A agonia como pena
Henrique Júdice Magalhães
O sistema penitenciário brasileiro caracteriza-se desde sempre pelas condições infra-humanas a que relega seus internos. Sua realidade (superlotação, tortura, insalubridade) já foi denunciada nas páginas de AND pelos advogados Nilo Batista e Augusto Thompson (edição 27) e pelo juiz Livingsthon Machado (edição 29). Tal quadro constitui uma afronta diária ao dispositivo constitucional que diz que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante (artigo 5º, III), bem como a todos os tratados e convenções de direitos humanos subscritos pelo Brasil. No final de 2005, o país foi admoestado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos para que adotasse providências visando garantir condições mínimas de vida aos presos.
No entanto, sucedem-se iniciativas destinadas a piorar a situação existente. Se as condições habituais dos presídios chegaram ao ponto em que estão por um descaso consciente, ainda pior é o conjunto de suplícios elaborados e defendidos nos últimos anos por setores do aparato jurídico-policial e seus representantes parlamentares, caracterizados por requintes de crueldade.
Desde 2001, existe em São Paulo o chamado RDD (Regime Disciplinar Diferenciado), criação do ex-secretário estadual de Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa. O RDD, que abrange até mesmo presos provisórios (sem condenação), foi instituído pela resolução 026 da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP). Esta resolução limita a duração das visitas a duas horas por semana e determina que sejam confinados em cela de isolamento, por até 360 dias, "líderes e integrantes das facções criminosas" e "presos cujo comportamento exija tratamento específico". A avaliação desta necessidade ficou ao critério do diretor do presídio, sem necessidade sequer de que o preso pratique ato classificado como falta grave na Lei de Execuções Penais.
É justamente no poder conferido aos diretores das unidades prisionais que reside, na prática, o pior aspecto do RDD. A resolução diz, por exemplo, que a duração dos banhos de sol deve ser de "no mínimo" uma hora por dia. Na prática, nunca ultrapassa isto.
Em 2002, a Resolução 049 da SAP restringiu o acesso dos presos submetidos ao RDD a advogados, estabelecendo a exigência de que as visitas fossem agendadas após requerimento do preso ao diretor do presídio. Na prática, o que ocorre é que, se o diretor negar ao preso o agendamento, este não tem sequer a quem reclamar, pois seu advogado nem ficará sabendo o que houve. A resolução chegou a ser suspensa liminarmente pelo Judiciário, mas teve sua validade restaurada. É vedado o contato físico entre o preso e o advogado: eles conversam através de microfone, separados por uma grossa parede de vidro.
Pior que o regime em si são os presídios reservados a seu cumprimento: o anexo da Casa de Custódia de Taubaté (conhecido como Piranhão) e os presídios de Avaré, Iaras, Presidente Venceslau e Presidente Bernardes são os piores estabelecimentos de São Paulo. Foi no Piranhão que começou a surgir, há aproximadamente dez anos, o Primeiro Comando da Capital (PCC), inicialmente com o propósito de resistir às torturas e arbitrariedades praticadas.
Celas tipo F
"(...) o prisioneiro fica preso numa cela individual, de 2x3 metros, cujo acesso é por uma porta blindada. As quatro paredes estão pintadas, uniformemente, com um branco monótono. A comida é passada através de um buraco, como se faz para alimentar uma besta. O conjunto é silencioso e o mundo físico do prisioneiro é reduzido a uma distância de três metros, circundado a um silêncio angustiante."
Esta descrição de uma prisão turca do chamado tipo F, reservada a ativistas politicos, consta de uma carta de denúncia subscrita por uma entidade européia de direitos humanos a respeito das condições em que está preso o militante comunista Ercan Kartal. Ela poderia, no entanto, servir para descrever as condições dos presos de Presidente Bernardes.
Não se trata de uma penitenciária comum. O presídio de Presidente Bernardes foi projetado e construído em 2002 especialmente para servir de campo de concentração. As condições inóspitas e desumanas em que vivem os encarcerados não decorrem, ali, apenas de negligência ou boçalidade, mas de um requintado planejamento.
O piso das celas tem um metro de espessura e é revestido por chapas de aço. As celas são individuais e não há contato entre os presos sequer no banho de sol. Recolhidos a cubículos de seis metros quadrados com grossas portas de aço, janelas com vidros blindados e grades de ferro e sem separação entre banheiro e dormitório, os internos são submetidos a uma forma sofisticada de tortura.
Os presos só podem receber de seus familiares, uma vez por mês, alimentos previamente determinados pela Secretaria de Administração Penitenciária. Não há visita íntima, nem a tal assistência "espiritual e religiosa", embora esta seja expressamente assegurada pela Constituição. A leitura de jornais é proibida e o preso só pode se comunicar com o mundo exterior por correspondência escrita, que é alvo de censura pela direção da unidade. O contato físico com as visitas também está proibido.
Tortura
Já na época da criação do regime, a procuradora do estado de São Paulo Carmem Silva de Moraes Barros classificou-o como "método de aniquilamento de personalidades". Em longo artigo publicado em março deste ano, com o título "A tortura no RDD", a psiquiatra Guanaíra Rodrigues do Amaral, da Ação dos Cristãos pela Abolição da Tortura - ACAT, descreve detalhadamente as implicações médicas e sociais da tortura psicológica inerente ao RDD sobre a vítima e seus familiares.
Guanaíra explica que a tortura mental, assim como a física, "compõe-se de várias modalidades, entre elas, a privação sensorial, causada pelo isolamento em celas fechadas, tipo "solitária", com pouca alimentação, pouco contato com outros e quase nenhum contato físico, nenhum exercício físico, quase nenhuma informação do mundo exterior e etc.; e com duração longa, chegando até a meses de isolamento. Este tipo de tortura - a privação sensorial - foi considerado por médicos, especialistas, e defensores de direitos humanos e por todas as Convenções e Tratados de Direitos Humanos relacionados com a questão da tortura, como responsável por vários danos mentais, muitas vezes irreversíveis."
"Quando se mantém uma pessoa totalmente isolada do mundo exterior, sem contato algum com familiares, com seu advogado ou com qualquer outra pessoa que não seja seu agressor ou agressores" - prossegue a psiquiatra -, "isto leva a vítima da tortura a sentir-se totalmente à mercê de seu verdugo, sem absoluto controle dos acontecimentos, passando a depender totalmente da vontade do outro. Este contexto é característico da tortura mental e do atual Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), que está em operação no Estado de São Paulo."
Infâmia legalizada
A tortura, o tratamento desumano ou degradante e as penas cruéis são proibidos pela Constituição e por todos os tratados e convenções de direitos humanos de que o Brasil é signatário. O que se vê, no entanto, é a permanente anuência das autoridades fe[derais e judiciárias brasileiras aos desígnios fascistas que resultaram em sua criação.
Já em sua origem e em sua forma, o RDD é ilegal, criado em aberta afronta à Lei de Execuções Penais. Conforme denunciou à época Carmem Silva de Moraes Barros, a SAP não tem autoridade para criar regime de cumprimento de pena por meio de ato normativo. "Não cabe ao Poder Executivo, através de resolução, legislar sobre matéria penal, nem tampouco penitenciária" - explica a procuradora em seu artigo O RDD é um acinte.
Ao julgar o habeas corpus 400.000.3/8, em novembro de 2002, no entanto, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) decidiu pela legalidade e constitucionalidade do RDD. Em dezembro de 2003, o governo federal promulgou a Lei 10.792, alterando a Lei de Execuções Penais para legalizar o RDD com pequenas alterações (a mais relevante delas é a previsão de que caberá ao juiz de execuções, e não mais ao diretor do presídio, determinar a inclusão de presos no regime).
Mesmo esta garantia, no entanto, vem sendo burlada pelas autoridades prisionais de São Paulo através do artifício do Regime Disciplinar Especial (RDE). Apenas em tese, o RDE é mais brando que o RDD. Mas como não tem qualquer fundamento legal, estando previsto apenas na resolução 59 da SAP, foge ao controle do Judiciário e do Ministério Público.
No final de fevereiro, os procuradores da República Luiz Fernando Gaspar Costa e Márcio Schusterschitz, membros do Conselho Penitenciário do estado, recomendaram ao então secretário Furukawa a extinção do regime. Na recomendação, os procuradores caracterizam o RDE como desumano e cruel e dizem que ele não difere, na prática, do RDD, a não ser pela já mencionada impossibilidade de fiscalização. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, órgão do Ministério da Justiça, tem opinião semelhante e já considerou oficialmente o RDE inconstitucional.
Isabel Peres, da Acat, denuncia, ainda, que estão submetidos, na prática, ao RDD, presos comuns e sem qualquer vínculo com facções como o PCC nas penitenciárias de Casa Branca e Itirapina.
Endosso judicial
No âmbito do Judiciário, uma decisão no mínimo controversa foi tomada pelo desembargador Jarbas Mazzoni, vice-presidente do TJ-SP, em junho de 2005. Atentendo pedido do procurador-geral de Justiça, Rodrigo Pinho, ele proibiu que um canal de televisão do Chile entrevistasse, na prisão de Presidente Bernardes, Maurício Hernández Norambuena, cidadão daquele país. A entrevista havia sido previamente autorizada pelo corregedor-geral da Justiça paulista, o também desembargador José Maria Cardinale. O direito de dar entrevistas à imprensa, além de não constituir regalia nenhuma, foi assegurado até mesmo aos criminosos de guerra presos em Nuremberg.
Em 28 de junho deste ano, julgando o habeas corpus 44.049, impetrado em favor do mesmo Norambuena, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça considerou juridicamente possível a internação do preso no RDD além do prazo legal e sem que ele tenha cometido falta grave. O chileno está submetido ao regime desde fevereiro de 2003.
Os ministros Hélio Quaglia Barbosa e Nilson Naves consideraram que só a falta grave enseja o confinamento no RDD e que este não pode durar mais que 360 dias, mas os ministros Hamilton Carvalhido, Paulo Medina e Paulo Galloti entenderam que há duas hipóteses distintas: segundo sua interpretação - vitoriosa no julgamento -, os presos submetidos ao RDD por falta grave podem permanecer nele por no máximo 360 dias; mas aqueles recolhidos ao regime simplesmente por representarem, abstratamente, "alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade", podem ser submetidos ao regime por tempo indeterminado.
Pode piorar
Ainda há, no entanto, quem considere o RDD excessivamente brando. No dia 17 de maio, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou o PLS 179/05, do senador Demóstenes Torres (PFL-GO) que cria o Regime Disciplinar Diferenciado de Segurança Máxima (ver Um pacote fascista).
Neste regime, o preso poderá ficar isolado por até quatro anos, com no máximo duas visitas mensais (também sem contato físico) e banho de sol com duração máxima de duras horas diárias. O projeto prevê ainda a proibição do recebimento de qualquer tipo de alimento ou bebida fornecido por familiares e contato entre presos e advogados apenas uma vez por mês.
Há duzentos e trinta e dois anos, o marquês de Beccaria escrevia contra este tipo de severidade desmedida, denunciando seu caráter iníquo e contraproducente:
"Os países e os séculos em que se puseram em prática os tormentos mais atrozes" - dizia ele em Dos delitos e das penas, escrito em 1764 - são exatamente aqueles em que se praticaram os crimes mais horrendos. O espírito de ferocidade que ditava as leis de sangue ao legislador era o mesmo que colocava o punhal nas mãos do assassino e do parricida."
Uma parcela cada vez maior do aparato jurídico-policial brasileiro e seus representantes parlamentares parece ter se esquecido desta lição fundamental. Ou talvez, tendo-a muito clara, deseje exatamente contrariá-la.
Fonte: A Nova Democracia