Sobre os Limites da Pena
Antes mesmo que, por declaração de inconstitucionalidade no ano 2006 (HC-82.959, Ministro Marco Aurélio), deixasse de compor o nosso ordenamento jurídico o malfeito e malvisto § 1º do art. 2º da infeliz Lei nº 8.072, de 1990, a 6ª Turma, entre outros conceitos, tinha o de admitir a substituição das penas privativas de liberdade pelas restritivas de direitos, tal, quem sabe, desde o ano 2004, quando aqui ultimamos o julgamento do HC-32.498 – pela concessão, Medina (relator) e Naves; pela denegação, Carvalhido e Gallotti –, e foi quando votei da seguinte maneira:
"Juridicamente, é possível a substituição tal qual a defende o Relator? Ao que cuido, também penso que sim, pois, na hipótese em discussão, há de vir a pêlo a disciplina inscrita no aludido art. 44.
Ora, não são de hoje nem de ontem, mas de anteontem os apelos no sentido de que se deve, por uma série de razões de todos nós amplamente conhecidas, incentivar sejam adotadas sanções outras para os denominados delinqüentes sem periculosidade. Por exemplo, confiram-se os seguintes tópicos de três exposições de motivos: (I) 'Parece fora de dúvida que a gravidade da situação exige a imediata reformulação de alguns dispositivos legais, de modo a reservar o recolhimento a prisão para os criminosos de maior periculosidade, possibilitando aos estabelecimentos existentes dedicar-se com maior rigor àqueles cuja conduta representa mais acentuado perigo, quer para as pessoas, individualmente, quer para a sociedade, orientação que se coaduna com as recomendações de vários organismos internacionais' (Exposição de motivos da Lei nº 6.416/77); (II) 'Esse questionamento da privação da liberdade tem levado penalistas de numerosos países e a própria Organização das Nações Unidas a uma 'procura mundial' de soluções alternativas para os infratores que não ponham em risco a paz e a segurança da sociedade' (Exposição de motivos da nova Parte Geral do Cód. Penal); (III) 'O espírito que norteou a Reforma de 1984 continua presente nesta parte, principalmente quando reafirmamos que 'uma política criminal orientada no sentido de proteger a sociedade terá de restringir a pena privativa de liberdade aos casos de reconhecida necessidade, como meio eficaz de impedir a ação criminógena cada vez maior do cárcere. Esta filosofia importa obviamente na busca de sanções outras para crimes de pequena e média gravidade, se assim considerar o juiz ser medida justa. Não se trata de combater ou condenar a pena privativa da liberdade como resposta penal básica ao delito. Tal como no Brasil, a pena de prisão se encontra no âmago dos sistemas penais de todo o mundo. O que por ora se discute é a sua limitação aos casos de reconhecida necessidade' (Exposição de motivos do Projeto de Lei nº 3.473/00, que altera a Parte Geral do Cód. Penal).
Então, se razão estritamente jurídica não houvesse, mas há, sem dúvida que há, razões de política criminal igualmente existem, ótimas e suficientes razões. Nos últimos dias – e isso já aconteceu em outros momentos, inclusive através de palavras minhas –, a imprensa escrita e falada dedicou páginas e páginas, palavras e palavras ao sistema prisional brasileiro, que passa, segundo as reportagens, 'por uma crise sem precedentes'.
Confira-se, entre outras, a edição 316 da Revista Época, que constata, primeiro, que 'cerca de 30% da população prisional poderia estar cumprindo penas alternativas. A aplicação não chega, porém, a 10% dos casos, enquanto na Europa atinge 70%'; segundo, que 'a desorganização prolonga a estada de quem já podia ter saído da prisão'. Confira-se, também, o artigo de Janio de Freitas publicado na Folha de S. Paulo de 6.6.04, que afirma: 'No Brasil enraizou-se a idéia de que a cadeia é escola do crime. Será a cadeia? Ou a escola do crime é a sociedade que, por suas representações políticas e institucionais, cria e preserva condições das quais o ser humano é levado a sair como ser desumano, se ainda não o era depois das experiências precedentes?'
Já disse, mais de uma vez, mais vale o Penal preventivo que o Penal repressivo; aliás, o agravamento das penas, por si só, não constitui fator de inibição da criminalidade. Estou entre aqueles que defendem a necessidade de um direito penal humanitário.
Acompanho o Relator, também expedindo de ofício a ordem de habeas corpus."
Mas agora, lembra o Relator a lei de 2006, Lei nº 11.343, que assim dispõe no art. 44: "Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos."
2. Como disse linhas antes, desde o ano 2004, já admitíamos a substituição, e há, entre nós, principalmente no ambiente da 6ª Turma, um sem-número de julgados a propósito da substituição da pena mais gravosa. De minha parte, não terei, então, o que mais acrescentar ao que, primeiramente, escrevi para o HC-32.498, isso porque o quadro de hoje se me apresenta o mesmo quadro de ontem. Vejam que, ontem, era o já referido § 1º do art. 2º e que, hoje, é o também já referido art. 44; ora, se, a despeito de um, tal não nos impediu de ontem substituirmos uma pena por outra, o mesmo há de suceder hoje, principalmente eu penso assim, embora a lei de 2006 seja, digamos, mais enfática.
3. A lei de 2006 também alude, no art. 44, à fiança e à liberdade provisória; não obstante essa alusão, temos, na 6ª Turma, decidido da seguinte maneira (valho-me, a propósito, do HC-112.947, de 2009, de que fui relator):
"Prisão em flagrante (tráfico ilícito de drogas). Liberdade provisória (indeferimento). Fundamentação (gravidade dos fatos e vedação legal). Coação (existência). Sentença (trânsito em julgado).
1. Sendo lícito ao juiz, no caso de prisão em flagrante, conceder ao réu liberdade provisória (Cód. de Pr. Penal, art. 310, parágrafo único), o seu ato, seja ele qual for, não prescindirá de fundamentação.
2. Toda e qualquer prisão que tenha caráter de medida cautelar há de vir, sempre e sempre, efetivamente fundamentada. É o sistema – decorre das normas que informam o ordenamento jurídico brasileiro.
3. Se o indeferimento da liberdade provisória está apoiado na gravidade dos fatos, tal aspecto é insuficiente para justificar, a contento, a manutenção de medida de índole excepcional.
4. Também não é suficiente, evidentemente, a reportação, e simples, ao frio texto da lei (por exemplo, ao art. 44 da Lei nº 11.343/06), porque, se assim fosse, a prisão provisória passaria a ter caráter de prisão obrigatória, e não é esse o seu caráter.
5. Admite-se a liberdade provisória, mesmo que se trate de crime inafiançável.
6. Caso no qual o ato judicial que indeferiu a liberdade provisória carece de suficiente motivação; falta-lhe, portanto, validade, decorrendo daí ilegal coação.
7. Do mesmo modo, se à superveniente sentença penal condenatória falta persuasiva motivação, o melhor dos entendimentos é o de que a ré poderá, em liberdade, aguardar o trânsito em julgado.
8. Ordem de habeas corpus concedida."
4. Estou, portanto, sem mais nada, votando no sentido de conceder a ordem, mas, se necessário for, se for do gosto da Turma, isto é, se lícito não for, sem mais nada, a concessão da ordem, estou, então, arguindo a inconstitucionalidade não de todo o art. 44, até porque de tanto não necessito, mas da cláusula "vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos" – isso pelo fato de haver, em caso que tal, conflito com o princípio que assegura a individualização da pena (inciso XLVI do art. 5º da Constituição).
Observem o que escrevi no item 7 do voto para o HC-76.779:
"7. Tão relevante é a fundamentação, que a não-fundamentação da decisão coloca-nos diante de situação estranhíssima. Imaginemos duas condutas: uma, a de alguém expondo à venda um grama de substância entorpecente; outra, a de alguém expondo à venda (tendo em depósito, etc.) cem quilos de substância entorpecente – são condutas diferentes, é claro. É lícito ao juiz dar a ambas as condutas igual tratamento, a saber, negar a tais acusados liberdade provisória (foram presos em flagrante) sem nenhum fundamento, salvo a referência à lei pertinente? Isso me soa estranho, estranhíssimo.
Há ilustres pensamentos – estou fazendo um registro – que levam em consideração a quantidade. Porém não é o meu caso. O que eu exijo, digamos, kelsenianamente – estou sendo bem mais positivista do que jusnaturalista –, é que se trate, di-lo a lei com todas as letras e com toda seriedade, de ordem escrita e fundamentada, repito, fundamentada de autoridade judiciária competente. Estaria, pois, aplicando a lei, simplesmente; a saber, na minha compreensão, estaria simplesmente aplicando a lei."
São condutas diferentes, totalmente desiguais, e a recomendação, a melhor delas, é no sentido de que tenham soluções diferentes, se lá no caso do HC-76.779, também neste caso e principalmente nele, sob pena, aqui principalmente, de ofensa à correta individualização da pena.
Aliás, sobre sentido e limites da pena, já escrevi o seguinte (REsp-661.365, DJ de 4.4.08):
"Falemos do outro mal, a mania da criminalização, do aumento das penas privativas de liberdade, da distinção entre crimes e crimes, uns hediondos e outros não-hediondos, como se todos não o fossem – que desastrosa e infeliz distinção! –, enfim, falemos dessas manias, que muitos supõem necessárias à prevenção dos crimes. Que engano, absolutíssimo engano! Não é dessa forma que se assume posição tendente a prevenir o crime, porquanto, verbi gratia, não se previne crime algum aumentando a sua pena, digamos, a mínima de um para dois ou três anos, a máxima, de quatro para cinco ou seis anos.
Há maus momentos legislativos aqui e ali, um desses foi o da lei que dispõe sobre os denominados crimes hediondos, lei proveniente de um desses tristes momentos da dogmática penal. O meu discurso não bate com as concepções legislativas, não bate porque, respeitosamente, a lei foi um passo atrás, bem atrás, e o Direito (como ciência), mormente o Penal (a moderna dogmática), está à frente, estamos bem à frente. À pergunta a propósito do sentido da pena estatal (observem isto: quais os seus limites, qual a legitimação do poder estatal) o alemão Roxin responde dizendo que não podemos nos 'contentar com as respostas do passado, visto que a situação histórico-espiritual, constitucional e social do presente exige que se penetre intelectualmente num complexo com várias facetas'.
Dos fins imediatos da pena, a saber, o de intimidar, o de corrigir (o da reabilitação ou ressocialização) e, por que não, o de impossibilitar, temporariamente, a prática de outros crimes, filósofos e penalistas oitocentistas e novecentistas, entre os quais Beccaria (1738-1794), Carmignani (1768-1847) e Feuerbach (1775-1833), conquanto tenham liderado movimentos tendentes a humanizar o sistema penal (num momento de situações de violação, opressão e iniqüidade quanto a espécies de pena e quanto ao cumprimento), colocaram-se, entretanto, relativamente aos fins imediatos da pena, ao lado do primeiro daqueles fins, isso porque, para eles, não tinha a sanção penal outro efeito além do poder de intimidar, de coagir psicologicamente o autor do crime.
Kant (1724 - 1804) tinha a pena como imperativo categórico – exigência de justiça absoluta, retributiva, medida pelo talião ('vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé', Deuteronômio 19:21). Em seu 'Dicionário', escreveu Caygill que, (I) para Kant, a punição havia de ser 'infligida para um crime e não como um meio para algum outro fim' (por exemplo, desencorajar outros, ou reabilitar); (II) que a tese retributiva de Kant foi desenvolvida por Hegel; (III) que a tese kantiana foi recentemente eclipsada por argumentos 'que sublinham as finalidades de dissuasão e reabilitação servidas pela punição'. Entretanto, completou Caygill, a partir da década de 80, 'registrou-se um interesse renovado pelas filosofias retributivas de punição' (J. Zahar, 2000, págs. 212/213).
Todavia leia-se, ao lado de outros existentes instrumentos legislativos, a Constituição da Itália, com vigência a partir de 1948, nesta passagem do seu art. 27: 'As penas não podem comportar tratamentos contrários ao senso de humanidade e devem visar à reeducação do condenado.' De semelhante feitio, a Constituição da Espanha de 1978, art. 25, número 2: 'Las penas privativas de libertad y las medidas de seguridad estarán orientadas hacia la reeducación y reinserción social y no podrán consistir em trabajos forzados...'
Analogicamente, o Parlamento Europeu vem recomendando, a propósito da adoção de política penal e de política de execução penal, que os Estados-Membros acolham medidas relativas à reeducação do condenado, sua instrução, reabilitação e reinserção social e profissional. Vem, ainda, recomendando maior aplicação das denominadas sanções alternativas em substituição à encarceração.
Fomos aplaudidos, ainda no Império, em virtude do Código de 1830, 'obra legislativa', escreveu Aníbal Bruno, 'realmente honrosa para a cultura jurídica nacional, como expressão avançada do pensamento penalista no seu tempo'; talvez não tenhamos sido aplaudidos com o Código de 1890, mas não deixou ele, como também observou Bruno, de se apresentar 'como obra de estrutura geral avançada'. Progredimos, é claro, com o Código de 1940, entre outros pontos, com a instituição da execução da pena pelo sistema progressivo: '... de modo que a pena imposta, além do seu caráter aflitivo (ou retributivo), deve ter o fim de corrigir, de readaptar o condenado' (Exposição, nº 31).
Se se lhe nega o caráter de correção, de readaptação do condenado, a pena estatal privativa de liberdade se desfigura, deslegitima-se até, e ao Estado, então, faltariam meios que a justificassem legítima e legalmente; entre nós, por exemplo, ao que eu creio, faltam ao Estado brasileiro meios legítimos que justifiquem o discrímen relativamente ao cumprimento dessa pena, visto que, quando a lei estabelece o seu cumprimento fazendo discriminação, a essa pena se está negando o caráter de readaptação, e aí como ficam os princípios da igualdade de todos perante a lei e da individualização da pena? Princípios que conosco estão convivendo há bastante tempo (vejam que o da individualização convive conosco desde o Código de 1830).
Infelizmente, a lei sobre crimes hediondos terminou por fazer pouco caso de alguns princípios, talvez tenha mesmo o legislador procedido de caso pensado, mas, ao ver de uma plêiade de juristas, também a meu ver, tal procedimento foi de encontro a princípios benéficos que vigem desde os tempos mais remotos (igualdade de todos, individualização da pena, reabilitação, etc.). Ora, à Lei nº 8.072, de 25.7.90, só lhe faltou mesmo a criação da figura do 'abominável réu', aquela figura constante da sentença de 19.4.1792 que condenou José da Silva Xavier à forca a fim de que nela morresse (morte natural) para sempre.
De tão ilegítima, de tão ilegal, de tão insensata, de tão chocante e de tão inconstitucional que é em algumas de suas disposições, a Lei nº 8.072, quando escapa da incompatibilidade entre normas infraconstitucionais e constitucionais, é um diploma que só pode ser visto como aqueles de interpretação estrita, tal como são de interpretação estrita, na feliz lembrança de Maximiliano, 'as disposições que restringem a liberdade humana'.
Apropriada, assim e portanto, a transcrição de um trecho das 'Memórias da Casa dos Mortos', de Dostoiévski. Ei-la: 'O presídio e os trabalhos forçados não fazem mais do que fomentar o ódio, a sede de prazeres proibidos e uma terrível leviandade de espírito no presidiário. Estou convencido de que, com o famoso sistema celular, apenas se obtêm fins falsos, enganosos, aparentes. Esse sistema rouba ao homem a sua energia física, excita-lhe a alma, debilita-lha, intimida-lha, e depois apresenta-nos uma múmia moralmente seca, um meio louco, como obra da correção e do arrependimento. ‘Que espécie de correção, hem? Dostoiévski saiu do presídio em 1854, e as 'Memórias' vêm a lume em 1860; de lá para cá, é certo, presídio não mudou tanto. Essa constatação, no entanto, não nos há de desanimar, aliás, penso eu, há de levar-nos, em primeiro lugar, a pregar a sua total reforma, em segundo lugar, a reconhecer o caráter de correção da pena."
Ministro Nilson Naves
STJ - Habeas Corpus Nº 120.353 - SP (2008/0248789-7)
VOTO-VISTA
Brasília, 08/09/2009
Fonte: STJ
Nenhum comentário:
Postar um comentário