Um ato de covardia.*
"Acusada por advogados, promotores e juízes de "institucionalizar o calote público", a PEC dos Precatórios agora também está sendo duramente criticada pelas agências de classificação de risco. Uma delas, a Austing Rating, chegou a anunciar que rebaixará a nota de crédito do governo de São Paulo e da Prefeitura da capital se o Congresso aprovar as novas regras para pagamento de quem tem créditos a receber de Estados e municípios resultantes de decisões judiciais. Os "rating" de países, Estados e municípios medem o risco de inadimplência e são usados como parâmetros na concessão de empréstimos. Em regra, quanto menor é a nota, maiores são os juros.
Como o governo estadual e a Prefeitura da capital estão entre os principais defensores da PEC dos precatórios, não causa estranheza o tom com que seus dirigentes reagiram à decisão da Austin Ratings. Tentando desqualificá-la por meio de ofensas, o governador José Serra a acusou de estar a serviço de especuladores internacionais. "O pessoal acha que precatório envolve a viúva que deixou de receber. Isso é folclórico. O fundamental são os investidores que compraram precatórios a preço muito baixo. As agências de rating servem a esse pessoal", disse ele. "A figura da viuvinha que vai morrer não existe", afirma o secretário municipal de Finanças, Walter Morais Rodrigues.
Além de não bater com a realidade dos fatos, pois a seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Tribunal de Justiça de São Paulo já divulgaram relatórios estimando em mais de 60 mil o número de credores do poder público que morreram sem receber seus créditos, os argumentos de Serra e Rodrigues tentam deslocar a discussão do campo dos direitos para o do equilíbrio fiscal. O ajuste das contas públicas é importante, não há dúvida, mas, na democracia e no Estado de Direito, ele não pode ser obtido à custa da ordem legal.
E é justamente esse o ponto central da PEC dos Precatórios. Ela cria um teto anual para o desembolso que Estados e municípios podem fazer para o pagamento dos precatórios e prevê a realização de leilões para que possam ser pagos primeiramente aos credores que oferecerem os maiores descontos em seus créditos. Com isso, a PEC terá dois efeitos nocivos. Além de institucionalizar o atraso sistemático, ela cria condições para que os credores aceitem vultosos descontos na esperança de receber logo o que puderem, evitando perdas maiores resultantes daquele atraso.
A crítica feita pela Austin Rating enfatiza justamente esses dois efeitos. A exemplo do que já foi dito por entidades de advogados, promotores e juízes, ela denuncia a pretensão dos Estados e municípios de tentar levar vantagem à custa dos que têm precatórios, vencendo-os pelo cansaço. O governo paulista, por exemplo, tem dívidas acumuladas de R$ 12 bilhões e muitos dos credores ? as "viuvinhas" desdenhadas pelo governador ? são pessoas de idade, já aposentadas, e que não conseguirão esperar tanto tempo para receber o que têm direito.
Ao defender a PEC dos Precatórios, cuja inconstitucionalidade já foi amplamente apontada por juristas, os dirigentes municipais e estaduais alegam que ela foi concebida por um antigo ministro do STF e que já passou na CCJ do Senado. Eles também afirmam que, apesar dos credores terem direito a receber precatórios, a forma de pagamento é uma decisão discricionária do devedor. E insistem em dizer que estão fazendo "justiça social" quando prometem pagar os precatórios de menor valor sem qualquer desconto, desqualificando os direitos dos demais credores.
Esses argumentos são absurdos dos pontos de vista legal, ético e político. O fato de a PEC ter sido concebida por um ministro aposentado do STF e ter sido aprovada no Senado não prova a sua constitucionalidade. A pretensão de estabelecer que o justo é não pagar precatórios de maior valor, a menos que se submetam a desconto substancial, despreza a soberania do Judiciário para arbitrar conflitos entre o poder público e cidadãos e empresas. Como apontam os especialistas, a PEC é tão ardilosa que não prevê nem mesmo a exigência de pagamento rápido e integral de novos precatórios.
Como se vê, esse é um jogo cruel em que a parte mais forte ? o poder público ? tenta impor sua vontade a qualquer preço. Aprovando-a, a Câmara, estaria praticando um ato de covardia contra a parte mais fraca."
*Brasília, 07/06/2009 - O editorial "Um ato de covardia" foi publicado na edição de hoje (07) do jornal O Estado de S.Paulo.
"Acusada por advogados, promotores e juízes de "institucionalizar o calote público", a PEC dos Precatórios agora também está sendo duramente criticada pelas agências de classificação de risco. Uma delas, a Austing Rating, chegou a anunciar que rebaixará a nota de crédito do governo de São Paulo e da Prefeitura da capital se o Congresso aprovar as novas regras para pagamento de quem tem créditos a receber de Estados e municípios resultantes de decisões judiciais. Os "rating" de países, Estados e municípios medem o risco de inadimplência e são usados como parâmetros na concessão de empréstimos. Em regra, quanto menor é a nota, maiores são os juros.
Como o governo estadual e a Prefeitura da capital estão entre os principais defensores da PEC dos precatórios, não causa estranheza o tom com que seus dirigentes reagiram à decisão da Austin Ratings. Tentando desqualificá-la por meio de ofensas, o governador José Serra a acusou de estar a serviço de especuladores internacionais. "O pessoal acha que precatório envolve a viúva que deixou de receber. Isso é folclórico. O fundamental são os investidores que compraram precatórios a preço muito baixo. As agências de rating servem a esse pessoal", disse ele. "A figura da viuvinha que vai morrer não existe", afirma o secretário municipal de Finanças, Walter Morais Rodrigues.
Além de não bater com a realidade dos fatos, pois a seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Tribunal de Justiça de São Paulo já divulgaram relatórios estimando em mais de 60 mil o número de credores do poder público que morreram sem receber seus créditos, os argumentos de Serra e Rodrigues tentam deslocar a discussão do campo dos direitos para o do equilíbrio fiscal. O ajuste das contas públicas é importante, não há dúvida, mas, na democracia e no Estado de Direito, ele não pode ser obtido à custa da ordem legal.
E é justamente esse o ponto central da PEC dos Precatórios. Ela cria um teto anual para o desembolso que Estados e municípios podem fazer para o pagamento dos precatórios e prevê a realização de leilões para que possam ser pagos primeiramente aos credores que oferecerem os maiores descontos em seus créditos. Com isso, a PEC terá dois efeitos nocivos. Além de institucionalizar o atraso sistemático, ela cria condições para que os credores aceitem vultosos descontos na esperança de receber logo o que puderem, evitando perdas maiores resultantes daquele atraso.
A crítica feita pela Austin Rating enfatiza justamente esses dois efeitos. A exemplo do que já foi dito por entidades de advogados, promotores e juízes, ela denuncia a pretensão dos Estados e municípios de tentar levar vantagem à custa dos que têm precatórios, vencendo-os pelo cansaço. O governo paulista, por exemplo, tem dívidas acumuladas de R$ 12 bilhões e muitos dos credores ? as "viuvinhas" desdenhadas pelo governador ? são pessoas de idade, já aposentadas, e que não conseguirão esperar tanto tempo para receber o que têm direito.
Ao defender a PEC dos Precatórios, cuja inconstitucionalidade já foi amplamente apontada por juristas, os dirigentes municipais e estaduais alegam que ela foi concebida por um antigo ministro do STF e que já passou na CCJ do Senado. Eles também afirmam que, apesar dos credores terem direito a receber precatórios, a forma de pagamento é uma decisão discricionária do devedor. E insistem em dizer que estão fazendo "justiça social" quando prometem pagar os precatórios de menor valor sem qualquer desconto, desqualificando os direitos dos demais credores.
Esses argumentos são absurdos dos pontos de vista legal, ético e político. O fato de a PEC ter sido concebida por um ministro aposentado do STF e ter sido aprovada no Senado não prova a sua constitucionalidade. A pretensão de estabelecer que o justo é não pagar precatórios de maior valor, a menos que se submetam a desconto substancial, despreza a soberania do Judiciário para arbitrar conflitos entre o poder público e cidadãos e empresas. Como apontam os especialistas, a PEC é tão ardilosa que não prevê nem mesmo a exigência de pagamento rápido e integral de novos precatórios.
Como se vê, esse é um jogo cruel em que a parte mais forte ? o poder público ? tenta impor sua vontade a qualquer preço. Aprovando-a, a Câmara, estaria praticando um ato de covardia contra a parte mais fraca."
*Brasília, 07/06/2009 - O editorial "Um ato de covardia" foi publicado na edição de hoje (07) do jornal O Estado de S.Paulo.
Foto: Estadão
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