A BUSCA AOS MORTAIS DE DUAS CABEÇAS1
Odemar Leotti*
O título deste trabalho é uma alusão a Parmênides que viveu no final do século VI e começo do século V a.C. sendo legislador em sua cidade natal, Eléia, deixou um poema, apresentando suas idéias filosóficas. Constrói o tema do saber ascético em oposição ao saber produzido pela experiência humana, considerado como degenerador das formas verdadeiras e, portanto originais que para ele, seria as essências para a vida. Segundo Pesanha, esse filósofo “... descreve uma experiência de ascese e de revelação; a primeira parte apresenta o conteúdo principal dessa revelação mostrando o que seria a ‘via da verdade’; a segunda parte caracteriza a ‘via da opinião’. A distinção fundamental entre os dois caminhos está em que, no primeiro, o homem se deixa conduzir apenas pela razão e é então levado à evidência de que ‘os mortais de duas cabeças’, pelo fato de atentarem para os dados empíricos, as informações dos sentidos, não chegariam ao desvelamento da verdade (aletheia) e à certeza, permanecendo no nível instável das opiniões e das convenções de linguagem. PESANHA, José Américo. Os Pré-socráticos. Col. Os pensadores. São Paulo: ed. Abril, 1999. P. 21”.
Ao negar a via da opinião Parmênides nega as propriedades dos humanos de agirem numa consonância entre os seus elementos sensoriais e o mundo do pensamento que resultariam daí na produção das subjetividades humanas e conseqüentemente instaurariam as práticas relacionais dos homens em seus meios espaciais onde existem outras formas individuais com todas características que cada qual carrega. Cada cultura é produzida a partir de grupos de individualidades que ao necessitarem viver juntas. Esse ajuntar-se necessita por sua vez de formas de ligação pelos sentidos que são produzidos pela significação das coisas contidas em seus espaços ou no espaço alcançado pelos seus conhecimentos. Quando nos pomos a falar em conhecimento, estamos falando do que foi produzido para que uma dada cultura constitua-se com espaço de pertencimento para acomodar as relações das necessidades físicas num engendramento com as necessidades de suas formas de pensar.
O que nos diferencia dos outros animais é o fato de sermos animais que necessitamos da linguagem para nos apossarmos da vida: vida entendida como o espaço físico e o espaço dos significados que nos colocam em relação com ele. Esses significados já pré-existem ao nosso surgimento. Já nascemos em um mundo de significados que vai nos encaminhar, via esse saber já funcionando, ou seja, já exercendo sua função de controle dos passos, dos sentimentos, do destino daqueles que adentram ao habitat de cada cultura. Um saber que seria comum a todos que habitam cada cultura seria chamado de conhecimento. Um conhecimento deve ser algo comum a todos e o conhecimento de todos deve ser adequado para garantir a vontade individual de cada um dos seus comuns. Logo estamos falando de um saber que possibilita o ato de ver o mundo. Ver o mundo pressupõe um conhecimento para que possamos crer que sabemos algo sobre o espaço físico em que estamos instalados. Logo o saber comum seria o saber comunitário, da comunidade, logo comum para todos e ao mesmo tempo funcionando garantindo as diferenças nas apropriações individualizadas de cada um. Vemos instalar aí um problema que será de difícil contorno numa cultura. Como garantir o coletivo como comum garantindo o individual que é singular a cada um dos seus elementos? Seria tornando o que é individual num ser preso a um saber para todos? Será tornando um saber para todos aberto às formas de apropriação de cada individualidade? Eis o problema que cada cultura teve que administrar. Cada qual fez funcionar seus mecanismos de controle dessa situação. O que agora me interessa é saber como um saber chamado de pensamento ocidental se constituiu dentro dessa problemática? Gostaria de deixar no ar para depois tentar pensar sobre a questão que foi também um problema: podemos fugir de nossa condição de seres da linguagem? Se não podemos então como resolvemos a questão de nos ligarmos ao que é físico sem nos tornarmos seres ascéticos, ou seja, seres que necessitam construir uma ilusão sobre o físico para poder fazê-lo funcionar com nossos sentidos que são caracterizados por essa necessidade? Quando Foucault foi interpelado se não acreditava na razão, disse que a vida necessita da razão única e transcendental. Entendo que o que estava problematizando era uma racionalidade que se quer universal e transcendental (branca, européia e masculina) que para se afirmar necessita tentar aniquilar todas as demais racionalidades, tanto de grupos quanto de outras culturas. E faz isso as especificando, classificando-as em hierarquias que assujeitam seus saberes de forma anuladora e perversa. Partimos do pressuposto que cada cultura constrói sua racionalidade para poder adquirir seus pertencimentos ao espaço em que se propõe ou necessita viver, por inúmeros motivos que não cabe aqui explicar. Agora a classificação que se deu até hoje e ainda hoje se dá, são produtos de práticas discursivas que deram possibilidades para que emergissem enunciadores como sujeitos produtores de genialidades sobre a forma que nos conduzimos ou devemos nos conduzir na terra em cada espaço ou na tentativa megalomaníaca da metafísica de características tentaculares universalizantes das multiplicidades culturais. Tentar entender isso ou mesmo se entender como cria de tudo isto é o que se torna um desafio para discutir nossos problemas atuais saindo do mesmismo produzido pelos que se entendem como intelectuais, de esquerda e de direita.
Sair do problema é antes de tudo um exercício do sair dos modelos de análise do problema e entendê-lo com o criador do problema. De uma coisa não podemos fugir, penso eu: somos seres que necessitamos da palavra e das coisas, mas mais do que isso, dos elementos que engendram coisas e palavras e a questão política de tudo isto, o poder que devemos ter de lidar com a feitura do saber daí advindo. Precisamos da linguagem para poder nos apossar do espaço em que estamos destinados a viver e, portanto precisamos constituirmo-nos como sentido lidando com nossas vontades que é um emaranhado produzido de forma imanente entre o físico do corpo, o físico que nos rodeia e a linguagem que nos põe a funcionar garantindo nosso exercício nesse espaço onde existem as palavras e as coisas. Logo a partir da admissão da linguagem com elemento novo devemos entender que nem a palavra nem as coisas são lugares do saber e sim que este nos vem através das construções discursivas que no engendramento dos enunciados formam discursividades que dão formas e sentidos diferentes às palavras e às coisas. Logo dá para a gente entender que precisamos participar da trama da produção da linguagem para podermos formas uma língua, um idioma que será nosso oceano onde iremos mergulhar nele para poder viver, para que exista um poder que tome maior proximidade possível com sua forma verbal, expressiva, pois é isso que torna importante o saber como ferramenta para nosso conhecimento para que possamos ver não somente com nossos olhos, mas com algo que foge de nosso corpo e mente que é o pensamento que só se dá no saber produzido, que vira forma de conhecer as coisas, vira aquilo que muitas vezes recebemos sem questionar que é o conhecimento. Esse conhecimento é que nos dará a característica para que possamos nos sentir como um animal das palavras, ou seja, que entre as palavras e as coisas existe a construção das verdades e é delas que temos que cuidar. Elas existem sob uma condição regimentar, ou seja, sob uma condição de um conjunto de regras e leis que determinam como esse conhecimento chegará até nossos sentidos. Com isso será com essa forma de conhecer que vamos inserir nossa vontade de potencia, nossa energia. Ela poderá ser a nosso favor e alimentar nossa vida saudável ou poderá se nossa destruição. O pior que qualquer que seja, nós aceitaremos elas como verdade, pois do contrário elas não chegariam até nós, caso a repelíssemos. Portanto o que quero falar é sobre a história do pensamento na forma em que ele chega até nós e o porque nós aceitamos e combatemos aqueles que tentam nos contrariar nisso. E ao mesmo tempo gostaria mais posteriormente, se conseguir, falar de como nos sentimos impotentes para resolver os problemas do tempo presente e porque ainda estamos tentando sair do pantanal da crise que vivemos, lembrando o velho Marx, puxando-nos pelos próprios cabelos, ou usando o efeito do boot strap, ou seja, sair do atolamento que vivemos nos puxando pelos cadarços de nossos sapatos. Para adiantar quero dizer que a ciência não explica o que a própria ciência constituiu. Para podemos pensar o pensamento ocidental nos dias atuais e os problemas que nos dias atual, devemos voltar ao que estávamos discutindo antes e caminhar na construção de uma genealogia da forma de construção desse pensamento.
O pensamento ocidental, toma formatos diferentes mas mantém uma característica presa dentro de uma permanência que é o mundo ascético, ou seja, a separação do corpo e da alma. Em outras palavras a separação do conhecimento da experiência. Começa com Parmênides, depois com Platão, da concepção de que há uma matéria primordial que antecede a ação humana e que para tanto necessita-se que a experiência deixe de fluir de forma descontrolada por uma origem pura, para que não degenere mais as formas de ser no mundo. Para os gregos do tempo de Parmênides, o tempo não era entendido como nos tempos modernos. Se hoje estamos inseridos numa crença de que é no futuro que iremos viver uma vida pura, para o grego era no passado que existia a forma pura da vida, do mundo e era para ela que deveria voltar sua vontade não hora de pensar numa melhora do tempo presente em seus momentos de crise de existência. Logo, tanto um pensamento quanto o outro coloca o tempo presente apenas como uma passagem para um mundo que não mais existe: se para o grego o paraíso seria a Idade de Ouro existente no passado (para eles o tempo era pela qualidade dos metais, Idade de Ouro, de Bronze, de Ferro, etc.), onde o sentido era diferente do que é para nós modernos. Se para nós o futuro seria regenerador da perfeição humana, imaginamos o tempo como aperfeiçoador do mundo. Para o s gregos o tempo, ao invés de regenerador era degenerador, portanto o futuro para eles significava a destruição do mundo, que para eles obedecia uma lógica biológica (o que nasce, cresce, envelhece e acaba), portanto com o tempo o mundo acaba e cabe a cada um trabalhar um saber que esteja a serviço da reintegração do que está se degenerando: reintegrar seria o mesmo que regenerar. Enquanto que para o pensamento moderno, reintegrar seria o mesmo que reconduzir o mundo a um futuro onde ele esteja, também regenerado das imperfeições com as quais ele ficou caracterizado, justamente por ter ficado a mercê dos saberes: para a igreja profano, para a ciência um saber popular e não erudito, para a esquerda um saber alienado. Enfim o que eles tem em comum é que a experiência é o lugar que precisa ser controlada para ser levada a um lugar da razão pura.
.Proceder dessa forma busca uma experiência de ascese e de revelação, apresentando como conteúdo principal dessa revelação o que seria a via da verdade. Esta via entende o ser como sendo algo imutável, não exposto a desvios. A multiplicidade seria, portanto banida da efetivação do sentido humano, e o saber único e integrador deveria ser a única forma possível de se encontrar a noção de unidade. Fica entendido como impossível, segundo essa máxima, às construções de sentidos mundanos, pois pelo fato de atentarem para os dados empíricos, as informações dos sentidos, não chegariam ao desvelamento da verdade (aletheia) 2. O mundo passaria a ser uma oposição à vida. Nasce então uma forma de saber onde o conhecimento deve se dar fora da experiência humana. No anseio da busca de uma verdade fora do mundo, querendo uma certeza das coisas, tentava-se a exclusão das construções pelas vias experimentais das práticas cotidianas tidas como representações ou seja, uma forma segunda, cópia da matriz essencial, lugar de verdade das coisas. Criava-se uma devoção à certeza, contra a dúvida, à incerteza, lugar da experiência e da necessidade constante de construções de verdades ininterruptas, criava-se simultaneamente e literalmente uma dúvida perante um mundo que tinha como futuro a decadência, tida como vítima da experiência que só degenera esse mundo. Só a definição de um modelo único e fora dos saberes dos homens poderia ser possível a unidade do mundo, e isto só se daria dando descrédito às criações da experiência classificadas de forma inferiorizada como cópia da cópia ou representações humanas.
O sentido parmenidiano sobre o desvelamento do mundo tem alimentado muito do que se entende como sentido das coisas ou mais no nosso caso, o sentido histórico humano. Negando as condições das modalidades receptivas constituídas pela experiência e das formas de linguagens daí provindas, anula as formas subjetivadas e daí a instituição do sujeito e das utilizações dessas características que o exercitam. Negam sua estética de construir o real e de ser esta a forma de se instaurar no espaço das coisas e impede essa via do mundo. Nega à esta forma-sujeito seu status de leitor e de suas condições singulares que lhe garantem uma mutabilidade e conseqüentemente um lugar de diferenciações ininterruptas de apropriação do texto que lhe é apresentado.
1 O título deste trabalho é uma alusão a Parmênides que viveu no final do século VI e começo do século V a.C. sendo legislador em sua cidade natal, Eléia, deixou um poema, apresentando suas idéias filosóficas, em “... descreve uma experiência de ascese e de revelação; a primeira parte apresenta o conteúdo principal dessa revelação mostrando o que seria a ‘via da verdade’; a segunda parte caracteriza a ‘via da opinião’. A distnção fundamental entre os dois caminhos está em que, no primeiro, o homem se deixa conduzir apenas pela razão e é então levado à evidência de que ‘os mortais de duas cabeças’, pelo fato de atentarem para os dados empíricos, as informações dos sentidos, não chegariam ao desvelamento da verdade (aletheia) e à certeza, permanecendo no nível instável das opiniões e das covenções de linguagem. PESANHA, José Américo. Os Pré-socráticos. Col. Os pensadores. São Paulo: ed. Abril, 1999. P. 21”.
2 PESANHA, José Américo. Os Pré-socráticos. Col. Os pensadores. São Paulo: ed. Abril, 1999. P. 21.
*Odemar Leotti, é professor da UFMT, Campus de Rondonólis-MT, tem mestrado em História Social pela Unicamp e escreve nos blogs Deferenti e Poder Repensado .
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