segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

SOBRE A HISTÓRIA, A GEOGRAFIA E SEUS OBJETOS





SOBRE A HISTÓRIA, A GEOGRAFIA E SEUS OBJETOS

Região, espaço e poder


Odemar Leotti


Para se discutir o território como espaço controlado por certo tipo de poder, é preciso entendê-lo numa noção jurídica e política. Ao se buscar o sentido de região, vemos que provém do termo latino regere, e província como pró vincere. Traduzido ficaria o termo região como o espaço territorial visto como um espaço conquistado e que dever funcionar em prol do vencedor, portanto região já traz em seu interior o discurso do vencedor pela conquista da guerra e que de deverá ser regido por ele, para ele. Para que possamos chegar a essa compreensão necessitamos estranhar as palavras e entender que não existem metáforas e não metáforas. Todos os conceitos que tomam forma de verdade, esquecem-se que foram um dia conceitos. O papel do historiador não é o de ter esses conceitos como ponto de partida de sua pesquisa e sim como ponto de chegada. Assim procedendo estaremos fazendo um trabalho tendo os documentos como acontecimentos discursivos e opacos. Antes de vê-los como algo transparente exercendo o papel de pistas da realidade, devemos entendê-los como monumentos produzidos por uma forma de poder em sua contingência histórica espacial e temporal.


Práticas políticas antes de tudo implementam, instituem analogias para capturarem o que lhes foge ao controle – por uma implantação política eles se positivam. Descolar essas palavras é antes de tudo tarefa do arqueólogo. Dar-lhes uma história, retomar e dissolver a moral que lhes dão lugar, lhe sustentam em suas regras de emergência e das instituições que cuidam de sua aparição, implantando-as e garantindo seu funcionamento. O papel da genealogia é fazer aparece o poder das relações de dominação e a moral que ele institui e garante o funcionamento de uns sobre outros.


Para Foucault, quando se fala em “tais expressões trata-se de guerra, de administração, de implantação de gestão de poder” 1. O que diferencia esse tipo de análise dos que reinam em nosso campo historiográfico é a possibilidade de criticar a forma desqualificadora “do espaço que reina há inúmeras gerações” 2. Quando tanto se fala numa dialética das relações de produção, excluí-se uma dialética que trate das mutações discursivas que arbitram as noções de espaço. Tomamo-nos a muito tempo de noções, esquecendo-nos de suas formas conceituais e de que elas possuem tempo e lugar de aparição. Que serviram ao longo desse tempo à gestão do poder dos vencedores militarmente e de suas translações da guerra em forma de política, como fator de dominação. Esquecemos com isso, das estratégias espaciais por eles implantadas. Por isso que é importante atentarmos para Foucault quando afirma tratar-se de noções a serviço


“de guerra, de administração, de implantação, de gestão de poder. (...) dever-se-ia fazer uma crítica dessa desqualificação do espaço que reina há numerosas gerações. Será que isso começou com Bérgson ou antes dele? O espaço é o que estava morto, congelado, não dialético, imóvel. Em contrapartida, o tempo era rico, fecundo, vivo, dialético” 3.


*


Nessa pequena parte, produzi um texto, trabalhando uma metáfora da estrutura de um prédio em sua relação com o espaço em que necessita construir as fundações que garantam o firmamento para suportar um edifício que surgirá sobre essa diversidade espacial. Sem modificar o terreno o serviço do engenheiro é buscar as diferentes potencias já existentes nesse espaço disponível e através das construções de alicerces, maiores ou menores, as vigas vão se proliferando de acordo com a situação de cada singularidade desse espaço. Achei interessante a utilização desse engenho das forças estruturais e de sua relação com a situação já em funcionamento e de como essa engenharia sabe se utilizar desse conjunto de potenciais já existentes e colocá-los a serviço de um projeto estruturado a serviço de uma política edificadora. As diferentes formas potenciais mantendo-se intactas são redistribuídas em seus funcionamentos para servir a uma nova função. A manutenção a partir da construção e uso deverá funcionar para manter os potenciais espaciais a serviço de uma dominação estrutural para garantia do equilíbrio do edifício. Assim poderemos nos utilizar dessa engenharia para metaforizar as relações de dominação das singularidades desejantes e sua capitulação e redestinação de função, mantendo uma soberania sobre elas e através da sutileza do poder manter uma invisibilidade dessa dominação. Isso se daria tal com a engenharia integra as rugosidades do terreno a uma estrutura a serviço do prédio. No caso da política de dominação, as diferentes vontades de potência são ligadas a uma estrutura que se fortalece em seus funcionamentos e nesse engendramento funcionaria uma engenharia do poder: uma tecnologia da dominação.


A estrutura de um prédio está nas fundações que o suportam. Elas são calculadas, o terreno sobre o qual elas se instalam é examinado, recortado, analisado. Ponto por ponto o terreno, ou o espaço, que era antes um disperso fluir de singularidades geomórficas, passam agora, sem modificar seus conteúdos, a receber tratamentos na forma de que, ao se aferrarem de uma estrutura de ferro e concreto, de uma liga a funcionarem, mantendo suas singularidades terrenas, como um conjunto estrutural, onde cada uma das colunas só tem valor de força, de resistência atado a uma estrutura. Cada uma dessas colunas se apóiam às diferentes potencias do terreno que os tornam os seus firmamentos. Daí cada uma dessas forças de resistência do terreno se atam às colunas e só tem valor de força, de resistência atado a uma estrutura que os tornam o firmamento de todo peso, toda a extensão a desafiar a lei, fixada que está em um equilíbrio totalizante.


Ao se tentar fundar um espaço onde existam múltiplas formas de existência, de forma semelhante a cada momento histórico, deu-se como necessidade a fundação, apoiada a essas formas diversas de uma estrutura funcional totalizante. Dando maior visibilidade às menores características do funcionamento dos corpos no espaço, no ocidente, se chegou, no início do século XIX à fundação do edifício nacional. Para tanto, cada corpo em suas singularidades com suas potencias vitais transformadoras de coisas, em cada um desses corpos deveria ser fundado, de forma a manter seu poder energético, mas de forma a que ele funcionasse em consonância com os outros corpos ligados a uma grande estrutura para que a totalização desse poder energético funcionasse como uma grande usina de forças a serviço de um grande evento nacional.


Expandir o poder dessas manchas culturais, diluindo suas múltiplas fronteiras em uma fronteira nacional. Constituir, a partir de um discurso geográfico, a justificação da fronteiras e com ela poder reinar, ou fazer reinar o discurso do nacionalismo. Segundo alguns geógrafos, a geografia sendo, com a história constitutiva desse discurso nacional, eles concluem que a implantação de um poder central sobre as multiplicidades culturais, se dá e que “confia à história-geografia a tarefa de enraizamento e de inculcação do espírito cívico e patriótico” (185). Este empreendimento administrativo, terá “como efeito, segundo Foucault, “a constituição de uma identidade” (185). Sua hipótese é a seguinte: “o indivíduo não é o dado sobre o qual se exerce e abate o poder. O indivíduo, com suas características, sua identidade, em sua referencia a si mesmo, é o produto de uma relação de poder que se exerce sobre os corpos, multiplicidades, movimentos, desejos, forças” (185).



Sobre o problema da identidade regional


O documento como instrumento de saber-poder e seus três umbrais distinguidos por Foucault, nos aponta para instrumentos de medida, entre os gregos, de inquirição na Idade Média e do exame como instrumento moderno, isso sem se prender a uma cronologia rígida.


O saber, seja ele que alvo tenha como objetivo, produz saberes sobre o espaço. Esse saber tem nele instituída uma unidade que é utilizada para formatar o espaço formado por figuras exóticas, estranhas à leitura, carregada, portanto de perigos e que precisariam ser coladas ao saber, a uma coerção da verdade e à estrutura que o compõe esse funcionamento discursivo e ordenador, instituindo através de instancias objetivadas e subjetivadoras. Assim se daria a implantação do poder e a redistribuição dos desejos, das vontades de potências, ao serem redistribuídas a partir de estruturas desse poder, que sem reprimi-los os inserem num redimensionamento de suas funções conectadas às formas organizadas.


Um tipo de saber impunha nessa contingência ao trazer já em si, a exigência do cerco dessas dispersões culturais e de suas formas de sentido sobre o espaço. Suas territorialidades nômades impediam uma população sedentária e ordenada a uma origem e finalidade. Esse cerco trazia nele os modelos das reduções catequistas, dos destacamentos militares, das fortalezas. Suas formas de ataques e conquistas eram as bandeiras, as viagens de missionários na busca de arrebanhamentos de formas diferentes de sociabilidades e com elas de seus conceitos de relação com a natureza das coisas. Essas formas denominadas, de “bárbaras”, “gentios”, “primitivas”, consideradas como “selvagens”, tem nessas nomeações formas de ser produzidas pelo modelo europeu e as modalidades de seu relacionamento com os perigos que avizinhavam seu firmamento. Traziam um saber sobre o espaço. Seria um saber geográfico, ou devemos nos reportar a um plano discursivo do qual a geografia seria apenas uma de suas unidades literárias ou discursivas. Eis o que nos informa Foucault:


Se o saber geográfico não traz em si o círculo, a fronteira, quer seja ela nacional, departamental ou cantonal. E, portanto, se às figuras de internamento reveladas pelo senhor – as do louco, do delinqüente, do doente, do proletário – não se deve acrescentar a do cidadão soldado? O espaço do internamento seria então infinitamente mais vasto e menos estanque? (p. 184, 185).


É extremamente importante nos apegar à essas indagações. Saber geográfico cria fronteiras que se superpõe a outras fronteiras. Isso quanto a tempo, a finalidade, a espaço, ou seja, repõe com sedimentos ordenadores, outras formas de saber sobre a natureza das coisas, instaurando essas formas a uma estrutura ordenadora, sem restrição a suas potencias e sim pela redistribuição de seus funcionamentos. Delimitações espaciais que demarcam as relações como as paisagens, com os devires; cada qual em formas dimensionais infinitas. Colocar mapas, instalar mapas e re-situar desejos. Territorialidades superpostas por uma coação à verdade, coagir para um saber que aponta para uma necessidade nacional. O discurso da nação e as práticas de implantação. “Esse discurso geográfico que justifica as fronteiras é o discurso do nacionalismo” (p. 185). Para os geógrafos, reafirma Foucault que:


A geografia sendo, com a história, constitutiva desse discurso nacional, o que marca bem a instauração da escola de Jules Ferry, que confia à história-geografia a tarefa de enraizamento e de inculcação do espírito cívico e patriótico (185).


O efeito discursivo que daí provem é a constituição de uma identidade. O poder não se abate sobre o indivíduo. Ele é já em si produto do funcionamento de uma relação de poder. Os corpos tornam-se discursos e são destinados por uma ordenação que redistribui suas múltiplas possibilidades de si, suas formas desejantes, suas forças, seus movimentos. Foucault coloca a hipótese


de que o indivíduo não é o dado sobre qual se exerce e se abate o poder. O indivíduo, com suas características, sua identidade, em sua referencia a si mesmo, é o produto de uma relação de poder que se exerce sobre os corpos, multiplicidades, movimentos, desejos, forças” (185).


O que ora apresentamos como problema é primeiramente como se produz uma classificação do espaço nacional, portanto teríamos que exceder as balizas antes propostas por nossa pesquisa. Se a iniciamos em 1895, ano em que começa a se instituir uma formação discursiva voltada para a invenção do Brasil, tida como republicana, esse discurso toma vigorosidade no início do século XIX, e mais relevantemente em 1831, ano do período regencial. É nesse momento histórico que vemos aparecer instituições a serviço da constituição do discurso nacional, principalmente com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, da Diretoria Geral dos Índios instituídas em todo o país, com a redução das sociedades indígenas em todas as províncias e de outros dispositivos de poder. Antes mesmo do evento da independência já figurava a obra de José Bonifácio de Andrada e Silva, Projeto para o Brasil.


O mato-grossense como discurso instituidor do ser


Quando aparece o tema regionalizado, essa identidade caracteriza uma individualidade que ele ao referir a si mesmo, se exercita como produto de uma relação de poder. É fruto dessas relações de poder que se exerce sobre suas multiplicidades. Sobre seu corpo, sobre seu movimento, sobre suas forças.


É daí que nasce a motivação desse estudo e o seu problema. Se “há muito o que dizer sobre os problemas da identidade regional, e sobre todos os conflitos que pode haver entre ela e a identidade nacional” (185), devemos entender que um dos problemas, que devemos dar relevância maior, reside justamente nessas unidades discursivas, denominadas de História e Geografia e de suas conivências inconscientes, como queiram denominar a discursividade latente, ou subjetivações instituídas para uma análise discursiva. Ao se instrumentalizar nesse saber nessas noções cristalizadas como região e nação, deixam escapar a história dessas construções. Portanto se há muito que dizer, não seria dizer do que já foi dito ou da forma como foi dito. Antes de pensarmos numa aproximação maior ou menor com seu objeto devemos voltar nosso foco às estruturas literárias que compuseram as formas de sintaxes que até hoje cuidaram das suas aparições e que foram tidas como verdades. Por outro lado, devemos nos atentar para as contingências morais que ao cuidarem da aparição discursiva, se utilizam de regras dessa aparição. Isso se dá de forma taxonômica que elegem um discurso purificador, ordenador em detrimento da exclusão ou do silenciamento sutil das diversidades enunciativas, que às ameaças de obstarem os dados desejados pela implantação racionalizadora são considerados como desviantes, equivocados, errados.


Se as categorias como relações de força, relações de poder, estratégias e táticas tem uma identificação com a geografia; se noções como civilização, processo histórico, evolução histórica, formação histórica, desenvolvimentos social e econômico criaram grades, hierarquias, estatísticas, etc., elas se deram a partir do deslocamento das leituras da simultaneidade para as leis sucessivas na constituição da representação gramatical como lugar da ordem do mundo. As noções que serviram a essas duas unidades literárias, ou como prefere Foucault, a essas unidades discursivas, foram instituídas com a função disciplinar, como unidades disciplinares que serviram primeiramente como instrumentos de uma política que se institui como a guerra continuada por outros meios.


Para que possamos transitar em tempos diferentes, gostaríamos de nos entender no fato de que se joje nos consideramos vivendo numa situação em que possamos nos expressar por votos ou opiniões eleitorais, é isso em si forma de exame e que não podemos problematizar esse funcionamento presente sem nos localizar nas cumplicidades discursivas e que essa forma subjetivante, ao se exercitar, resvala-se e carrega marcas das formas anteriores a ela. Essas formas se contaminam durante os tempos? Eis um problema da pesquisa hoje. As formas de instituições jesuíticas, pombalina, ou de um assim chamado de despotismo esclarecido, imperial ou monarquia constitucional, ou em suas tentativas no século XIX até sua efetivação com o evento republicano, carregaram uma da outra uma sintaxe que, lidas fora das noções que alimentam o discurso historiográfico, podem ser consideradas como formas políticas de uma guerra silenciosa, que é em si fruto de uma discursividade que constitui o ser de um conhecimento que inventa linguagem, vida e trabalho que irão dar, a partir do século XVII, a escultura do homem, tal qual é dado a pensar até hoje. Portanto é impossível continuar a buscar uma objetividade sobre o passado brasileiro, sem sair das amarras dessa rede de saber sobre o homem brasileiro. Essas formações discursivas, tal ao se reinstituírem uma a partir da outra, fizeram, e ainda persiste em fazer, uma história que já é em si, uma história que mantém relações de dominação, que fazem, quer queiram ou não, o papel de uma política da guerra por outros meios. São elas que irão constituir um passado do Brasil contaminado por conceitos de espaços nacionalizados e regionalizados presos a essa rede que determinam novas territorialidades: primeiro pela força militar, depois pela força de uma sintaxe que garantem a continuidade do poder. Portanto conhecimento e linguagem passam a se dar na instância discursiva da representação, do conhecimento que precisa ser purificado a partir das leis subterrâneas em sua guerra contra a proliferação das falas. As múltiplas formas de linguagem produzidas por inúmeros grupos sociais estavam condenadas, nomeadas e passavam então a ser alvo de um saber purificador e ordenador das linguagens não sucessivas4.


Esse é um aspecto da primeira questão. Será que a distinção entre esses períodos que emergiram como passado, se obedecido, “não reconduz à divisão ciencia-social ciencia da natureza? Para que ao exercitarmos a partir do pensamento de Foucault, não lhe deturpemos os objetivos, queria, ao parafrasear seus exercícios intelectuais, que nos localizássemos nas formas com que foram utilizadas as noções sobre o que se leram os viajantes e as leituras que alimentaram os jesuítas. As leituras feitas por esses religiosos como contaminadoras de outros viajantes e com isso os empreendimentos colonizadores. Como no século XIX as ciências como geografia e história se alimentaram, por sua vez, dos naturalistas, que estiveram nesses espaços territoriais. Gostaria de me fazer entender, que as informações recolhidas por esses protagonistas


não as recolhiam em estado bruto. Literalmente, elas inquiriam, seguindo esquemas mais ou menos claros para elas, mais ou menos conscientes. E penso que as ciências da natureza de fato se alojaram no interior desta forma geral a inquirição. Tal como as ciências do homem nasceram a partir do momento em que foram ajustados os procedimentos de vigilância e de registros dos indivíduos. Mas isso era apenas o ponto de partida” (p. p. 185, 186).


Ao se afirmar na possibilidade do entrecruzamento entre ciências da natureza e ciencias do homem o fizeram entrecruzando “seus conceitos, seus métodos, seus resultados” (186). A fundação do Instituto Histórico e Geográfico não seria ponto fruto do discurso geo-histórico e de suas utilizações sistemáticas de inquirição, medida e exame? Para Foucault, os inventários e os catálogos forma figuras onipresentes no discurso geográfico. Ao inquirir, medir, examinar, o geógrafo exerceria sua “função essencial, a estratégica coleta de informação. Inventário em estado bruto não tem grande interesse, e que de fato só é utilizável pelo poder. O poder não tem necessidade de ciência, mas sim de uma massa de informações que ele está, por sua posição estratégica, em condições de explorar


(...)


Os viajantes do século XVII ou esses geógrafos do século XIX eram de fato agentes de informações que coletavam e cartografavam a informação, informação que era diretamente explorável pelas autoridades coloniais, os estrategistas, os mercadores ou industriais” (186). Para Foucault, esses eles forneciam “relatos codificadores”, que eram sem si, “informações precisas sobre o estado militar do país que atravessaram os recursos econômicos, os mercados, as riquezas, as possibilidade de relação” (186). Seria, continua Foucault, “ingenuidade tardia de alguns naturalistas e geógrafos do século XVIII?”, ou “eram na realidade informações extraordinariamente precisas, das quais parece que se tinha a chave?”. Essas preocupações de Foucault são importantes para que façamos um deslocamento, não na busca da objetividade do fato, mas nas formas com que essas leituras chegaram ao nosso tempo e de como temos muito delas atuando coma alimentadoras de conceitos, de noções que foram e ainda são utilizadas nas tentativas fundamentadoras da verdade sobre o passado do Brasil como um espaço nacional e das classificações que hierarquizam o espaço. Saindo de uma leitura das linguagens com suas características simultâneas cria-se um saber de suas sucessividades e a partir de sua positividade está instituído o lugar de funcionamento das regiões como parte do espaço agora localizada como perto ou longe e daí com suas noções de maior ou menor valor. Dessas derivações instituídas para o lugar do ser da natureza humana uma linguagem designadora desse ser o institui num conhecimento discursivo que é o ser no interior da linguagem e não mais nas suas exterioridades, ou seja, nos mistérios de seu emaranhado e que precisava ser colocado em ação. A partir do século XVII, os dados devem ser coletados e anexados a uma ordem: não mais eles estarão expostos a uma dispersão simultânea do mundo. Agora sua absolutização não mais se dará no emaranhado do mundo e sim na representação que a linguagem de dá como conhecimento, ao qual, esses signos deverão se compor e se integrarem a uma ordem regeneradora do mundo.



Marxismo, a geo-história e a questão do espaço:o Marx dos marxistas e o Marx leitor do espaço


Durante seu debate sobre o espaço, entrou inevitavelmente a questão do marxismo e no caso específico, dos geógrafos marxistas. Nessa discussão surgiu sobre as leituras feitas tanto pela economia como pela sociologia que ao privilegiarem o fator tempo não dera a devida atenção a uma leitura do espaço como lugar da disciplinarização. Ao ouvir sobre a ausência de estudos marxistas sobre o espaço e de não se ter livrado do “espaço instaurado por Ricardo”, Foucault afirma que para ele, marx não existe. Fala da “entidade construída em torno de seu nome” (p. 187). Ora um Marx que construiu um “imenso indivíduo, ora a totalidade que escreveu, ora um processo histórico que deriva dele” (186). Entende que os escritos de Marx sobre a formação do capital deriva da “trama da economia ricardiana” (p. 186). Recupera esse entendimento do próprio Marx e sugere a leitura da comuna de Paris e 18 brumário, onde a leitura foge dessa trama do século XVIII. Universalizar Marx, ou academizá-lo, é para Foucault, “desconhecer a explosão que ele produziu” (186).


Complementando a questão levantada pelos geógrafos, que afirmam um Marx heterogêneo visto no plano de seus estudos espaciais, o veem com “uma sensibilidade espacial surpreendente” (186). Foucault, ao concordar com a qualidade de seus estudos espaciais completa a importância e o esquecimento que os “marxistas”, deram sobre o que Marx escreveu sobre o “exercito e seu papel no desenvolvimento do poder político. São coisas muito importantes que praticamente foram deixadas de lado em alqueive, em benefício dos incessantes comentários sobre a mais-valia” (p.p. 186, 187).


Mais do que constituirmos trincheiras em defesa das disciplinas, devemos redimensioná-las ao nível de unidades discursivas e que se instituíram em contingências espaços-temporais. Com isso poderemos, para além da defesa dos conceitos que entendemos como a ela pertencentes, vê-los como germes da sua instituição como gestores, como garantidores do funcionamento dos valores morais instituídos e do lugar de honra em que as disciplinas emergem. Assim posto, podemos entender que problematizar o papel das disciplinas devemos estranhar seus papéis e dos conceitos que as movem.



*

O Brasil, as reinvenções do passado e as re-territorializações espaciais


Uma coisa ininterruptamente inventada é o passado. O Brasil é já em si um produto que surgiu da impossibilidade imposta pelos limites das leituras sobre o que é estranho ao nosso espaço e tempo do pensar, ou como disse Foucault, estranho à geografia do nosso tempo, ou ainda estranho aos domínios do pensar, que nos localiza que nos faz pertencer a um espaço-mundo. Ao nos referir ao passado devemos então problematizar as formas que deram lugar a novos sentidos de pensar o tempo e o espaço.


Porém ainda há certo desencontro ao se discutir as formas de construção do passado. O passado como objeto pode ser uma busca da objetividade desse passado ou a análise das contradições teóricas que o produziu. Um que o acha inatingível, mas acredita na sua possibilidade de encontro ao menos das proximidades desse passado. Nesse caso tudo que se faz nesse sentido não passa do entendimento de que seja “mais uma” tentativa de construção desse passado. Por outro lado existe outra forma de leitura, que entendem o passado como algo produzido por visões, mentalidades, ainda insuficientes desse passado, pelo fato de estarem elas carregadas de subjetividades, das quais é impossível se desvencilhar. Entendem que por esse motivo, esse espaço seja algo inatingível e passa a ser fruto de construções que contribuiriam com a aproximação. O primeiro seria os que ainda crêem na existência de certa objetividade a ser alcançada e por ser de difícil alcance fica por conta de aprovação de uma comunidade científica que juntos alcançariam a objetividade desse passado. Essas leituras produziram modalidades para a antropologia e para a história sociológica e sócio-cultural.


A arqueologia entende que não existe algo a espera de ser desvelado e que antes do sujeito e o objeto existem as práticas discursivas, que produzem positividades que tomam forma de verdade, e, portanto poder ao garantir a profusão dos seres a partir dessas formas de flexibilização interna da linguagem. Se antes entendemos o problema como um espaço ideológico, onde um discurso interpunha-se entre um sujeito e um objeto. Podemos deslocar nossa análise para um plano discursivo que ao antepor um discurso, constitui já esse sujeito dentro de um sistema de pensamento que traz em si uma linguagem que passa a se desdobrar dentro de si mesmo, uma vida já fruto dessa forma de linguagem e o trabalho como lugar das relações entre sujeito e objeto. Preso a esse triedro do saber, podemos dizer que se institui uma forma de ser como designadora e derivadora do saber sobre as coisas. O que era antes um ser como fruto de uma linguagem que se engendrava no mundo das coisas, e que deveria ser entendida nos mistérios de seu funcionamento, passa no período clássico a ser entendido.


Portanto não está na proximidade do objeto a função da história e sim na ação histórico-contingencial que, para possibilitar uma legitimização deste tempo, ainda quente, produziram enunciados que fizeram emergir objetos. O que interessa neste caso é buscar essas formas que produziram objetos, num dado tempo. Para isto, é importante a busca de uma genealogia do poder produzido por certa regularidade discursiva que determinariam: tanto a subjetividade do autor, quanto o objeto de sua emergência. Não é proposta da genealogia a busca de uma origem das coisas e sim da historicidade de suas profusões como força na produção do objeto, consumando uma relação de dominação e os seus efeitos de sentidos produtores de subjetividades.


Quando as ciências humanas tentam buscar o entendimento da natureza humana, é mais importante buscarmos as estruturas literárias que compõem suas formas de descoberta do que na natureza das coisas que se propõe a desvendar.


Quando procuramos explicar tópicos problemáticos como natureza humana, cultura, sociedade e história, nunca dizem com precisão o que queremos dizer, nem expressamos o sentido exato do que dizemos. Nosso discurso sempre tende a escapar dos nossos dados e voltar-se para as estruturas de consciência com que estamos tentando apreende-los; ou, o que dá no mesmo, os dados sempre obstam a coerência da imagem que estamos tentando formar dele5.


Para que se possa problematizar uma forma de pensar sobre a nossa realidade historiográfica, será preciso que saiamos do interior das casas de distribuição onde ela reside. Ao problematizarmos a crise paradigmática que estamos presenciando, devemos antes de tudo colocar em questão a crise das tentativas de saídas desta crise. Não é mais possível mantermo-nos alheios ao debate sempre do lado de dentro das salivas de Eustenes6. É preciso que se faça uma genealogia dos valores que construíram e que constroem ainda hoje as positividades historiográficas e das tentativas estruturalistas de saída desta crise. É preciso que se coloque em questão o “quadro que permite ao pensamento operar com os seres uma ordenação, uma repartição em classes, um agrupamento nominal pelo que são designadas suas similitudes e suas diferenças – lá onde, desde o fundo dos tempos, a linguagem se entrecruza com o espaço” 7.



1 FOUCAULT, Michel. 1926-1984. Perguntas a Michel Foucault sobre a Geografia. In Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 182.

2 Ibid. p. 182.

3 Ibid. p. 182.

4 Esse aspecto será melhor detalhado no texto que produziremos como estudos de Foucault em A defesa da sociedade, que são fruto de suas aulas em 1975 e 1976, que queremos cruzar com sua obra As palavras e as coisas. Ao juntar essas duas obras, imaginamos que procuram mostrar duas partes importantes dos estudos de Foucault, que são os instrumentos de poder e as formas não discursivas de sua implantação. Uma está imbricada na outra e ficaria perigoso explicar de forma estanque uma à outra.

5 WITE, Hayden, Trópicos do Discurso: Ensaios sobre a Crítica da Cultura. São Paulo: Editora da Universidade de são Paulo, 1994. p, 13.

6 FOUCAULT, Michel. A Palavra e as Coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. XI. Alusão que FOUCAULT faz ao texto de Jorge Luiz Borges, ao personagem que metaforicamente representaria a linguagem que em sua voracidade engole e apropria deglutindo os seres em sua saliva. Tal qual a saliva de Eustenes, as análises totalizantes transformam as singularidades dos seres em seus alimentos, transformando-os em uma única massa pastosa. Ver p. XI.

7 Ibid. p. XII. Apud. LEOTTI, Odemar. Foucault, as palavras e as coisas. (no prelo).

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