Modelo repressivo de combates às drogas se esgotou, diz presidente da
Fiocruz
Cada vez mais líderes latino-americanos pedem a regularização das
drogas
Diversos líderes da
América Latina têm se unido para propor a descriminalização das drogas como uma
política global e opção alternativa ao modelo repressivo apoiado pelas Nações
Unidas.
O exemplo mais
recente é o do presidente da Guatemala, Otto Pérez Molina. Ele defendeu um novo
caminho em artigo no diário britânico The Guardian por acreditar que os
mercados globais destas substâncias não podem ser erradicados.
Segundo ele, a
sociedade não acredita que o álcool ou o tabaco possam ser retirados de
circulação, “mas de alguma forma supomos ser uma medida correta no caso das
drogas.” Molina lembra que a repressão não diminuiu o consumo – e cita o fato
de a produção ter evoluído e o tráfico, se espalhado.
Em entrevista a
CartaCapital, Paulo Gadelha, presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da
Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD), diz acreditar que o atual
posicionamento dos políticos latino-americanos sobre o tema tem origem na
constatação de que a guerra às drogas é ineficaz, além de gerar problemas
paralelos.
“Há um aumento
impressionante de pessoas em prisão em vários países, inclusive nos EUA. Lá os
volumes de recursos para o sistema prisional estão se tornando superiores aos
de educação. E isso ocorre por não se reconhecer as distinções fundamentais
entre o circuito do tráfico e o consumidor”, diz o médico e doutor em saúde
pública.
Segundo o presidente
da Fiocruz, figuras relevantes na política de guerra às drogas de Bolívia,
Inglaterra e EUA estão “revendo radicalmente a estratégia e reconhecendo o seu
fracasso”. “É um novo momento de possibilidade de revisão de uma medida
comprovadamente incorreta. Insistir nesse processo levará apenas a mais
distorções e não atacará as causas do problema.”
Gadelha ainda
destaca que a CBDD defende apenas a descriminalização do usuário, com o uso das
drogas ainda proibido, e o debate aberto no Brasil. “Na saúde pública,
entendemos que a maneira de se preparar as pessoas não é pela repressão, porque
ninguém em sã consciência imagina a existência de um mundo sem drogas, o que
inclui remédios.”
Leia abaixo a íntegra da entrevista:
CartaCapital – O presidente Molina, da Guatemala, defendeu abertamente
uma política global de regulamentação das drogas, pois os mercados globais
destas substâncias não poderiam ser erradicados. Como o senhor analisa esse
cenário?
Paulo Gadelha – Atualmente
existe muito mais vocalização e reconhecimento de que a guerra às drogas
mostrou-se ineficaz. Todos os indicadores do mercado de drogas, o processo de
violência e formas diferentes como se deu em espaços nacionais – na América
Latina, em grande parte, associada à violência e controle de territórios-,
durante esse período tiveram números crescentes do volume de droga consumida e comercializada.
Há também um aumento impressionante de pessoas em prisão em vários países,
inclusive os EUA, por causa das drogas. Lá os volumes de recursos para o
sistema prisional estão se tornando superiores aos de educação e outros
sistemas sociais. E isso ocorre por não se reconhecer as distinções
fundamentais entre o circuito do tráfico e o consumidor. A repressão deveria
ser substituída pelo entendimento de que essa é uma questão de saúde pública e
tem que ser tratada sem estigmatização.
A discussão precisa ser
acompanhada de evidências científicas e estudos que possam demonstrar as bases
desse tipo de política e o posicionamento da sociedade em relação às drogas
ilícitas de forma tão diferente às licitas (caso do álcool, tabaco e
psicotrópicos), que também possuem um nível de impacto na saúde e gestão
pública. Há uma quantidade imensa de produtos considerados legais capazes de
gerar danos significativos à saúde pública e a maneira como se enfrenta esses
problemas é muito distinta. Em um caso, se cria um tabu que marginaliza os
necessitados de tratamento e os impede de chegar às estruturas que venham a ser
disponibilizadas pelo Estado, porque a criminalização e o estigma têm um efeito
nos dependentes de drogas e também atinge a estrutura e os profissionais de
saúde, que muitas vezes veem essas pessoas como marginais.
CC – A regulamentação defendida pelo presidente da Guatemala é uma
saída a ser considerada?
PG – É preciso tratar de modo
diferente as drogas com efeitos e repercussão distintas. Não se pode lidar da
mesma forma com a maconha e o crack. A maconha é uma das drogas mais vendidas e
consumidas e gera aumento de população carcerário, porque não existe
regulamentação para colocar em prática o que é definido por lei: a não
criminalização de usuários. Esse processo significa regular a quantidade de
droga permitida por usuário e o que qualifica tráfico. A posição consensual na
Comissão é fazer a despenalização do usuário, ainda a considerar o uso destas
substâncias proibido. Isso significa penas mais administrativas ou formas de
serem induzidos a tratamento e acompanhamento. Por uma série de situações
conjunturais do Brasil e da forma como se debate timidamente o assunto,
defendemos primeiro que haja uma debate aberto assim como ocorreu com a Aids e
o tabaco. Quando os casos de Aids se tornaram um problema de saúde pública, o
Brasil tratou o tema com toda a sociedade e não apenas junto ao público alvo da
doença. Com isso veio a defesa do uso da camisinha e as políticas de redução de
danos para usuários de drogas injetáveis.
CartaCapital – Segundo Molina, a sociedade não acredita ser possível
extinguir álcool e tabaco, que são nocivos à saúde, mas supõe que essa política
se aplique às drogas. Como o senhor analisa essa visão social tão distinta para
problemas clinicamente semelhantes?
PG – O primeiro passo é se
discutir o problema no âmbito das políticas públicas, sociedade e grupos
jovens. Na saúde pública, o fundamental é que as pessoas desenvolvam
capacidades de lidar com qualquer risco. Isso é feito com informação e promoção
à saúde nos grupos sociais em que se sentem apoiados. Os riscos são de natureza
muito distinta, envolvem alimentação, bebida, etc. A pessoa precisa desenvolver
a capacidade de lidar com os riscos e ter flexibilidade e saber quando aquilo
pode se tornar ingovernável em sua saúde. Mas para isso é preciso abrir uma
discussão mais ampla. Na saúde pública entendemos que a maneira de se preparar
as pessoas não é pela repressão, porque ninguém em sã consciência imagina a
existência de um mundo sem drogas, o que inclui remédios. A regulação, a
maneira de lidar com o comércio e produção deve ser diferente para cada droga,
mas não se pode criminalizar o usuário, porque ele é vítima.
CartaCapital – O senhor acredita que os países estão dispostos a
analisar o tema deixando de lado visões ideológicas?
PG – Ao longo dos trabalhos da
comissão, tivemos pessoas que desempenharam papel relevante na guerra às
drogas, responsáveis por essa política na Bolívia, Inglaterra e EUA, que mesmo
tendo acreditado nesse processo em um devido momento, estão revendo
radicalmente a estratégia e reconhecendo seu fracasso. Temos manifestações de
países não produtores e não grandes consumidores, mas onde as drogas
representam problemas significativos, e também a fala de países que sofreram de
forma intensa as consequências do processo do tráfico no âmbito social, a pedir
que essa política [de repressão] mude. É um novo momento de possibilidade de
revisão de uma medida comprovadamente incorreta. Insistir nesse processo levará
apenas a mais distorções e não atacará as causas do problema.
CartaCapital – Como o senhor analisa a movimentação de importantes
líderes internacionais em favor de uma revisão da política de repressão às
drogas?
PG – Essas manifestações são
fundamentais, pois muito do enfrentamento desse tema exige um posicionamento
global. Os países estão comprometidos com convenções internacionais ainda sobre
a visão da guerra às drogas, e elas geram obrigações e muitas vezes inibem
reforma nacionais. O sistema de circulação e produção de drogas também não é
restrito a um Estado, tem um circuito internacional. O avanço deste processo de
descriminalização e separação do usuário e traficante, como em Portugal,
mostrou resultados positivos. A comparabilidade de mais países aderindo a isso
pode ajudar no debate nacional.
CartaCapital – Como o senhor enxerga o posicionamento com maior
intensidade de líderes da América Latina?
PG – Há também iniciativas
importantes em outras partes do mundo. Apesar de esta manifestação estar ainda
no âmbito da América Latina, está tendo ressonância em muitas questões dentro
dos EUA, onde vários estados estão discutindo e revendo essas políticas, como
também no âmbito da ONU. Figuras importantes estão colocando essa pauta como
agenda necessária a ser enfrentada em nível internacional e na ONU. Os países
latino-americanos foram objeto de experimento da guerra às drogas de maneira
intensa e como uma politica externa definida pela ONU e patrocinada pelos EUA.
O combate se deu nestes países com a expectativa de que o problema poderia ser
resolvido pela violência. O resultado final foi tão frustrante que levou esses
países a reverem suas posições.
Fonte Carta capital
Foto: Torben Bjørn
Hansen/Flickr
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