quinta-feira, 30 de agosto de 2007

DITADURA MILICIANA

Como nascem os anjos: Milícia seqüestra até crianças


RIO - A história de vida dos irmãos José (nome fictício), de 5 anos, e Davi (nome fictício), de 6, seria outra caso não estivessem abrigados na Casa Maternal Mello Mattos, no Jardim Botânico, desde agosto de 2005. A mãe perdeu o direito de criá-los, por deixá-los abandonados na rua. Se não fosse isso, as crianças teriam o mesmo destino dos outros três irmãos, que desapareceram no dia 15 de julho do ano passado. Eles foram seqüestrados por homens de uma milícia que expulsou os traficantes do Morro São José Operário, na Praça Seca.

De acordo com dados que constam no Dossiê Criança e Adolescente, do Instituto de Segurança Pública (ISP), 635 crianças até 12 anos foram ameaçadas no Rio em 2006. No mesmo período, 20 crianças foram mortas pelo tráfico ou milícia na capital.


Família retirante

A rotina de abandono e de miséria, na verdade, começou na década de 50, quando a família da mãe de José e Davi chegou ao Rio. Dona Severina (nome fictício), uma cearense que nasceu no dia 12 de janeiro de 1952, nunca teve oportunidade de estudar. Cresceu analfabeta e virou doméstica. Veio ao Rio de Janeiro para tentar uma vida melhor, mas acabou virando mais uma miserável. O único bem que adquiriu foi um barraco de madeira no Morro São José Operário. Alcoólatra, teve os cinco filhos com três homens diferentes.

Severina não soube cuidar, ensinar ou dar amor aos filhos. Quando criança, também não recebeu nada disso. Como mãe, deixava os filhos abandonados, não tinha dinheiro para comida e só bebia. A situação de abandono do lar fez com que ela perdesse a guarda das crianças várias vezes, desde 2001. Para o Estado, Severina não servia para ser mãe.

A Vara da Infância precisava tirar de Severina as crianças que viviam em "situação de risco social". Em agosto de 2005, os meninos Davi e José foram recolhidos da rua por uma vizinha da família. Depois de cinco dias, a mulher entregou as crianças ao Conselho Tutelar de Jacarepaguá. Um conselheiro descobriu que outros dois filhos de Severina, Josivan*, de 10 anos, e Bernardo*, de 12, viviam na Central do Brasil. Eles não podiam voltar para o morro, pois estavam ameaçados por traficantes de drogas que ainda dominavam a comunidade. Quando foram "anistiados" pelo tráfico, voltaram a viver com a mãe e o irmão mais velho Flávio, de 16 anos.


Fonte

terça-feira, 28 de agosto de 2007

A NOVA DITADURA V


QUANDO O PASSADO SE ENCONTRA COM O PRESENTE


Na ação policial, no drama das famílias das vítimas, na música, no cinema e no teatro, tempos da ditadura lembram os atuais.

As fotos em preto e branco da ditadura militar deixam a impressão de que a história foi colorida artificialmente. Passado e presente se encontram na estética da dor e da resistência. Para muitos observadores mais atentos, há no Caveirão da polícia o mesmo espírito do Brucutu, temido blindado das Forças Armadas que jorrava água contra os militantes. E semelhanças de objetivos entre as faixas da época, como “Abaixo a ditadura”, que viraram um símbolo nas ruas pós-golpe de 64, e os grafites que hoje levam para os muros protestos e pedidos de paz de moradores de favelas. Prática que foi cooptada pelo tráfico, que espalha siglas de facções criminosas pela cidade. Também são possíveis comparações entre as músicas dos anos de chumbo de ontem, muitas censuradas, e os funks e raps de movimentos hip hop de hoje.

Para o sociólogo e doutor em geografia humana Demétrio Magnoli, a imagem do Caveirão remete ao Brucutu porque tem origem na mesma lógica: — Assim como na ditadura havia o conceito do inimigo interno, o Caveirão nasce da lógica militar de que a favela é um território estrangeiro, inimigo.

Cinema também foi censurado

No passado, a estilista Zuzu Angel, cujo filho Stuart desapareceu nas mãos de militares, foi o símbolo das “mães da Praça de Maio brasileiras”, numa inevitável comparação com o movimento da Argentina. No Rio de hoje, o mesmo papel é desempenhado pelas mães de Acari (cujos filhos, desaparecidos, teriam sido mortos pela polícia em 1991), pelas mães de Vigário (de jovens seqüestrados pela PM em 2005), pelas mães do Borel, do Caju e do Degase, entre outras. As imagens ganham apenas as tonalidades do tempo.

Nos festivais de música, durante a ditadura, os artistas enfrentavam a censura com suas canções. Geraldo Vandré escreveu um dos versos mais repetidos nesse período: “Há soldados armados, amados ou não, quase todos perdidos de arma na mão”, em “Pra não dizer que não falei das flores”. O próprio Caetano, apesar de menos explícito em sua militância política, cantou “É proibido proibir”.

O mais visado de todos, Chico Buarque, deixou sua assinatura numa série de canções engajadas, como “Apesar de você” e “Cálice”, só para citar algumas.

Os militares contra-atacavam com bordões como “Brasil.Ame-o ou deixe-o” e com hinos ufanistas, como “Pra frente,Brasil", que embalou a torcida na Copa de 70. Hoje, MCs e rappers tentam driblar as imposições do tráfico, defendendo o direito de relatar o lamento de moradores de favelas, de falar de suas mazelas e seus dramas cotidianos. No entanto, quando falam da violência, em geral se restringem à ação da polícia. Quando fazem menção ao tráfico, as letras são ataques de uma facção a outra. Por isso, os MCs que cantam os proibidões — funks exaltando uma quadrilha ou uma omunidade dominada por uma facção — só podem se apresentar em favelas “amigas”, caso ontrário podem ser mortos.

— Tanto o funk quanto o hip hop têm uma missão de narrar o que está a seu redor. Mas, muitas vezes, o meio que incentiva sua produção ou garante suas apresentações é o narcotráfico.

Por isso, surgem os proibidões com histórias que valorizam o dono do morro ou exaltam a comunidade de uma facção. Esses são proibidos para se apresentar para os inimigos”.A censura é até pior do que a da ditadura — avalia o músico Marcelo Yuka.

Com uma linguagem que pretendia mostrar a realidade do país, o Cinema Novo, em especial em sua segunda fase, também virou alvo da ditadura. Filmes como “O desafio” (1968), de Gustavo Dahl, e “Terra em transe” (1967), de Glauber Rocha, foram os mais marcantes dessa fase. Passados mais de 30 anos, o cinema nacional continua a ser um veículo de grande importância no registro histórico de uma época, com obras como “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles, e documentários como ”Falcões do tráfico”, de MV Bill e Celso Athayde.

O cineasta Neville D’Almeida, que teve cenas do filme “Rio Babilônia” cortadas pelos censores, acha que, atualmente, o cinema cumpre um papel muito semelhante ao do passado: — Acho a correlação entre o cinema daquele período e os vídeos que hoje são feitos nas favelas muito oportuna. O cinema ou o vídeo são uma forma, sim, de contrariar o sistema de violência em que eles (moradores de favelas) vivem. As favelas têm que se libertar, e a arte é um caminho para isso.

Crítico musical vê semelhanças

Criado em 1970 pelo teatrólogo Augusto Boal como uma forma de resistência à ditadura militar, o Núcleo Dois do Arena, com os primeiros experimentos do Teatro-Jornal, foi o embrião do Teatro do Oprimido. Da época, fica ainda a lembrança do Teatro de Arena e de grupos como o Opinião. Hoje, o Teatro do Oprimido está em 80 países e em favelas do Rio. Atualmente, há outras iniciativas bem-sucedidas, como a do Grupo Nós do Morro, no Vidigal.

— Não só há uma semelhança (entre o papel do Teatro do Oprimido na ditadura e hoje), como houve uma evolução. Quando eu saí exilado em 71, o teatro era muito pequeno. A gente foi desenvolvendo as técnicas em favelas da América Latina. Mais do que fazer espetáculo, o objetivo é o processo estético de percepção do mundo e transformação — diz Boal.

O crítico musical Artur Dapieve, colunista do GLOBO, vê semelhanças entre as canções de protesto da MPB dos anos 60 e 70 e o rap e o funk dos anos 90 e 2000. Segundo ele, elas refletem a insatisfação de suas classes sociais com os direitos cerceados.

— É certo que elas têm o mesmo papel. A MPB era para a classe média, que tinha seus direitos tolhidos, com censura e perseguição. Com a redemocratização, esses direitos foram reconquistados, mas não para a classe pobre. O funk e o rap acabam externando esse sentimento de falta de direitos.

O BRUCUTU é usado pela polícia para dispersar manifestantes na época da ditadura

O CAVEIRÃO é empregado durante uma incursão policial no Complexo do Alemão

A PASSEATA dos Cem Mil, realizada no Centro, em 1968, em oposição ao regime militar

MANIFESTAÇÃO na Rocinha pedindo paz para uma das maiores favelas do Rio

PARENTES de mortos e desaparecidos durante a ditadura com o médico Amílcar Lobo

DUAS DAS mães de Acari, com fotos de suas filhas, que desapareceram em 1991

VANDRÉ num festival: “Pra não dizer que não falei das flores” virou hino contra a ditadura

JOVENS se divertem num baile funk: música reflete cotidiano de moradores das favelas do Rio

“O caveirão nasce da lógica militar de que a favela é um território estrangeiro Demétrio Magnoli, sociólogo

“Tanto funk quanto o hip hop tem a missão de narrar o que está a seu redor Marcelo Yuka, músico

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

LYDA MONTEIRO DA SILVA


LYDA MONTEIRO DA SILVA


Nasceu em 5 de dezembro de 1920, em Niterói, Rio de Janeiro, filha de Luiz Monteiro da Silva e Ludovina Monteiro da Silva.
Era casada e tinha um filho. Funcionária da Ordem dos Advogados do Brasil, onde ingressou em 1936, quando tinha apenas 16 anos. Por sua capacidade, chegou a ocupar o cargo de Diretora do Conselho Federal da OAB, no Rio de Janeiro.
Morta aos 59 anos de idade no Rio de Janeiro, em 27 de agosto de 1980, durante o governo Figueiredo na chamada “Operação Cristal”, organizada por grupos extremistas de direita, pela explosão de uma carta bomba, às 14:00 horas, na sede da OAB/RJ. A carta era endereçada ao presidente da entidade, Eduardo Seabra Fagundes, do qual D. Lyda era secretária.
O registro de ocorrência de n° 0853 da 3ª D.P. dá sua morte como “ato de sabotagem ou terrorismo” e informa que, na explosão, saiu ferido outro funcionário, José Ramiro dos Santos.
D. Lyda veio a falecer no caminho para o Hospital Souza Aguiar. Seu óbito de n° 313 foi assinado pelo Dr. Hygino C. Hércules, do IML, tendo como declarante Joaquim Alves da Costa.
Foi enterrada no dia seguinte no Cemitério São João Batista (RJ) com grande participação dos movimentos sociais e cobertura da imprensa.
No mesmo dia 27, mais duas cartas-bomba foram entregues, no Rio de Janeiro - no Gabinete do vereador Antonio Carlos de Carvalho (PMDB) e na sede do jornal Tribuna da Imprensa. Inquéritos, na época, foram abertos e nada foi apurado. O crime na OAB ocorreu quando a Seccional de São Paulo e o presidente da Ordem insistiam na identificação de agentes e ex-agentes dos serviços de segurança suspeitos de um outro atentado, ocorrido no mesmo ano, contra o jurista Dalmo Dallari.

domingo, 26 de agosto de 2007

DEMOCRACIA NÃO SOBE O MORRO


DEMOCRACIA NÃO SOBE O MORRO


Tráfico, milícia e polícia impõem regime de terror a 1,5 milhão de moradores de favelas do Rio, aonde ainda não chegaram os direitos garantidos pela Constituição.



O ano era 1985, dia 5 de janeiro. Desde o início da manhã, milhares de pessoas estão concentradas na Superquadra Sul 206, em Brasília, onde morava Tancredo Neves. Naquele dia, ele seria eleito pelo Colégio Eleitoral, com 480 votos, o primeiro presidente civil desde o golpe de 64. Manifestações de otimismo explodiam em todo país. Tancredo morreria três meses depois, mas o processo de redemocratização estava iniciado. Era o fim de um período de 21 anos de ditadura militar que suprimiu os direitos dos brasileiros. Vinte e dois anos depois, quase o mesmo tempo que duraram os anos de chumbo, pelo menos 1,5 milhão de moradores de favelas do Rio ainda vivem uma ditadura e têm seus direitos fundamentais violados por grupos armados do tráfico ou da milícia, ou são submetidos a todo tipo de desrespeito por parte de uma polícia despreparada e, muitas vezes, bandida.

Nesses territórios, vale a lei do mais forte, e o número de vítimas, que são os moradores, ainda está subestimado, porque os dados disponíveis são do censo de 2000. Não está incluída, por exemplo, a população de conjuntos habitacionais como a Cidade de Deus, lugar que virou um clássico da história desses novos tempos. E ainda estão de fora as áreas de influência que ficam no entorno de favelas, onde tiroteios comprometem o ir e vir e o comércio é obrigado a fechar as portas.

Para especialistas, há regime de terror


A democracia está tão longe da realidade dos moradores dessas comunidades pobres quanto a Constituição de 1988, cujo guardião é o Supremo Tribunal Federal. No passado, quando a liberdade foi roubada, os alvos principais eram intelectuais e jovens de classe média. Hoje, é exclusivamente a população pobre, que não tem a assistência do Estado ou acesso à Justiça. Traficantes, milicianos e policiais ditam as regras, matam, torturam, queimam corpos. São eles que julgam o que é certo e errado e estabelecem as punições. Para especialistas, um regime de terror que supera, em muitos aspectos, o arbítrio militar. As vítimas, assustadas, refugiamse no silêncio e raramente aparecem em inquéritos ou processos judiciais.


Há 27 anos realizando pesquisas sobre o assunto, a antropóloga Alba Zaluar diz que as vítimas se tornam invisíveis porque a pena para quem denuncia é a morte.

— É óbvio que a lei não está só na Constituição, não está só num texto escrito. Enquanto a Constituição escrita não for implementada em todos os cantos e recantos do país, nós não podemos dizer que temos um estado democrático de direito neste país. Não sou constitucionalista, sou uma pesquisadora.

Mas sei a enorme diferença que há entre mim e os sujeitos das minhas pesquisas que falam dos horrores que vivem no dia-a-dia.

As histórias das vítimas dessa barbárie começam a ser contadas numa série de reportagens que O GLOBO publica a partir de hoje.

Foram realizadas mais de 200 entrevistas, 60% delas com moradores de favelas. São relatos de quem sofreu na pele ou testemunhou o sofrimento de pessoas que tiveram seus direitos violados nesses territórios “dominados”.

Como muitas dessas pessoas estão ameaçadas, elas ganharão codinomes — recurso usado pelos militantes perseguidos pela ditadura militar — e, em alguns casos, os locais onde aconteceram os crimes serão omitidos. Há relatos contundentes de testemunhas que se recusaram a ir a tribunais.

Casos como o de Iara, de 24 anos, que foi expulsa de casa, saindo apenas com a roupa do corpo, quando traficantes de Parada de Lucas tomaram as bocas-de-fumo de Vigário Geral em junho. Ou de Pedro, de 32 anos, torturado pelo tráfico por não ter dinheiro para saldar um crediário. Ou ainda de um ex-líder comunitário do Morro da Formiga, na Tijuca, morto no microondas (latões com óleo diesel ou pneus em que corpos são incinerados), porque teria se recusado a intermediar o “arrego” (pagamento de propina a policiais).

Nas favelas, vítimas anônimas e sem corpos


Seguindo um caminho inverso ao da redemocratização, o tráfico foi, aos poucos, instituindo um código de leis marciais. Os direitos fundamentais do cidadão, como o direito à vida, à locomoção, à liberdade de expressão, foram, mais uma vez, subtraídos. Essa ditadura segue limites territoriais, o que faz com que um cidadão tenha que se adequar a regras específicas da favela em que vive — que variam de acordo com a facção criminosa — das quais só é liberado quando sai para trabalhar ou estudar no asfalto. Fenômeno mais recente, as milícias usam os mesmos métodos. Não há como estimar o número de execuções, porque os corpos, quase sempre, vão para cemitérios clandestinos.

— O estado de exceção se caracteriza pela suspensão de direitos e liberdades constitucionais.

Não é possível afirmar que nas favelas vigorem em plenitude direitos como inviolabilidade de domicílio, liberdade de locomoção e de opinião. Lá, os direitos que fazem parte da tradição democrática ocidental não são plenamente observados — afirma o conselheiro da OAB Cláudio Pereira de Souza Neto, especialista em direito constitucional.

Presa e torturada durante a ditadura, a psicóloga Cecília Coimbra, presidente do grupo Tortura Nunca Mais, considera que as características sociopolíticas de hoje são diferentes das da época do governo militar, mas acha que as violações dos direitos fundamentais, hoje, são sistemáticas e generalizadas.

— Falar em ditadura é simplificar. A violência atualmente atinge um número muito maior de pessoas, fundamentalmente os pobres.

O desaparecimento de corpos e a prática de tortura são muito intensos — afirma Cecília, que é professora da Universidade Federal Fluminense (UFF).


Carla Rocha, Dimmi Amora, Fábio Vasconcellos e Sérgio Ramalho

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

A NOVA DITADURA IV
















SEM CORPO, UM CRIME SEM CASTIGO

Mãe até hoje luta para que polícia suba morro e ache cadáver da filha enterrado em cemitério clandestino


Assim como os ursinhos de pelúcia da jovem ainda enfeitam seu antigo quarto, a investigação sobre o desaparecimento de Taís Louise, de 18 anos, também não saiu do lugar.

Desde que a filha desapareceu no ano passado, a donadecasa Silvia, de 38 anos, vai, a cada 15 dias, à 37aDP (Ilha do Governador). Mas, até hoje, a polícia não subiu o Morro do Barbante, na Ilha, onde traficantes seqüestraram a jovem no dia 2 de julho de 2006.

O corpo de Taís teria sido enterrado num cemitério clandestino numa área conhecida como Amendoeira, na parte alta do morro. No entanto, não foi encontrado. Silvia acusa a mulher do então chefe do tráfico pelo crime. Contra a vontade da mãe, a filha namorava o bandido, que conhecera num baile funk. O romance já durava quatro meses quando a jovem foi seqüestrada.

Desde que o namoro começara, Taís, que estava na 8asérie de um supletivo, passara a faltar às aulas e praticamente abandonara o curso de inglês. Ao se apaixonar pelo bandido, Taís se tornou moradora do Barbante, onde ficava parte da semana na casa de uma amiga.

— A polícia encontrou a milha filha e o namorado dormindo num barraco. A Taís foi liberada, mas pôde escutar quando ele foi morto. Depois, ela me ligou e disse que não podia sair de lá naquela hora, porque podiam achar que ela era X-9 (informante da polícia) — recorda Silvia, que recebeu o primeiro telefonema da filha por volta das 11h e o último, às 14h.

O ritual da execução foi detalhado pela amiga com quem Taís morava. Segundo ela, os traficantes levaram a jovem e outra menina, Ana Carolina, também desaparecida, para o alto do morro. Silvia chora ao contar a história que soube pela testemunha do crime: — Os bandidos metralharam a minha filha, esquartejaram e atearam fogo ao corpo dela. Ela ainda está lá, no alto da Amendoeira.


Feirante perdeu três filhos

Feirante há 40 anos ou, como ele prefere, “desde que se entende como gente”, seu Joel, de 61 anos, viu a milícia atingir como um raio a sua família. Em 92, ele ficou sozinho com cinco filhos para criar, três deles homens, numa casinha no acesso à Favela Lins de Vasconcellos, entre comunidades como Gambá e Cachoeirinha.

Todos os filhos homens foram assassinados. O último, Leonardo de Freitas Paiva Neves, de 25 anos, o Léo, por milicianos de uma favela em Quintino.

O rapaz desapareceu com a mulher em 28 de novembro do ano passado. Os corpos não foram encontrados.

Joel, que hoje mora num sítio longe da cidade, diz que sempre achou impossível criar um filho em paz numa favela: — Na favela, você perde seus filhos para o tráfico ou para a polícia. Os jovens delinqüentes da Barra, quando presos, têm bons advogados e logo são soltos. Ou vão para clínicas de reabilitação.

Os nossos filhos são executados. Todos os 20 da turma do Léo estão mortos. Joel hoje vive com os netos órfãos e luta para prender os assassinos de Léo. Ele, que já havia sido preso uma vez, teria sido morto após voltar a roubar toca-fitas. A milícia pune com a morte quem rouba em sua área de influência.

Os outros dois filhos de Joel, um deles viciado, foram mortos pela polícia.

Carla Rocha, Dimmi Amora, Fabio Vasconcellos e Sérgio Ramalho.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

A NOVA DITADURA III





Quadro de Fernando Botero da obra Massacres.


DESAPARECIDOS HOJE ULTRAPASSAM 7 MIL
NA DITADURA MILITAR, 136

Número de vítimas do tráfico de drogas e das milícias, cujos corpos nunca foram encontrados pela polícia, é 54 vezes maior do que o de pessoas sumidas durante os governos de exceção.

Sábado, véspera do Dia dos Pais, o funcionário público Cláudio Daltro Barbosa, de 50 anos, passa quatro horas curvado numa cadeira enquanto um tatuador grava em suas costas uma carta de 13 linhas. O texto, misto de declaração de amor e despedida, é endereçado ao filho, Diego, de 23 anos, desaparecido em março após desentendimento com um PM ligado à milícia que atua na Vila Sapê, em Jacarepaguá.

Diego figura entre os 10.464 desaparecidos catalogados de 1993 até junho pelo Serviço de Descoberta de Paradeiros da Delegacia de Homicídios, incluindo dados das unidades da Zona Oeste e da Baixada Fluminense.

Desse total, 70% (7.324) dos casos estariam relacionados à ação do tráfico e, mais recentemente, das milícias. No vácuo deixado pelo Estado, a ditadura imposta por esses grupos produziu, num período de 14 anos, 54 vezes mais desaparecidos do que os registrados durante os 21 anos do regime militar: 136, segundo levantamento do Tortura Nunca Mais.

Em cinco meses, o homem que evitava exames de sangue e injeções, por medo de agulhas, transformou o corpo num mosaico em homenagem ao filho.

— Isso aqui é uma forma minha, não sei, de autoflagelação.

É uma forma de atenuar essa dor insuportável — diz Cláudio, referindo-se às imagens do rosto do filho e de um coração partido tatuadas nos braços, após o desaparecimento dele.


Uma armadilha da milícia

Desde então, pai, mãe e o outro filho percorrem as ruas de Jacarepaguá, espalham cartazes com fotos de Diego e vão semanalmente à delegacia e ao Ministério Público. A investigação paralela da família reconstituiu as últimas horas de Diego. Recém-formado num curso de chef, ele trabalhava como mototaxista ao lado do laboratório Merck.

Vinte dias antes de desaparecer, ele brigou com um PM do 18 oBPM (Jacarepaguá) por causa de uma mulher. A partir daí, Diego passou a ser perseguido pelo policial. Na noite de 20 de março, ele comemorava com amigos o convite para trabalhar num restaurante quando uma mulher pediu que ele a levasse ao Largo da Preguiça.

Assim que saiu em sua moto, o jovem foi perseguido por um Audi A-4 e um Gol branco.

Os veículos, segundo investigação da Delegacia de Homicídios da Zona Oeste, eram usados por integrantes da milícia que atuam na Vila Sapê, entre eles o policial do 18oBPM.

Fechado pelo Audi, Diego perdeu o controle da moto, batendo na lateral do veículo e caindo. Rendido pelo grupo, o rapaz foi jogado na mala do carro e desapareceu.


Prática impede processo legal

José Gregori, ex-ministro da Justiça e atual presidente da Comissão de Direitos Humanos de São Paulo, explica que a tática de desaparecer com corpos, à qual o regime militar também recorreu, tem como objetivo impedir a formalização do processo legal. Ou seja, evitar a identificação do crime e dos possíveis culpados: — O desaparecimento de corpos é conseqüência da violência.

A violência vai se aperfeiçoando para praticar crimes correndo o menor risco possível. Esse tipo de raciocínio perverso, aplicado por razões políticas, é usado agora na violência criminal.

Foi o caso do aposentado Sebastião da Silva Marques, de 45 anos, que tinha saído de casa para comprar pão. Uma rotina de todas as manhãs, interrompida por dois jovens armados em 23 de maio de 2006. Levado pelos “soldados” ao chefe do tráfico numa favela da Zona Oeste, ele foi acusado de ser “X-9” (informante da polícia).

Condenado à morte, foi obrigado a cavar a própria sepultura, numa área militar, nos fundos da comunidade.

No caso de Sebastião, tráfico e PMs estariam associados. Segundo uma testemunha ouvida na delegacia, policiais teriam contado aos traficantes, em troca de R$ 2 mil, que o aposentado seria informante.

Meses antes de desaparecer, Sebastião havia sido atingido por uma bala perdida ao ficar no meio de um tiroteio entre PMs e bandidos, quando chegava do trabalho. O ferimento resultou na perda de parte de sua perna direita, obrigando-o a se aposentar por invalidez. Na ocasião, ele atribuiu aos PMs a responsabilidade pelo disparo que o atingiu. A investigação não apontou os culpados.

Para o delegado Paulo Henrique Pinto, da DH-Oeste, Sebastião foi morto pelo tráfico. Ele ressalta a necessidade de encontrar fragmentos do corpo para oficializar a crime. Já foram realizadas duas operações na região, inclusive em parte do Campo de Gericinó, que fica nos fundos da favela.

Também sem qualquer informação do filho, a diarista Marilene Prates, de 48 anos, carrega na bolsa a Bíblia e o álbum com fotos de Caetano, de 28 anos. Estudante de direito e motorista da Comlurb, ele desapareceu em 15 de junho passado, quando tentava recuperar o telefone celular roubado de uma amiga. O ladrão exigia R$ 300 para devolver o aparelho.

Caetano foi negociar a devolução do celular e nunca mais foi visto. Para a polícia, há fortes indícios de que ele foi morto por traficantes do conjunto Amarelinho, em Irajá.

— Caetano
dizia que ia escrever um livro sobre nossa família.

Para mim, ele está vivo — acredita Marilene.

Solange, outra mãe em situação semelhante, esteve com o filho no dia 13 de dezembro de 2005. Ele saiu dizendo que ia jogar bola. Na época, Douglas cursava a 6asérie num colégio particular pelo qual a mãe, copeira num banco da Zona Sul, desembolsava R$ 85. Ela ainda pagava aulinhas de futebol para o filho, que sonhava com o sucesso nos gramados. Ele foi seqüestrado, junto com outros nove jovens, por traficantes de Parada de Lucas que, na época, invadiram Vigário Geral.

— Não vou viver apenas com uma certidão de nascimento atestando que o meu filho um dia existiu. Não vou viver só com as fotos e a lembrança dele.

A polícia existe para nos proteger e não para se associar ao tráfico e sumir com os nossos filhos — desabafa Solange.

Segundo o processo judicial, o seqüestro de Douglas Roberto Alves Tavares, de 16 anos, foi arquitetado pelo traficante conhecido como Furica, que invadiu Vigário Geral dentro de um Caveirão alugado por R$ 50 mil por PMs do Destacamento de Policiamento Ostensiva (DPO) da favela. No depoimento de Tiago, um dos traficantes presos, Solange passou mal e teve que ser retirada da sala de audiências.

— Olhando fixamente para mim, ele contou que, quando o meu filho entrou no Caveirão, o Furica cortou o nariz dele com uma tesoura. Ele falou que nunca tinha visto um preto com nariz fino. No caminho, segundo ele, os traficantes foram cortando dedos, orelhas e línguas dos rapazes — conta Solange, que desde então foge do tráfico e já teve pelo menos 16 endereços.

Carla Rocha, Dimmi Amora, Fábio Vasconcellos e Sérgio Ramalho

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

A NOVA DITADURA II


Tim Lopes, as favelas e os direitos humanos


Por Paulo Magalhães*

A morte do jornalista Tim Lopes, em exercício profissional, teve grande repercussão na mídia, causando enorme comoção na sociedade brasileira, particularmente na cidade do Rio de Janeiro. Em verdade, virou um ícone e um mártir do jornalismo carioca. Evidentemente pela notoriedade do profissional, a natureza da sua profissão e mesmo pelo corporativismo prevalecente na sociedade brasileira, a repercussão da sua trágica morte simbolizou um atentado à liberdade de imprensa e uma afronta aos direitos humanos.

No entanto, Tim Lopes é um caso de um processo estrutural, regular e contínuo de assassinatos cometidos nas favelas cariocas. Antes da morte de Tim Lopes e após sua morte, a condenação sistemática daqueles que não cumprem as regras ditadas pelo chamado "crime organizado" continua intocada.

A maioria das condenações à morte nas favelas cariocas, com utilização dos métodos de extermínio utilizados no caso Tim Lopes, sequer são registradas nos organismos oficiais e não encontra nenhum amparo das instituições públicas brasileiras e mesmo na mídia.

O caso de uma mulher de 40 anos moradora de uma favela carioca traduz a afronta aos direitos humanos elementares daqueles que não têm a notoriedade de Tim Lopes. Ela vive de biscates desde que seu companheiro a abandonou quando a filha tinha 10 anos. Na maioria dos casos de abandono do companheiro, não há qualquer chance de obrigá-lo a cumprir as funções definidas pelo Direito. Ele simplesmente desaparece e a mulher não tem condições de ter acesso à Justiça. Sendo assim, reproduz-se o circuito da pobreza e da tragédia: a mãe sai para trabalhar e a filha fica sozinha em casa. O seu cotidiano é marcado pela convivência coma vicissitudes da rua. Abandona a escola e passa a conviver com os "meninos do tráfico". Logo namora um deles, corre risco de ser presa, faz pequenos favores para o tráfico. Nesse processo, ganha importância e respeito na favela por estar ligada ao tráfico através do namorado traficante. Tempos depois, seu namorado é executado numa operação policial.

Desprovida da proteção do tráfico, procura resguardo numa outra relação. Começa a "ter um caso" com um soldado do grupamento policial da favela. Logo esta notícia chega à "boca-de-fumo". O veredicto é dado: autoriza-se a sua execução. Numa manhã é ela tirada de casa, seu corpo retalhado e exposto durante todo o dia em via pública da favela para servir como exemplo para aqueles que descumprem as normas do tráfico de drogas. À noite, seu corpo é jogado numa lagoa que serve de "local de desova" do tráfico.

Sua mãe ainda hoje perambula pelas ruas da favela pedindo que as pessoas liguem para o celular da filha para confirmar se ela está morta. Ela acredita que a filha está em cárcere privado, já que quando liga para o celular da filha ouve vozes e reconhece como de sua filha. Mas ela tem dúvidas. Deseja que outros confirmem a sua esperança.

Este caso, assim como o caso Tim Lopes, é apenas mais um das inúmeras situações similares que ocorrem cotidianamente nas favelas do Rio de Janeiro. Existem, ainda, os casos de execuções protagonizadas pela polícia e pelas milícias.

Nunca os direitos humanos foram tão violados, nem mesmo no período ditatorial, ajudado pelo silêncio cúmplice das elites brasileiras que nada vêem, nada escutam, nada falam. Só pedem proteção para os seus pares.


*Paulo Magalhães é sociólogo

A NOVA DITADURA I


Tráfico, milícia e polícia impõem regime de terror a moradores de favelas do Rio

O funcionário público tatuou em suas costas uma mensagem para o filho desaparecido. Foto: Custódio Coimbra


O jornal "O Globo" começa a publicar neste domingo uma série de reportagens, intitulada "Os brasileiros que ainda vivem na ditadura", que aborda como cerca de 1,5 milhão de moradores de favelas e morros do Rio de Janeiro ainda vivem sob uma ditadura. Eles têm seus direitos fundamentais violados por grupos armados do tráfico ou da milícia, ou são submetidos a todo tipo de desrespeito por parte de uma polícia despreparada e, muitas vezes, bandida.

Foram realizadas mais de 200 entrevistas. São relatos de quem sofreu na pele ou testemunhou o sofrimento de pessoas que tiveram seus direitos violados nesses territórios "dominados". Como muitas dessas pessoas sofrem ameaças, elas ganharão codinomes - recurso usado pelos militantes perseguidos pela ditadura militar - e, em alguns casos, os locais onde aconteceram os crimes serão omitidos.

Durante a série, vamos conhecer casos como o do funcionário público Claudio Daltro, de 50 anos, que tatuou em suas costas uma carta de 13 linhas. O texto, misto de declaração de amor e despedida, é endereçado ao filho, Diego, de 23 anos, desaparecido em março após desentendimento com um policial militar ligado à milícia que atua na Vila Sapê, em Jacarepaguá.

Diego figura entre os 10.464 desaparecidos catalogados de 1993 até junho pelo Serviço de Descoberta de Paradeiros da Delegacia de Homicídios, incluindo dados das unidades da Zona Oeste e Baixada Fluminense. Desse total, 70% (7.324) dos casos estariam relacionados à ação do tráfico e, mais recentemente, das milícias. No vácuo deixado pelo Estado, a ditadura imposta por esses grupos produziu, num período de 14 anos, 54 vezes mais desaparecidos do que os registrados durante os 21 anos do regime militar: 136, segundo levantamento do Tortura Nunca Mais.

Em cinco meses, o homem que evitava exames de sangue e injeções, por medo de agulhas, transformou o corpo num mosaico em homenagem ao filho.

- Isso aqui é uma forma minha, não sei, de auto-flagelação. É uma forma de atenuar essa dor insuportável - diz Claudio, referindo-se às imagens do rosto do filho e de um coração partido tatuadas nos braços, após o desaparecimento dele.

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