terça-feira, 1 de maio de 2012

Da (in)constitucionalidade do delito de tráfico de drogas






Por Roberto Luiz Corcioli Filho*


Como se sabe, o controle de constitucionalidade das leis realizado pelo Judiciário em nada interfere no mecanismo democrático que atribui aos legisladores eleitos pelo povo a incumbência de, por exemplo, criar tipos penais. Em tal controle jurisdicional não se faz um juízo de conveniência política acerca de uma decisão legitimamente tomada pelo legislador.

Adotada tal premissa, e tomando-se como objeto de estudo o delito de tráfico de drogas, tem-se que se trata de analisar, conforme explicitado a seguir, se o tipo penal em questão vai ou não de encontro ao princípio da ofensividade, se se mostra legítima ou não a tipificação da conduta daquele que apenas pode ser tido como uma ameaça à segurança pública na medida em que sua atividade permanece sendo considerada ilícita pela sociedade. Ou seja, ao contrário de outras realidades fáticas que trazem em si uma carga de ofensividade aos indivíduos e à sociedade, tal como ocorre com o furto, o roubo, o homicídio, o estupro, dentre outros, no caso do tráfico, as consequências deletérias de algumas de suas modalidades, no que diz respeito à corrupção policial, porte de armas e violência, por exemplo, são fruto não de sua própria essência, mas justamente de sua criminalização.

Um homicídio continuará a ser um ato extremamente reprovável – por ofender um direito de terceiro, imediatamente (sua vida), bem como o direito de toda a comunidade, mediatamente (paz social) – ainda que, por absurdo, viesse a ser descriminalizado.

Direito não se confunde com Moral, bem como com a Ética.

Porém é nesta última que um Direito calcado na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição) deve buscar inspiração para que a disciplina da convivência humana encontre legitimação em valores universais.

Voltando-se às condutas tipificadas pelo art. 33, caput, da Lei 11.343/2006, por exemplo, tem-se que, se buscarmos a sua razão de ser na proteção à saúde pública, constataremos que o crime em questão, de fato, não se sustenta.

No limite, ao refletirmos sobre as possíveis ou prováveis consequências deletérias de determinadas condutas privadas, chegaremos à conclusão de que diversas ações aparentemente inofensivas deveriam ser criminalizadas, o que certamente ofenderia não apenas os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, como também da ofensividade.

E para o caso ora em análise, o critério parece estar justamente neste último.

Em primeiro lugar, evidente que o uso de droga é uma atividade potencialmente nociva ao próprio usuário. Porém, impossível não fugir do clichê que diz que nenhum traficante obriga quem quer que seja a adquirir e consumir os seus produtos.

Sustentar que muitos dos usuários, por terem se tornado viciados, passam à condição de vítimas dos traficantes, pois já não teriam o necessário discernimento a respeito de seu hábito de consumo, a par de muitas vezes não corresponder à realidade, uma vez que pesquisas indicam que “dependentes conservam algum grau de controle sobre a continuidade do uso”, sim, conforme relatado por Hélio Schwartsman em texto publicado na edição de 13 de janeiro de 2012 do jornal Folha de S. Paulo (Cacofonia mental, A2), acaba esbarrando na singela observação de que não se criminaliza a venda de álcool ainda que esta substância, como se sabe, seja também apta a gerar dependência e causar prejuízos à saúde do consumidor[1].

Mais além. O consumo de tabaco, assim como o das drogas ilícitas – segundo defendem alguns –, não encontra um nível seguro sob o ponto de vista da saúde humana. Porém, parece ser consenso (ainda, pelo menos – dada a onda moralista que parece estar assolando o planeta nos últimos anos) que não se poderia criminalizar o comércio de tabaco, sob pena de se ferir o direito individual (da livre determinação de seu modo de vida) daquele que opta por consumi-lo.

O filósofo Hélio Schwartsman, em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo de 23 de dezembro de 2011 (Casas de apostas, A2), discutindo a liberação do jogo de azar no Brasil, sustenta que “assim como o alcoólatra e o diabético, que excedem os 10% da população adulta, não podem pretender eliminar todos os bares e docerias do planeta, a existência de uma fração demográfica com propensão para transtornos de impulso não recomenda a proibição de um ramo inteiro de atividade, que gera empregos, renda e atrai turistas”.

Na sua conclusão, observamos que a questão do tráfico é de toda parecida com a do jogo (e não apenas nas consequências deletérias advindas de suas criminalizações, tal como a corrupção policial evidente e insanável observada cotidianamente, a violência pela busca de territórios de influência em relação a uma atividade clandestina, sem falar na questão tributária): “no fundo, a questão diz respeito aos limites da interferência do Estado sobre a vida do cidadão. Creio que o poder público só deve se valer de seu direito de proibir em situações extremas, ou seja, quando há riscos reais e desproporcionais para terceiros”.

De fato, “se o mal resultante da ação fica circunscrito à própria pessoa (torrar todo o patrimônio num cassino) ou está dentro dos limites discricionários facultados a cada indivíduo (ficar doente por fumar), não compete ao Estado senão orientar, oferecendo a melhor informação disponível e, se for o caso, tratamento”.

O mesmo articulista, em texto publicado na edição de 4 de novembro de 2010 do citado diário (O Plebiscito da maconha, A2), sustenta algo essencial dentro do conceito de sociedade: “o que me faz pender definitivamente para a liberação [das drogas ilícitas], mais do que considerações epidemiológicas, é a convicção filosófica de que existem limites para a interferência do Estado na vida do cidadão. Eu pelo menos nunca firmaria um contrato social no qual abriria mão de decidir o que posso ou não ingerir. Esse é um direito que, creio, vem no mesmo pacote do da liberdade de ir e vir e dizer o que pensa”.

Em resumo, é absolutamente ilegítima a intervenção do Estado sob o propósito de proteger quem quer que seja de uma conduta autolesiva[2].

Mas ainda que pensássemos acerca das consequências do tráfico em relação a terceiros (que não aquelas que são advindas justamente de sua criminalização, conforme notado supra), sendo elas os prejuízos ao sistema de saúde, aos familiares e amigos dos viciados, bem como em relação a eventuais terceiros atingidos por condutas irresponsáveis dos que se encontram sob o efeito de drogas, tem-se que o delito não se sustentaria.

Quanto à saúde pública, concluindo-se não ser razoável que o Estado interfira na vida do cidadão estipulando quais substâncias ele pode optar por consumir[3], conforme analisado supra, resta aplacar as consequências ao sistema de saúde mediante um mecanismo bastante singelo – e bem conhecido das autoridades deste país que ostenta uma das maiores cargas tributárias do mundo. Assim, resolver-se-ia um problema sem que o direito penal – que é informado pelos citados princípios da intervenção mínima, subsidiariedade e da fragmentariedade – tivesse que ser usado como a solução de todos os males que nos afligem – o que, infelizmente, não é muito usual no Brasil. Isso sem falar que, novamente, o princípio da ofensividade seria atingido ao se pensar na saúde pública como bem jurídico tutelado pelo delito que visa coibir o tráfico, na medida em que os danos ao sistema de saúde não são decorrência necessária e invariável de todo e qualquer consumo de droga – sem falar que haveria situações nas quais os usuários não procurariam o sistema público. Assim, seria o tipo em questão de um inadmissível perigo abstrato[4].

E em relação aos danos marginais do tráfico – que não aqueles que são ínsitos a sua condição de conduta ilegal, frisa-se, como as milhares de mortes de jovens em disputas entre traficantes ou entre estes e policiais, por exemplo –, aqueles relacionados notadamente aos familiares e amigos dos que acabam sucumbindo ao vício, tem-se que não diferem em relação ao álcool e também, em alguma medida, ao tabaco, de modo que a criminalização permaneceria injustificada sob este aspecto.

O mesmo raciocínio pode ser também traçado em relação aos danos potenciais a terceiros em razão de condutas inconseqüentes dos que se encontram sob efeito de drogas ilícitas. Dirigir embriagado causando perigo concreto de dano à integridade física de outrem é e deve mesmo ser considerado delito como forma de coibir sua prática e os seus possíveis resultados danosos. A substituição do álcool por uma droga ilícita de efeitos análogos em nada altera a situação. Consumir álcool de modo responsável, sem criar problemas para quem quer se seja (a não ser para o próprio consumidor, eventualmente), continua sendo lícito. Tal em nada deveria diferir em relação às drogas ainda ilícitas.

Garantir ao cidadão o direito de determinar-se é também saber conviver com as suas consequências, controlando-as proporcionalmente e na medida em que ferirem concretamente bens jurídicos de terceiros – ou ao menos indicarem um perigo concreto, ainda que indeterminado, de ofensa a tais bens[5]. É o preço a se pagar pelo respeito ao direito de liberdade.

Pois bem.

Fora tudo o que se analisou acima, tem-se que a “guerra contra o tráfico” é algo evidentemente perdido. Nenhuma nação do mundo foi capaz de vencê-la. O que a criminalização da venda e do uso de certas substâncias provoca, conforme já se indicou, não é certamente a sua efetiva restrição, mas sim a corrupção policial, a morte, ou ao menos a perenização da marginalização, de milhões de jovens, e o dispêndio de incalculáveis quantias públicas em todo um aparato repressivo e judicial que não é e nunca será capaz de atender toda a demanda – valores que poderiam ser mais bem empregados em saúde, educação, moradia (o que refletiria certamente na formação de cidadãos mais preparados para as escolhas a serem tomadas em suas vidas, inclusive acerca do que consumir ou não).

Mas, nada obstante o convencimento em relação a todos esses pontos jurídicos e sociais a indicarem não apenas o desacerto da criminalização da venda e do uso de drogas, mas também a sua própria confrontação com a Constituição, tem-se que o presente posicionamento teórico não se sustenta, por ora, ao ser submetido à prática, em razão do que se expõe a seguir.

A declaração de inconstitucionalidade em controle difuso por alguns poucos julgadores que eventualmente comunguem das ideias aqui desenvolvidas, por se tratar de uma questão de altíssima implicação social, geraria imensa insegurança jurídica nas respectivas localidades de atuação de tais magistrados – o que parece indicar que, em tal tema (e de modo absolutamente excepcional), apenas o controle concentrado mostrar-se-ia legítimo, conforme esta ponderação de valores fruto das inter-relações da teoria com a prática. Mas é preciso ir ainda além.

É certo que decisões isoladas pela inconstitucionalidade do delito de tráfico não obteriam aquelas que seriam as naturais consequências da descriminalização formal: a regularização da atividade, sua fiscalização e controle por parte do Estado – que, ainda vinculado estritamente à vedação formal da lei, não poderia agir no sentido de evitar tudo aquilo que se espera com a decisão política de afastar o tráfico de drogas da ilegalidade, tal como a expressiva diminuição da corrupção policial neste campo, bem como da violência gerada pelo embate de traficantes (na imensa maioria jovens excluídos) com policiais (inclusive com prejuízos humanos para tais trabalhadores) ou entre grupos rivais, dentre outros.

Mas também o controle concentrado não seria suficiente para se alcançar efetivamente os benefícios almejados com a descriminalização promovida pela via legislativa – já que não também não implicaria em uma necessária regulamentação da atividade por parte do Estado, por exemplo.

Não é preciso muito esforço para se concluir que a descriminalização deve, necessariamente, caminhar junto com as já mencionadas medidas a serem tomadas pelo Estado para manter sob controle tal área – tal como ocorre nas políticas aplicadas ao comércio de álcool e tabaco (com restrições na divulgação comercial dos produtos, sua vedação a crianças e adolescentes, etc).

Ademais, inegável que a descriminalização por meio de uma decisão política a ser tomada na órbita legislativa seria dotada de uma maior carga de significado democrático – fator de suma importância também a ser considerado.

Portanto, tem-se que se mostra mais razoável aguardar-se a maturação das discussões democráticas a respeito, inclusive (mas não exclusivamente) dentro das respectivas casas legislativas, mantendo-se, pelas razões expostas, o entendimento pela constitucionalidade do tipo em questão até que, finalmente, a sociedade se dê conta de que não será investindo seus esforços no combate a algo que já deu sinais de ser invencível que irá alcanças melhores resultados do que aqueles que desastrosamente nos são expostos diariamente em realidades como a da cracolândia e de milhares de outras dramáticas situações vividas por muitas famílias espalhadas por todo o país.


[1] Conforme notícia publicada no jornal Folha de S. Paulo (Álcool provoca mais prejuízos que crack, heroína e maconha, 02.11.2010, C7), “o álcool é uma droga mais perigosa do que o crack e a heroína e três vezes pior do que a cocaína e o tabaco, de acordo com pesquisadores do Comitê Científico Independente para Drogas do Reino Unido. Os pesquisadores classificaram as drogas levando em conta danos causados aos usuários e a terceiros, a curto e a longo prazo. Numa escala de 0 a 100, o álcool aparece com 72 pontos, seguido pela heroína (55) e o crack (54). Algumas outras drogas avaliadas foram as metanfetaminas (33), cocaína (27), tabaco (26), anfetaminas (23), maconha (20), ecstasy (9) e esteroides anabolizantes (9). Segundo a Organização Mundial da Saúde, os riscos associados ao álcool causam 2,5 milhões de mortes por ano”.
[2] Nesse sentido, vide a Apelação Criminal 993071265373, TJ/SP, Relator(a): José Henrique Rodrigues Torres, Órgão julgador: 6ª Câmara de Direito Criminal C, Data do julgamento: 31/03/2008.
[3] Neste ponto, poder-se-ia relembrar a existência de drogas lícitas, tão ou mais nocivas que as ilícitas. Mas basta pensar no consumo desmedido de gordura animal ou no sedentarismo – sim, a prosperar o fundamento de que é legítima a atuação repressiva do Estado (na órbita penal) com vistas à redução dos gastos públicos com saúde, poder-se-ia pensar na obrigatoriedade da prática de exercícios físicos, sob pena de um delito omissivo de perigo abstrato.
[4] Nesse sentido, ao classificar o crime em questão, Guilherme de Souza Nucci, Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, 2ª ed, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007, pp. 314-315, indica-o como sendo de perigo abstrato, sendo que para o autor o bem jurídico tutelado seria a saúde pública.
[5] Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, Comentários às Reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2008, pp. 377/378, analisando o delito de embriaguez ao volante, sustentam que “uma forma de se proteger esses bens jurídicos consiste em exigir como resultado da conduta um perigo concreto para pessoa concreta – perigo concreto determinado (isso era o que ocorria com a anterior redação do art. 306). Uma outra forma antecipada, ainda válida, consiste em punir penalmente o sujeito que coloca em risco a segurança viária (isso significa, na dogmática, lesão ao bem jurídico coletivo e, ao mesmo tempo, perigo concreto indeterminado para os bens jurídicos pessoais). É o meio termo mais adequado. A forma extremada, que constitucionalmente está vedada ao legislador, consiste em valer-se do perigo abstrato (que é uma posição absolutista, autoritária, que fere o princípio da ofensividade)”.

*Roberto Luiz Corcioli Filho é Juiz de Direito no Estado de São Paulo, membro da Associação Juízes para a Democracia – AJD.



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