Por Roberto Luiz Corcioli
Filho*
Como se sabe, o controle de
constitucionalidade das leis realizado pelo Judiciário em nada interfere no mecanismo
democrático que atribui aos legisladores eleitos pelo povo a incumbência de,
por exemplo, criar tipos penais. Em tal controle jurisdicional não se faz um
juízo de conveniência política acerca de uma decisão legitimamente tomada pelo
legislador.
Adotada tal premissa, e
tomando-se como objeto de estudo o delito de tráfico de drogas, tem-se que se
trata de analisar, conforme explicitado a seguir, se o tipo penal em questão
vai ou não de encontro ao princípio da ofensividade, se se mostra legítima ou não
a tipificação da conduta daquele que apenas pode ser tido como uma ameaça à
segurança pública na medida em que sua atividade permanece sendo considerada
ilícita pela sociedade. Ou seja, ao contrário de outras realidades fáticas que
trazem em si uma carga de ofensividade aos indivíduos e à sociedade, tal como
ocorre com o furto, o roubo, o homicídio, o estupro, dentre outros, no caso do
tráfico, as consequências deletérias de algumas de suas modalidades, no que diz
respeito à corrupção policial, porte de armas e violência, por exemplo, são
fruto não de sua própria essência, mas justamente de sua criminalização.
Um homicídio continuará a ser
um ato extremamente reprovável – por ofender um direito de terceiro,
imediatamente (sua vida), bem como o direito de toda a comunidade, mediatamente
(paz social) – ainda que, por absurdo, viesse a ser descriminalizado.
Direito não se confunde com
Moral, bem como com a Ética.
Porém é nesta última que um
Direito calcado na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição)
deve buscar inspiração para que a disciplina da convivência humana encontre
legitimação em valores universais.
Voltando-se às condutas
tipificadas pelo art. 33, caput, da Lei 11.343/2006, por exemplo, tem-se que,
se buscarmos a sua razão de ser na proteção à saúde pública, constataremos que
o crime em questão, de fato, não se sustenta.
No limite, ao refletirmos
sobre as possíveis ou prováveis consequências deletérias de determinadas
condutas privadas, chegaremos à conclusão de que diversas ações aparentemente
inofensivas deveriam ser criminalizadas, o que certamente ofenderia não apenas
os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, como também da
ofensividade.
E para o caso ora em análise,
o critério parece estar justamente neste último.
Em primeiro lugar, evidente
que o uso de droga é uma atividade potencialmente nociva ao próprio usuário.
Porém, impossível não fugir do clichê que diz que nenhum traficante obriga quem
quer que seja a adquirir e consumir os seus produtos.
Sustentar que muitos dos
usuários, por terem se tornado viciados, passam à condição de vítimas dos
traficantes, pois já não teriam o necessário discernimento a respeito de seu
hábito de consumo, a par de muitas vezes não corresponder à realidade, uma vez
que pesquisas indicam que “dependentes conservam algum grau de controle sobre a
continuidade do uso”, sim, conforme relatado por Hélio Schwartsman em texto
publicado na edição de 13 de janeiro de 2012 do jornal Folha de S. Paulo
(Cacofonia mental, A2), acaba esbarrando na singela observação de que não se
criminaliza a venda de álcool ainda que esta substância, como se sabe, seja
também apta a gerar dependência e causar prejuízos à saúde do consumidor[1].
Mais além. O consumo de
tabaco, assim como o das drogas ilícitas – segundo defendem alguns –, não
encontra um nível seguro sob o ponto de vista da saúde humana. Porém, parece
ser consenso (ainda, pelo menos – dada a onda moralista que parece estar
assolando o planeta nos últimos anos) que não se poderia criminalizar o
comércio de tabaco, sob pena de se ferir o direito individual (da livre
determinação de seu modo de vida) daquele que opta por consumi-lo.
O filósofo Hélio Schwartsman,
em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo de 23 de dezembro de 2011 (Casas de
apostas, A2), discutindo a liberação do jogo de azar no Brasil, sustenta que
“assim como o alcoólatra e o diabético, que excedem os 10% da população adulta,
não podem pretender eliminar todos os bares e docerias do planeta, a existência
de uma fração demográfica com propensão para transtornos de impulso não
recomenda a proibição de um ramo inteiro de atividade, que gera empregos, renda
e atrai turistas”.
Na sua conclusão, observamos
que a questão do tráfico é de toda parecida com a do jogo (e não apenas nas
consequências deletérias advindas de suas criminalizações, tal como a corrupção
policial evidente e insanável observada cotidianamente, a violência pela busca
de territórios de influência em relação a uma atividade clandestina, sem falar
na questão tributária): “no fundo, a questão diz respeito aos limites da
interferência do Estado sobre a vida do cidadão. Creio que o poder público só
deve se valer de seu direito de proibir em situações extremas, ou seja, quando
há riscos reais e desproporcionais para terceiros”.
De fato, “se o mal resultante
da ação fica circunscrito à própria pessoa (torrar todo o patrimônio num
cassino) ou está dentro dos limites discricionários facultados a cada indivíduo
(ficar doente por fumar), não compete ao Estado senão orientar, oferecendo a
melhor informação disponível e, se for o caso, tratamento”.
O mesmo articulista, em texto
publicado na edição de 4 de novembro de 2010 do citado diário (O Plebiscito da
maconha, A2), sustenta algo essencial dentro do conceito de sociedade: “o que
me faz pender definitivamente para a liberação [das drogas ilícitas], mais do
que considerações epidemiológicas, é a convicção filosófica de que existem
limites para a interferência do Estado na vida do cidadão. Eu pelo menos nunca
firmaria um contrato social no qual abriria mão de decidir o que posso ou não
ingerir. Esse é um direito que, creio, vem no mesmo pacote do da liberdade de
ir e vir e dizer o que pensa”.
Em resumo, é absolutamente
ilegítima a intervenção do Estado sob o propósito de proteger quem quer que
seja de uma conduta autolesiva[2].
Mas ainda que pensássemos
acerca das consequências do tráfico em relação a terceiros (que não aquelas que
são advindas justamente de sua criminalização, conforme notado supra), sendo
elas os prejuízos ao sistema de saúde, aos familiares e amigos dos viciados,
bem como em relação a eventuais terceiros atingidos por condutas irresponsáveis
dos que se encontram sob o efeito de drogas, tem-se que o delito não se
sustentaria.
Quanto à saúde pública,
concluindo-se não ser razoável que o Estado interfira na vida do cidadão
estipulando quais substâncias ele pode optar por consumir[3], conforme
analisado supra, resta aplacar as consequências ao sistema de saúde mediante um
mecanismo bastante singelo – e bem conhecido das autoridades deste país que
ostenta uma das maiores cargas tributárias do mundo. Assim, resolver-se-ia um
problema sem que o direito penal – que é informado pelos citados princípios da
intervenção mínima, subsidiariedade e da fragmentariedade – tivesse que ser
usado como a solução de todos os males que nos afligem – o que, infelizmente,
não é muito usual no Brasil. Isso sem falar que, novamente, o princípio da
ofensividade seria atingido ao se pensar na saúde pública como bem jurídico
tutelado pelo delito que visa coibir o tráfico, na medida em que os danos ao
sistema de saúde não são decorrência necessária e invariável de todo e qualquer
consumo de droga – sem falar que haveria situações nas quais os usuários não
procurariam o sistema público. Assim, seria o tipo em questão de um
inadmissível perigo abstrato[4].
E em relação aos danos
marginais do tráfico – que não aqueles que são ínsitos a sua condição de
conduta ilegal, frisa-se, como as milhares de mortes de jovens em disputas
entre traficantes ou entre estes e policiais, por exemplo –, aqueles
relacionados notadamente aos familiares e amigos dos que acabam sucumbindo ao
vício, tem-se que não diferem em relação ao álcool e também, em alguma medida,
ao tabaco, de modo que a criminalização permaneceria injustificada sob este
aspecto.
O mesmo raciocínio pode ser
também traçado em relação aos danos potenciais a terceiros em razão de condutas
inconseqüentes dos que se encontram sob efeito de drogas ilícitas. Dirigir
embriagado causando perigo concreto de dano à integridade física de outrem é e
deve mesmo ser considerado delito como forma de coibir sua prática e os seus
possíveis resultados danosos. A substituição do álcool por uma droga ilícita de
efeitos análogos em nada altera a situação. Consumir álcool de modo responsável,
sem criar problemas para quem quer se seja (a não ser para o próprio
consumidor, eventualmente), continua sendo lícito. Tal em nada deveria diferir
em relação às drogas ainda ilícitas.
Garantir ao cidadão o direito
de determinar-se é também saber conviver com as suas consequências,
controlando-as proporcionalmente e na medida em que ferirem concretamente bens
jurídicos de terceiros – ou ao menos indicarem um perigo concreto, ainda que
indeterminado, de ofensa a tais bens[5]. É o preço a se pagar pelo respeito ao
direito de liberdade.
Pois bem.
Fora tudo o que se analisou
acima, tem-se que a “guerra contra o tráfico” é algo evidentemente perdido.
Nenhuma nação do mundo foi capaz de vencê-la. O que a criminalização da venda e
do uso de certas substâncias provoca, conforme já se indicou, não é certamente
a sua efetiva restrição, mas sim a corrupção policial, a morte, ou ao menos a
perenização da marginalização, de milhões de jovens, e o dispêndio de
incalculáveis quantias públicas em todo um aparato repressivo e judicial que
não é e nunca será capaz de atender toda a demanda – valores que poderiam ser
mais bem empregados em saúde, educação, moradia (o que refletiria certamente na
formação de cidadãos mais preparados para as escolhas a serem tomadas em suas
vidas, inclusive acerca do que consumir ou não).
Mas, nada obstante o
convencimento em relação a todos esses pontos jurídicos e sociais a indicarem
não apenas o desacerto da criminalização da venda e do uso de drogas, mas
também a sua própria confrontação com a Constituição, tem-se que o presente
posicionamento teórico não se sustenta, por ora, ao ser submetido à prática, em
razão do que se expõe a seguir.
A declaração de
inconstitucionalidade em controle difuso por alguns poucos julgadores que
eventualmente comunguem das ideias aqui desenvolvidas, por se tratar de uma
questão de altíssima implicação social, geraria imensa insegurança jurídica nas
respectivas localidades de atuação de tais magistrados – o que parece indicar
que, em tal tema (e de modo absolutamente excepcional), apenas o controle
concentrado mostrar-se-ia legítimo, conforme esta ponderação de valores fruto
das inter-relações da teoria com a prática. Mas é preciso ir ainda além.
É certo que decisões isoladas
pela inconstitucionalidade do delito de tráfico não obteriam aquelas que seriam
as naturais consequências da descriminalização formal: a regularização da
atividade, sua fiscalização e controle por parte do Estado – que, ainda
vinculado estritamente à vedação formal da lei, não poderia agir no sentido de
evitar tudo aquilo que se espera com a decisão política de afastar o tráfico de
drogas da ilegalidade, tal como a expressiva diminuição da corrupção policial
neste campo, bem como da violência gerada pelo embate de traficantes (na imensa
maioria jovens excluídos) com policiais (inclusive com prejuízos humanos para
tais trabalhadores) ou entre grupos rivais, dentre outros.
Mas também o controle
concentrado não seria suficiente para se alcançar efetivamente os benefícios
almejados com a descriminalização promovida pela via legislativa – já que não
também não implicaria em uma necessária regulamentação da atividade por parte
do Estado, por exemplo.
Não é preciso muito esforço
para se concluir que a descriminalização deve, necessariamente, caminhar junto
com as já mencionadas medidas a serem tomadas pelo Estado para manter sob
controle tal área – tal como ocorre nas políticas aplicadas ao comércio de
álcool e tabaco (com restrições na divulgação comercial dos produtos, sua
vedação a crianças e adolescentes, etc).
Ademais, inegável que a
descriminalização por meio de uma decisão política a ser tomada na órbita
legislativa seria dotada de uma maior carga de significado democrático – fator
de suma importância também a ser considerado.
Portanto, tem-se que se mostra
mais razoável aguardar-se a maturação das discussões democráticas a respeito,
inclusive (mas não exclusivamente) dentro das respectivas casas legislativas,
mantendo-se, pelas razões expostas, o entendimento pela constitucionalidade do
tipo em questão até que, finalmente, a sociedade se dê conta de que não será
investindo seus esforços no combate a algo que já deu sinais de ser invencível
que irá alcanças melhores resultados do que aqueles que desastrosamente nos são
expostos diariamente em realidades como a da cracolândia e de milhares de
outras dramáticas situações vividas por muitas famílias espalhadas por todo o
país.
[1] Conforme notícia publicada
no jornal Folha de S. Paulo (Álcool provoca mais prejuízos que crack, heroína e
maconha, 02.11.2010, C7), “o álcool é uma droga mais perigosa do que o crack e
a heroína e três vezes pior do que a cocaína e o tabaco, de acordo com
pesquisadores do Comitê Científico Independente para Drogas do Reino Unido. Os
pesquisadores classificaram as drogas levando em conta danos causados aos
usuários e a terceiros, a curto e a longo prazo. Numa escala de 0 a 100, o
álcool aparece com 72 pontos, seguido pela heroína (55) e o crack (54). Algumas
outras drogas avaliadas foram as metanfetaminas (33), cocaína (27), tabaco
(26), anfetaminas (23), maconha (20), ecstasy (9) e esteroides anabolizantes
(9). Segundo a Organização Mundial da Saúde, os riscos associados ao álcool
causam 2,5 milhões de mortes por ano”.
[2] Nesse sentido, vide a
Apelação Criminal 993071265373, TJ/SP, Relator(a): José Henrique Rodrigues
Torres, Órgão julgador: 6ª Câmara de Direito Criminal C, Data do julgamento:
31/03/2008.
[3] Neste ponto, poder-se-ia
relembrar a existência de drogas lícitas, tão ou mais nocivas que as ilícitas.
Mas basta pensar no consumo desmedido de gordura animal ou no sedentarismo –
sim, a prosperar o fundamento de que é legítima a atuação repressiva do Estado
(na órbita penal) com vistas à redução dos gastos públicos com saúde,
poder-se-ia pensar na obrigatoriedade da prática de exercícios físicos, sob
pena de um delito omissivo de perigo abstrato.
[4] Nesse sentido, ao
classificar o crime em questão, Guilherme de Souza Nucci, Leis Penais e
Processuais Penais Comentadas, 2ª ed, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007,
pp. 314-315, indica-o como sendo de perigo abstrato, sendo que para o autor o
bem jurídico tutelado seria a saúde pública.
[5] Luiz Flávio Gomes, Rogério
Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, Comentários às Reformas do Código de
Processo Penal e da Lei de Trânsito, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2008,
pp. 377/378, analisando o delito de embriaguez ao volante, sustentam que “uma
forma de se proteger esses bens jurídicos consiste em exigir como resultado da
conduta um perigo concreto para pessoa concreta – perigo concreto determinado
(isso era o que ocorria com a anterior redação do art. 306). Uma outra forma
antecipada, ainda válida, consiste em punir penalmente o sujeito que coloca em
risco a segurança viária (isso significa, na dogmática, lesão ao bem jurídico
coletivo e, ao mesmo tempo, perigo concreto indeterminado para os bens jurídicos
pessoais). É o meio termo mais adequado. A forma extremada, que
constitucionalmente está vedada ao legislador, consiste em valer-se do perigo
abstrato (que é uma posição absolutista, autoritária, que fere o princípio da
ofensividade)”.
*Roberto Luiz Corcioli Filho é Juiz de Direito no Estado
de São Paulo, membro da Associação Juízes para a Democracia – AJD.