construir cidadania”.

Milícia dá medo porque é a polícia

Sérgio Torres diz que já andou por todas as favelas do Rio. Nunca se sentiu em casa, mas nunca deixou de entrar numa favela com medo de ser alvo de violência. Agora, tudo isso mudou. Torres também relata o medo que gente da própria polícia sente da milícia, porque ela é formada por policiais e ex-policiais, enquanto os traficantes entocados nos morros são pessoas com menores possibilidades de identificar e perseguir, na cidade, desafetos ou inimigos. O repórter da Folha não aceita o uso genérico da expressão “crime organizado”.

Um tabuleiro de xadrez

José Cláudio Souza Alves afirma que a visão da mídia carece de melhor conhecimento dos fatos: uma vez lhe perguntaram se o uso do Caveirão não se justificava diante do poderio bélico dos traficantes. E ele respondeu que quem vende armas para os traficantes são policiais. Essa interpenetração entre policiais e bandidos torna a realidade do Rio de Janeiro um complexo tabuleiro de xadrez.

Estatísticas e sensação de insegurança

José Cláudio Souza Alves mostra como são diferenciados os padrões de violência nas diferentes regiões do Grande Rio. Arrisca-se a estabelecer uma possível correlação entre surgimento de novos núcleos de desenvolvimento e “limpeza” que provoca matanças. Sérgio Torres relata como descobriu que estatísticas de homicídios são forjadas por “desovas” de cadáveres do outro lado da fronteira municipal.

Reportagem é diferente de ediçião

Neste final do debate, discute-se a diferença entre o que os repórteres apuram e o que é editado.

Fonte: Observatório da Imprensa.

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