"PAÍS VIVE EPIDEMIA DE LULAFOBIA", DIZ JURISTA
Dalmo Dallari diz que presidente, para não parecer ditador, usa o poder de menos e passa a impressão de ser fraco.
O jurista e professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Dalmo Dallari elogia a honestidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a sua preocupação com a justiça social, mas diz que ele tem medo de ser autoritário, de parecer "totalitário" e, por causa disso, "para não usar demais o poder, ele o usa de menos". Segundo Dalmo Dallari, Lula se mostra "um governo fraco ou dá a aparência de muita fraqueza".
Dallari ressalta, no entanto, que o País está vivendo "uma epidemia de Lulafobia" por parte das "elites tradicionais", "que até hoje não se conformaram em ver um operário na Presidência da República". Para o jurista, Lula não tem uma base sólida de sustentação no seu próprio partido, o PT, e por causa disso ele tem buscado acordos políticos que, "muitas vezes, são absolutamente negativos e contraditórios. Quer dizer, Lula hoje se alia e chama para o ministério pessoas que têm uma linha que é exatamente o oposto daquilo que ele sempre sustentou. Então, é um governo de contradições".
TRIBUNA DA IMPRENSA - De que forma o senhor define as crises políticas no Brasil de hoje?
DALMO DALLARI - Acho que é um conjunto de fatores. Na verdade há um componente ético quando se verifica que pessoas altamente situadas, tanto no Executivo, quanto no Legislativo e no próprio Judiciário, abrem mão de padrões éticos que são fundamentais na sociedade brasileira. Então, há alguma razão que está influindo para a perda dos padrões éticos. As pessoas parecem que, de um lado, perderam a vergonha de agir de maneira imoral, e de outro lado, perderam a noção da importância social, humana, para poder ocupar um posto relevante. Há de fato um componente ético.
Mas, além disso, há também um componente político. Nós estamos vivendo - e o problema não é só brasileiro, diria quase universal - realmente uma fase de materialismo exacerbado, da supervalorização dos bens materiais - e é preciso não ter medo de dizer isso -, em que as pessoas se preocupam com o ter, com o ganhar, com o ostentar, dando muito pouco valor a pessoa humana e a dignidade do ser humano, a exigências fundamentais, a princípios básicos, como a exigência da justiça nas relações humanas.
Isso tudo passou para plano secundário e hoje o que se supervaloriza é o ter mais, o ganhar mais, é o levar vantagem. De certo modo, estamos engajados naquela orientação que Alexis de Tocqueville (jovem intelectual francês) denunciou nos Estados Unidos no século XVIII, quando disse "nunca vi um povo gostar tanto de dinheiro como o da América do Norte". Disse ainda que "lá são todos iguais", e escreveu um livro clássico que se chama "A Democracia na América".
E essa questão do dinheiro hoje se tornou um padrão universal. Esse é um dado extremamente importante, que tem influência política, porque ao invés de se orientar por valores teóricos, filosóficos, da teoria política, os entendimentos, os acordos, a busca do poder, se orientam sempre na busca do ganho.
Então, de fato há um empobrecimento político da humanidade. Claro que a gente não pode pretender que as pessoas vivam em função de idéias. É preciso não perder de vista a realidade, mas é preciso ter as idéias, fundamentos, diretrizes teóricas, e isso tudo hoje está perdido.
É necessária uma urgente mudança do sistema eleitoral?
Acho que é preciso uma reforma política, num sentido mais amplo. A reforma partidária seria uma parte dessa reforma política. Assim, por exemplo, acho que é absolutamente necessário discutirmos o próprio federalismo brasileiro. Será que o Brasil precisa mesmo de um Senado? Precisa para quê? O que nós estamos vendo é um Senado agindo contra o interesse nacional, o que não significa que todos os senadores sejam de má qualidade, não é isso. Mas é que a tônica, aquilo que prevalece na linha do Senado, é contra o interesse público, o interesse nacional.
Mas, além disso, a questão do federalismo, ainda agora, se ressaltou que há várias propostas de criação de novos estados, especialmente na Região Amazônica e Mato Grosso, regiões que são objeto da cobiça de mineradores, de madeireiras e do agronegócio. Então, cinicamente se propõe a criação de novos partidos e com apoio de deputados e senadores. Isso é um absurdo, uma desnaturação do federalismo. É uma tentativa de introduzir o feudalismo no Brasil, porque isso é feito para criar feudos para grupos econômicos privilegiados.
É preciso pensar seriamente na mudança do sistema eleitoral. Acho absolutamente necessária uma discussão séria a respeito do sistema de distritos eleitorais. Aliás, na história constitucional brasileira, posterior a 1946, vamos encontrar inúmeras propostas de estabelecimento do sistema distrital. Acho que é uma diretriz que precisa ser considerada seriamente, porque aproxima melhor o eleitor do representante.
Permite que o eleitor faça um controle permanente do eleito e, inclusive, a revogação do mandato daquele que se comportar mal como mandatário. E, além disso tudo, dificulta a corrupção, porque o candidato que é obrigado a obter todos os votos num âmbito territorial menor, fica muito mais sujeito a controle pelo próprio povo. Então, são vários aspectos que se somam à reforma partidária e que compõem o quadro de reforma política.
O financiamento público de campanha dá mais transparência ao processo eleitoral?
Sou inteiramente favorável ao financiamento público de campanha, aliás, é o sistema que se usa na Alemanha, e com muito bom resultado. Com o financiamento público, fica eliminado o comprador de deputado, de chefe de Executivo, do sistema dois (caixa dois), porque nenhuma empresa poderá dar dinheiro para determinado candidato.
Quem tiver realmente a boa intenção de contribuir para o processo eleitoral, para mais democracia, deverá contribuir para um fundo público. E deste fundo público é que se fará a distribuição, com absoluta transparência, clareza e muito mais facilidade para o controle, o que não existe agora com o financiamento privado.
Como o senhor vê a tentativa da oposição em associar o presidente Lula com os escândalos de corrupção que convulsionaram o governo nestes dois mandatos?
Eu estou convencido de que estamos vivendo no Brasil uma epidemia do que eu chamaria de Lulafobia. Há uma verdadeira Lulafobia. O que se verifica é que as elites, ditas elites ou pretensas elites tradicionais, até hoje não se conformaram em ver um operário na Presidência da República. E têm muito medo de que isso crie um hábito, de que isso se repita, e querem de qualquer maneira desmoralizar o presidente Lula, para impedir que na sua sucessão se repita alguma coisa parecida.
Quer dizer, o que se quer é desmoralizar o Lula para reconquistar o terreno perdido pelas elites tradicionais. E o que se verifica, é que, infelizmente, grande parte da imprensa age segundo essa Lulafobia. Grandes jornais brasileiros se tornaram verdadeiros boletins anti-Lula. Hoje não se pode ler com confiança o noticiário político dos grandes jornais. Eu mesmo tenho feito uma observação que durante anos utilizei os jornais como matéria de aula.
Na minha disciplina de Teoria Geral do Estado, eu levava jornais para comentar com os meus alunos. Hoje eu não faria isso, porque não confio naquilo que sai na grande imprensa. Sei que há muita invencionice, muita distorção, mentira, exatamente por causa da Lulafobia. Então, é um dado muito negativo da nossa realidade de hoje.
Na sua opinião, o PT trata os movimentos sociais como linha auxiliar do governo?
O Partido dos Trabalhadores também está muito descaracterizado. Hoje não se pode falar num Partido dos Trabalhadores, porque ele tem inúmeras correntes. Há também uma disputa interna, e isso tem significado muitas vezes um abandono de princípios fundamentais, das bases problemáticas do partido. E há uma relação mal definida entre o Partido dos Trabalhadores e os movimentos sociais.
Existe também um aspecto que é importante ressaltar, de que os partidos de maneira geral estão desmoralizados no Brasil. E isso ao mesmo tempo em que há uma valorização nos movimentos sociais, porque em última análise é prática de democracia direta. É bom, mas de qualquer maneira é um dado que não pode ser perdido, e isso não se aplica somente ao Partido dos Trabalhadores, mas a todos os partidos. Há um ambiente geral de desmoralização do partido político.
Qual a análise sobre o governo Lula?
Acho que o governo Lula é um governo cheio de ambigüidade. Ainda acredito no Lula como uma pessoa honesta, um homem preocupado com a justiça social, que quer corrigir distorções fundamentais da história brasileira, mas, ao mesmo tempo, acho que Lula tem medo de ser autoritário, de parecer totalitário, de dar a impressão de que quer ser ditador. E, por causa disso, para não usar demais o poder, ele usa de menos. Então, fica um governo fraco, ou dá a aparência de muita fraqueza.
Mas, ao mesmo tempo, como ele não tem uma base sólida de sustentação no seu próprio partido, tem buscado acordos políticos que, muitas e muitas vezes, são absolutamente negativos e contraditórios. Quer dizer, Lula hoje se alia e chama mesmo para o ministério pessoas que têm uma linha que é exatamente o oposto daquilo que ele sempre sustentou. Então, é um governo cheio de contradições.
Qual o tipo de ação para inibir a corrupção?
Acho que aí há duas coisas que são necessárias, urgentes. Uma delas é a reação da opinião pública. Nós temos uma tradição de acomodação, que é muito negativa. Mas essa reação da opinião pública não deve acontecer em termos de quase brincadeira, como alguns têm proposto ultimamente. Tem que ser uma coisa séria, bem discutida. É preciso discutir o Brasil nas escolas, que as associações existentes no País também discutam o Brasil. Que haja encontros, congressos, discussões sérias a respeito do que fazer e do que precisa ser mudado.
Então, o envolvimento maior do povo organizado, e a par disso é absolutamente necessário que a imprensa assuma também a sua responsabilidade. Quer dizer, é comum que a imprensa reclame quando há qualquer coisa parecida com alguma restrição a sua liberdade. E, às vezes, com evidente exagero, assim por exemplo quando se fez a publicação da portaria sobre a classificação indicativa dos programas de televisão, houve uma reação tremenda, como se fosse a introdução da censura.
E não era nada disso, porque essa classificação indicativa é obrigação do governo e está prevista na Constituição. E o que se teve foi um absurdo recuo do governo Lula, que entregou para as emissoras de televisão o autocontrole, o que significa nenhum controle. Então, é preciso que a imprensa faça também um exame de consciência, assuma as suas responsabilidades, supere essa fobia anti-lulista e coloque os interesses do povo brasileiro como prioridade. Então, unidos, a imprensa livre e responsável e o povo consciente, nós mudaremos o que precisa ser mudado no Brasil.
Até que ponto os escândalos de corrupção são um risco às instituições?
Não temo que ocorra risco, por causa exatamente desse ambiente generalizado de acomodação. Acho que não há nenhuma perspectiva de um golpe de Estado, de uma subversão, entre outras coisas, porque ninguém tem idéias claras do que fazer. Então, não há de fato um movimento organizado, objetivo, bem definido, que pudesse levar a golpe de Estado, à subversão da ordem constitucional.
Acho que estamos num ambiente de muita acomodação, o que, por um lado, é muito ruim, porque favorece a corrupção, mas, de outro lado, é conveniente, porque mantém os instrumentos de ação democrática. É com esses instrumentos que devemos reagir.
Como o senhor vê o binômio política/corrupção, como o povo classifica?
Isso tudo faz parte desse quadro de busca de proveito, de vantagem, sem nenhum compromisso político. Isto é, não há o compromisso com programas, com objetivos sociais, com o interesse público. Então, a única preocupação é tirar proveito, ocupar cargos e postos importantes, para a partir daí tirar proveito pessoal. Isso é, infelizmente, o que está prevalecendo entre nós. Essa perda de parâmetros políticos ou político filosófico.
A delação premiada é polêmica para muitos. Está sendo bem aplicada ou não?
Acho que a delação premiada é uma coisa que precisa ser ainda muito discutida, pensada, porque ela sempre tem uma ambigüidade. Quer dizer, de um lado por abrir caminhos para facilitar a apuração de crimes, a identificação de uma quadrilha criminosa, mas, por outro lado é um prêmio ao criminoso. Quer dizer, é uma imoralidade essencial, e não é, sem dúvida, o melhor caminho para a investigação, a ação policial.
O que é necessário, preferível, é ter uma polícia bem preparada, bem organizada, e a polícia integrada, que é uma coisa que não existe entre nós, e que facilita muito a vida e a sobrevivência de grupos criminosos. A Polícia Civil não conversa com a Polícia Militar, a Polícia Federal não conversa com a Polícia Civil estadual. Então, temos muita polícia e pouco policiamento. Esse é o grande problema.
E a crise no setor aéreo?
Acho que a crise no setor aéreo também tem sido noticiada de maneira muito destorcida. Viajo muito de avião, especialmente depois da aposentadoria, circulo pelo Brasil o tempo todo e vi claramente a decadência da TAM em termos de qualidade. E uma coisa que está sendo escamoteada é a grande culpa da TAM no próprio acidente (Airbus A320, que colidiu contra o prédio da TAM Expres
Ela sabia que tinha aviões em péssimo estado, com defeitos. Aviões grandes demais para onde operavam e, além disso, pegou toda a herança da Varig. Ela tem uma quantidade enorme de escalas, o que é um absurdo. Não tinha nem aviões e nem pessoal para assumir tanto compromisso, tantas linhas e escalas. E a conseqüência foi uma operação de péssima qualidade, porque na verdade, a qualidade de serviço da TAM caiu ultimamente de maneira escandalosa. Esse "ultimamente", eu diria de dez anos para cá.
Mas existe culpa também das autoridades públicas, que deveriam exercer o controle, com uma fiscalização rigorosa, e que por alguma razão, até hoje não explicada, fecharam os olhos. Eu tenho sido um crítico constante, por exemplo, do controle militar da aviação civil brasileira. Isso não tem nenhum sentido.
Em nenhum lugar do mundo, onde existem muitas linhas e intenso tráfego aéreo, o controle da aviação civil é militarizado. Isso absolutamente não se justifica e é uma das causas do descontrole que existe na organização do sistema aeroviário brasileiro. Então, é um conjunto de fatores que está concorrendo para que nós tenhamos um serviço de muito má qualidade, inclusive criando muitos riscos para os usuários.
Criaram a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) com status de diretoria com mandato garantido. Qual a sua opinião?
Esse é exatamente um dos pontos em que o governo Lula recebeu como uma herança, porque isso (Anac) foi criado no governo Fernando Henrique Cardoso, dentro da linha neoliberal. Essas ditas agências reguladoras são, na verdade, um engodo, uma mentira, porque elas são desreguladoras. Foram criadas exatamente para evitar controle.
E daí criaram mecanismos em que pessoas são colocadas lá, sem serem eleitas, sem terem nenhuma comprovação da sua competência profissional e ficam lá absolutamente autônomas, fora de qualquer controle. Então, na verdade, é um elemento tremendamente negativo da organização pública brasileira, que foi introduzido no governo Fernando Henrique.
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