QUANDO O PASSADO SE ENCONTRA COM O PRESENTE
Na ação policial, no drama das famílias das vítimas, na música, no cinema e no teatro, tempos da ditadura lembram os atuais.
As fotos em preto e branco da ditadura militar deixam a impressão de que a história foi colorida artificialmente. Passado e presente se encontram na estética da dor e da resistência. Para muitos observadores mais atentos, há no Caveirão da polícia o mesmo espírito do Brucutu, temido blindado das Forças Armadas que jorrava água contra os militantes. E semelhanças de objetivos entre as faixas da época, como “Abaixo a ditadura”, que viraram um símbolo nas ruas pós-golpe de 64, e os grafites que hoje levam para os muros protestos e pedidos de paz de moradores de favelas. Prática que foi cooptada pelo tráfico, que espalha siglas de facções criminosas pela cidade. Também são possíveis comparações entre as músicas dos anos de chumbo de ontem, muitas censuradas, e os funks e raps de movimentos hip hop de hoje.
Para o sociólogo e doutor em geografia humana Demétrio Magnoli, a imagem do Caveirão remete ao Brucutu porque tem origem na mesma lógica: — Assim como na ditadura havia o conceito do inimigo interno, o Caveirão nasce da lógica militar de que a favela é um território estrangeiro, inimigo.
Cinema também foi censurado
No passado, a estilista Zuzu Angel, cujo filho Stuart desapareceu nas mãos de militares, foi o símbolo das “mães da Praça de Maio brasileiras”, numa inevitável comparação com o movimento da Argentina. No Rio de hoje, o mesmo papel é desempenhado pelas mães de Acari (cujos filhos, desaparecidos, teriam sido mortos pela polícia em 1991), pelas mães de Vigário (de jovens seqüestrados pela PM em 2005), pelas mães do Borel, do Caju e do Degase, entre outras. As imagens ganham apenas as tonalidades do tempo.
Nos festivais de música, durante a ditadura, os artistas enfrentavam a censura com suas canções. Geraldo Vandré escreveu um dos versos mais repetidos nesse período: “Há soldados armados, amados ou não, quase todos perdidos de arma na mão”, em “Pra não dizer que não falei das flores”. O próprio Caetano, apesar de menos explícito em sua militância política, cantou “É proibido proibir”.
O mais visado de todos, Chico Buarque, deixou sua assinatura numa série de canções engajadas, como “Apesar de você” e “Cálice”, só para citar algumas.
Os militares contra-atacavam com bordões como “Brasil.Ame-o ou deixe-o” e com hinos ufanistas, como “Pra frente,Brasil", que embalou a torcida na Copa de 70. Hoje, MCs e rappers tentam driblar as imposições do tráfico, defendendo o direito de relatar o lamento de moradores de favelas, de falar de suas mazelas e seus dramas cotidianos. No entanto, quando falam da violência, em geral se restringem à ação da polícia. Quando fazem menção ao tráfico, as letras são ataques de uma facção a outra. Por isso, os MCs que cantam os proibidões — funks exaltando uma quadrilha ou uma omunidade dominada por uma facção — só podem se apresentar em favelas “amigas”, caso ontrário podem ser mortos.
— Tanto o funk quanto o hip hop têm uma missão de narrar o que está a seu redor. Mas, muitas vezes, o meio que incentiva sua produção ou garante suas apresentações é o narcotráfico.
Por isso, surgem os proibidões com histórias que valorizam o dono do morro ou exaltam a comunidade de uma facção. Esses são proibidos para se apresentar para os inimigos”.A censura é até pior do que a da ditadura — avalia o músico Marcelo Yuka.
Com uma linguagem que pretendia mostrar a realidade do país, o Cinema Novo, em especial em sua segunda fase, também virou alvo da ditadura. Filmes como “O desafio” (1968), de Gustavo Dahl, e “Terra em transe” (1967), de Glauber Rocha, foram os mais marcantes dessa fase. Passados mais de 30 anos, o cinema nacional continua a ser um veículo de grande importância no registro histórico de uma época, com obras como “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles, e documentários como ”Falcões do tráfico”, de MV Bill e Celso Athayde.
O cineasta Neville D’Almeida, que teve cenas do filme “Rio Babilônia” cortadas pelos censores, acha que, atualmente, o cinema cumpre um papel muito semelhante ao do passado: — Acho a correlação entre o cinema daquele período e os vídeos que hoje são feitos nas favelas muito oportuna. O cinema ou o vídeo são uma forma, sim, de contrariar o sistema de violência em que eles (moradores de favelas) vivem. As favelas têm que se libertar, e a arte é um caminho para isso.
Crítico musical vê semelhanças
Criado em 1970 pelo teatrólogo Augusto Boal como uma forma de resistência à ditadura militar, o Núcleo Dois do Arena, com os primeiros experimentos do Teatro-Jornal, foi o embrião do Teatro do Oprimido. Da época, fica ainda a lembrança do Teatro de Arena e de grupos como o Opinião. Hoje, o Teatro do Oprimido está em 80 países e em favelas do Rio. Atualmente, há outras iniciativas bem-sucedidas, como a do Grupo Nós do Morro, no Vidigal.
— Não só há uma semelhança (entre o papel do Teatro do Oprimido na ditadura e hoje), como houve uma evolução. Quando eu saí exilado em 71, o teatro era muito pequeno. A gente foi desenvolvendo as técnicas em favelas da América Latina. Mais do que fazer espetáculo, o objetivo é o processo estético de percepção do mundo e transformação — diz Boal.
O crítico musical Artur Dapieve, colunista do GLOBO, vê semelhanças entre as canções de protesto da MPB dos anos 60 e 70 e o rap e o funk dos anos 90 e 2000. Segundo ele, elas refletem a insatisfação de suas classes sociais com os direitos cerceados.
— É certo que elas têm o mesmo papel. A MPB era para a classe média, que tinha seus direitos tolhidos, com censura e perseguição. Com a redemocratização, esses direitos foram reconquistados, mas não para a classe pobre. O funk e o rap acabam externando esse sentimento de falta de direitos.
O BRUCUTU é usado pela polícia para dispersar manifestantes na época da ditadura
O CAVEIRÃO é empregado durante uma incursão policial no Complexo do Alemão
A PASSEATA dos Cem Mil, realizada no Centro, em 1968, em oposição ao regime militar
MANIFESTAÇÃO na Rocinha pedindo paz para uma das maiores favelas do Rio
PARENTES de mortos e desaparecidos durante a ditadura com o médico Amílcar Lobo
DUAS DAS mães de Acari, com fotos de suas filhas, que desapareceram em 1991
VANDRÉ num festival: “Pra não dizer que não falei das flores” virou hino contra a ditadura
JOVENS se divertem num baile funk: música reflete cotidiano de moradores das favelas do Rio
“O caveirão nasce da lógica militar de que a favela é um território estrangeiro Demétrio Magnoli, sociólogo
“Tanto funk quanto o hip hop tem a missão de narrar o que está a seu redor Marcelo Yuka, músico