Carlos Alberto Lungarzo
Anistia Internacional (USA) – 2152711
Vários observadores sociais e comunicadores compararam o processo sofrido por Cesare Battisti, especialmente durante 2009, quando foi oficialmente julgado, com o caso dos anarquistas italianos Sacco e Vanzetti, que, durante a década de 1920 foram acusados pelo assassinato, sem provas concretas e com testemunhas duvidosas. Hoje, todos aceitam que ambos foram vítimas de uma vingança da justiça e das elites norte-americanas, que queriam destruir o anarquismo e o comunismo, e propagar o terror entre os trabalhadores.
O processo, condenação e morte dos dois amigos durou de 1920 até 1927. Nesse período, em quase todo o mundo se realizaram atos de protesto, se organizaram passeatas de milhares de pessoas, e se proferiram denúncias públicas de meios de comunicação e dos mais famosos e míticos intelectuais da época, como G. Wells, Bernard Shaw e B. Russell.
Meu intuito neste artigo é mostrar que, apesar da certeza unânime de que os militantes italianos eram inocentes, e de que seu julgamento foi uma grande farsa, o grau de distorção e mentira não foi o máximo. No caso de Cesare Battisti, houve um nível de falsidade, fraude e manobras tortuosas, bastante (ou talvez muito) maiores que naquele caso. Este assunto pode ser visto, então, como um trailer do que seria, 90 anos após, o filme de Battisti: uma amostra grande, truculenta, assustadora, mas ainda assim menos nojenta que a grande tramóia de 2009.
Os Crimes e as Acusações
Nos Estados Unidos da década de 20, as elites capitalistas se sentiam acuadas pela ação do movimento operário, que, apesar dos ataques brutais recebidos desde décadas anteriores (cujo ápice foi o massacre de Chicago, no 1º de maio de 1886), tinha incrementado sua capacidade de luta. Os anos entre 1917 e 1920 formam o período de mais intensa repressão política na história dos Estados Unidos, conhecido como Red Scare (Ameaça Vermelha), inaugurado no mesmo momento em que se preparava a Revolução russa de Outubro de 1917.
Apesar da distância, o país reagiu ao surgimento do poder soviético com igual velocidade que os mais reacionários estados da Europa. Durante esses quatro anos, a propaganda contra os comunistas e os anarquistas, a agitação da mídia, e a brutalidade policial e jurídica, que continuariam por muitas décadas, atingiram seu pico mais exasperado. Foi nessa época que trabalhadores de esquerda foram submetidos a julgamentos fraudados e coroados por punições desproporcionais.
O caso dos anarquistas Nicola Sacco (1891) e Bartolomeu Vanzetti (1888) foi um imenso circo para converter pessoas inocentes em grandes bodes expiatórios, numa luta não apenas contra a praxe, mas até contras as idéias da esquerda. Se o militante sueco Joe Hill foi tornado símbolo de uma vendetta burguesa “provinciana” (pois seu julgamento e sua execução foram rápidas e sua repercussão foi pequena fora do estado norte-americano de Utah), estes dois imigrantes italianos foram usados para transformar essa vendetta num grande espetáculo de terror. Era uma advertência contra toda a esquerda que defendesse os direitos dos trabalhadores.
Em abril de 1920, dois pagadores de uma fábrica de sapatos, situada numa pequena cidade perto de Boston (no estado de Massachusetts) foram assassinados por desconhecidos, que roubaram todo seu dinheiro. A polícia sabia que Sacco, artesão sapateiro, e Vanzetti, vendedor ambulante de peixe, eram militantes anarquistas e os deteve como suspeitos um mês depois, apesar de não ter nenhuma prova nem testemunha contra eles, e de que nenhum deles tinha sido preso antes.
Ambos foram acusados do assassinato dos pagadores, mas puderam apresentar fortes álibis, fornecidos por testemunhas de boa reputação para o critério dos conservadores que dominavam o estado. Uma das testemunhas era um funcionário do consulado de Itália, que lembrava ter estado com Sacco no momento do crime, e descreveu todos os detalhes do trâmite de obtenção do passaporte do imigrante, que tinha ido até a delegação de seu país para obter esse documento. Apesar da clareza dos depoimentos, o juiz e o promotor os desprezaram, e aduziram que as testemunhas eram arranjadas.
Contudo, de maneira diferente ao que aconteceria com Battisti na década de 1980 1981 (mais de 60 anos após), Sacco e Vanzetti tiveram direito à defesa, e contaram com os melhores advogados socialistas e libertários que havia no país.
Outra diferença é que, enquanto Battisti foi acusado de ser o dono da arma dos crimes sem prova nenhuma, e sem que arma nenhuma fosse jamais mostrada, os anarquistas italianos tiveram direito a um teste balístico de disparos. Isso, porém, não adiantou, porque o promotor Frederick Katzmann (muito menos tortuoso que o magistrado Armando Spadaro do caso Battisti, mas, mesmo assim, um fanático inimigo da esquerda), aceitou uma perícia forjada que indicava que uma das balas do crime era do revólver de Sacco.
A perícia de revólver de Vanzetti foi mais escandalosa que a de Sacco, pois o projétil e a arma não coincidiam nem mesmo no calibre (a bala era de calibre 32 e o revólver de Vanzetti era um Colt 38).
Além disso, Battisti foi acusado de quatro homicídios, sem que os juízes se importaram com a impossibilidade física de ter atuado nos quatro crimes. No período do julgamento de Sacco e Vanzetti, em que a repressão foi a mais violenta de história urbana dos Estados Unidos, houve outros delitos políticos, mas os juízes não tentaram colocá-los também na conta dos italianos.
Montagens e Tramóias
O chefe da defesa era o esforçado e corajoso advogado socialista californiano Fred H. Moore, incansável lutador em prol das causas políticas e sindicais dos trabalhadores. Durante o julgamento, foi insultado várias vezes pelo juiz Webster Thyler, um membro da corte suprema estadual, conhecido por sua mediocridade, por ter obtido um diploma em troca de favores, e por mudar de partido político segundo a conveniência. (Alguma coincidência?) Thyler se gabou de que acabaria condenado ambos de qualquer jeito, e injuriou a Moore, desprezando sua origem californiana.
As testemunhas de acusação eram “menos” forjadas que as de Battisti, pois, pelo menos, tinham nome e profissão e seus dados eram conhecidos. Entre elas estava a bibliotecária Mary Splaine, a enfermeira Lola Andrews, o capitão de polícia William Proctor e um desempregado chamado Lewis Pelser. Tempo depois de seus depoimentos, estes quatro denunciaram que suas declarações tinham sido distorcidas ou obtidas por coação, mas foram ameaçados e impedidos de pedir a retificação ao tribunal.
Splaine reconheceu que esteve, durante poucos segundos, a uma distância de quase 100 metros de distância do lugar do crime, e que realmente não tinha reconhecido os atiradores. Andrews denunciou ter sido coagida sob ameaça, e Pelser declarou ter sido obrigado a assinar enquanto estava bêbado. O capitão Proctor foi mais enfático: afirmou que tinha advertido o promotor que as balas do crime nada tinham a ver com as armas dos réus; também revelou que seu depoimento foi alterado pelo ministério público, mesmo depois de redigido.
O júri, montado da maneira habitual nos Estados Unidos, com base em critérios subjetivos e parciais, gastou em sua deliberação menos de três horas, uma proporção ínfima do que consume uma deliberação média em casos bem mais simples que aquele. Depois, entregou um veredicto unânime de culpabilidade, o que condenou os acusados à pena de morte. Entretanto, como acontece até hoje em muitos julgamentos, a ameaça da morte ficou pendendo sobre os réus até muito tempo depois. Só seriam eletrocutados em agosto de 1927, passados sete anos de calvário e terror.
Em 1924, a polêmica ainda continuava, focada agora na adulteração de provas pelos magistrados (por exemplo, a mudança do cano do revólver de Sacco), a falsidade de algumas perícias, as declarações prévias ao julgamentos de alguns membros do júri, e a permanente atitude de ódio e ofensa do juiz contra os defensores. De maneira exatamente oposta ao que aconteceu no Brasil, uma parte da imprensa convencional denunciou a parcialidade do juiz e o acusou de baixo nível moral e de procura de notoriedade.
Em 1925, Sacco conheceu na prisão o imigrante português Celestino Madeiros, membro de uma gangue muito temida, que fora preso por outro crime e foi executado na mesma época que os dois italianos. Naquele momento, Celestino confessou ser o responsável da morte dos pagadores, e negou que tivesse qualquer colaboração de Sacco ou de Vanzetti, aos quais nem mesmo conhecia antes do crime. O juiz se recusou a reabrir o caso e ter em conta a confissão do verdadeiro assassino.
Isto tem duas analogias com o caso Battisti: (1) O verdadeiro autor da morte da primeira vítima, chamado Pietro Mutti, confessou seu crime. A diferença é que ele não manteve sua confissão, como Medeiros, mas mudou depois de versão, acusando a Battisti, em troca de benefícios concedidos pela justiça. (2) Os juízes se recusaram a aceitar a confissão de Medeiros como prova. Da mesma maneira, o Supremo Tribunal Federal que condenou Battisti à extradição, se recusou a aceitar provas em favor do réu, que seus amigos tinham obtido depois de cuidadosas e irretocáveis investigações. O relator chegou ao extremo de incomodar-se porque pessoas amantes da verdadeira justiça ousavam questionar a tramóia.
Antes da execução, Sacco e Vanzetti foram brevemente interrogados no mesmo presídio pelo reacionário semifascista governador Alvin T. Fuller, que entrou nas celas separadas dos dois amigos, protegido por uma poderosa guarda. No momento de seu interrogatório, Vanzetti deu uma mostra de desafio muito parecida às que deu Battisti no confronto com seus juízes de Milão, durante o processo de 1981.
Apesar de estar enfraquecido por uma greve de fome de vários dias, Vanzetti improvisou um forte discurso, reivindicando seus ideais libertários, e acusando o governador e os juízes de ter fraudado esse processo. Num último esforço, tentou avançar sobre a comitiva, mas, segundo boatos espalhados pela imprensa, teria sido controlado com requintes de violências.
Durante os sete anos de martírio e especialmente quando se aproximava sua execução, os amigos italianos receberam milhares de manifestações de solidariedade, incluídas às dos mais famosos intelectuais da época, entre eles algumas figuras lendárias: John Dos Passos, Alice Hamilton, Paul Kellog, Jane Addams, Heywood Broun, William Patterson, Upton Sinclair, Dorothy Parker, Ben Shahn, Edna St. Vincent Millay, Felix Frankfurter, John Howard Lawson, Freda Kirchway, Floyd Dell, Bertrand Russell, George Bernard Shaw e H. G. Wells.
A Reação da Sociedade
Temos um sentimento muito claro de que o mundo tem progredido. O fascismo, que então começava, foi derrotado na guerra, embora ainda não foi eliminado e sua força é muito grande em vários países. O racismo também é menor, inclusive nos Estados Unidos. Ninguém sonhava em 1920 nem em 1970 com um presidente mulato. A pena de morte foi eliminada da Europa, e a tortura, apesar de assomar sua horrível cabeça em muitos países, é hoje menos tolerada que há 90, 80 ou 40 anos.
Entretanto, o caso de Sacco e Vanzetti chacoalhou quase todo o Ocidente, e até alguns lugares do Oriente. Houve manifestações nas principais cidades de Europa, nas Américas e até na Índia. Algumas das passeatas atingiram a quantidade de 250 mil pessoas, um número que impressiona se pensamos no tamanho das cidades há 80 ou 90 anos.
Quando eu era criança, os mais velhos me contavam a história de Sacco e Vanzetti, acontecida 40 anos antes. Minha família não tinha nada de esquerda, e nossa cidade estava a milhares de quilômetros dos Estados Unidos. Mas, quando pensamos no caso Battisti, parece que esse progresso da humanidade não atingiu alguns países e algumas instituições.
Com efeito, o julgamento de Battisti foi mais falso, tortuoso e bufonesco que o de Sacco e Vanzetti. Não houve prova nenhuma, nem testemunhas reais, e até os documentos mais simples, como procurações, foram falsificados pela justiça italiana. Já no Brasil, o Supremo Tribunal não se deu ao trabalho de ler as provas. Não houve o mínimo pudor de fingir interesse, mesmo que a sentença posterior fosse aquela que convinha aos condottieri. O relator do caso simplesmente desprezou qualquer oportunidade de esclarecimento, e até ofendeu os amigos de Battisti que reclamavam a verdade.
Uma explicação para a diferença entre ambos os casos é que, apesar de seu caráter arbitrário e sua aplicação exorbitada da pena de morte, a justiça norte-americana (nas comarcas fora do Sul do país) sempre foi menos imoral e mais garantista que a Italiana e que a dos países da América Latina. A comparação entre o caso Battisti e o de Sacco e Vanzetti mostra que a máfia stalino-fascista do judiciário de Milão era mais corrupta e sádica que a dos estados ianques, mesmo em tempos de grande perseguição.
Embora na França e parcialmente no Brasil, se tenha sentido a reação de um setor esclarecido e corajoso da sociedade, os atos concretos de protesta foram muito menos intensos que os da época dos anarquistas italianos. Será que nosso progresso moral e social é apenas uma ilusão? Talvez não.
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