terça-feira, 11 de março de 2008

BRASIL, PENAS E PRISÕES: AMONTOADOS COMO GADO. ALIMENTADOS COMO PORCOS.

Violência contra o povo

Penitenciárias e Estado criminoso

Ana Lúcia Nunes

Nesta oportunidade, Dr. Nilo Batista, advogado criminalista, professor de Direito penal da UERJ e presidente do Instituto Carioca de Criminologia; e Dr. Augusto Thompson, advogado criminalista, ex-diretor do Departamento do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro, falam à A Nova Democracia .

Presídio Evaristo de Moraes, o Galpão da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro.



As primeiras prisões foram criadas entre os séculos XVI e XVII a pedido do clero e de nobres ingleses. Eles estavam preocupados com a mendicância que se alastrava pelas ruas de Londres. Os mendigos não passavam de camponeses que, não suportando o aprofundamento da exploração a que vinham sendo submetidos na fase decadente do sistema feudal, fugiram para as cidades. As prisões, desde seu início, tinham um único fim: afastar dos olhos da sociedade a miséria que o sistema de exploração garantido pelo Estado proporcionava.

Nilo Batista é contundente ao tratar do tema:

— É uma coisa muito clara; a pena de prisão é inventada para o controle dos pobres, dos escombros sociais do mundo feudal. A penitenciária foi feita para colocar os pobres controlados ali.

As prisões espalharam-se por toda a Europa a fim de conter os grandes contingentes humanos, a parte excedente da força de trabalho, os supérfluos ao sistema. No final do século XVI, com a escassez de mão-de-obra nas cidades, o Estado passa a utilizar com novos propósitos estes trabalhadores que estavam nas prisões à sua disposição. As prisões transformaram-se num local essencial de exploração do trabalho para o capitalismo mercantilista, produzindo mercadorias a baixo custo através dos trabalhos forçados.

As altas taxas do crescimento da força de trabalho européia, entre o século XVII e início do XVIII, tornaram o trabalho carcerário desnecessário. Havia uma grande massa de homens e mulheres destituídos de tal forma dos meios de produção, que já se submetiam a trabalhar pelo mínimo necessário à sobrevivência miserável. Cessados os investimentos estatais, as prisões ficavam entregues, praticamente, à própria sorte. A situação dos prisioneiros piorava a cada dia.

Reinserção para exploração

O mito da regeneração, ou na linguagem jurídica moderna, reinserção social do “criminoso”, nasceu com as prisões eclesiásticas destinadas a clérigos rebeldes, que visavam a reforma do indivíduo pelo trabalho, isolamento e oração.

Quando o encarceramento em massa tornou-se necessário para esconder a miséria social causada pelo sistema de exploração, a finalidade ressocializadora da prisão apareceu como um belo verniz para esta cruel instituição. O mito ressocializador ganhou força a partir da Revolução Francesa e continua sendo a mais bela desculpa para a perpetuação, ampliação e aprofundamento das políticas estatais de encarceramento.

Augusto Thompson falou sobre o tema:

— A prisão encontra sua ideologia e se torna a rainha das penas. A ideologia da prisão é que ela tem a capacidade de punir, intimidar e regenerar, o que é contraditório. Para punir você tem que maltratar e para recuperar você tem que tratar bem e não há ninguém que possa ser recuperado através de maus tratos.

Sobre o tema Nilo Batista declarou:

— As ideologias de recuperação são todas utópicas porque a capacidade da prisão ressocializar é uma coisa totalmente desmentida pela pesquisa empírica, é nulo. Ao contrário, o que está provado é que a prisão reproduz o crime.

Os dados do Departamento Penitenciário do estado do Paraná(DEPEN-PR)1 revelam que 76% dos detentos reincidentes não conseguiram trabalho ao sair da prisão; 87% não tiveram acompanhamento de programas governamentais de “reinserção social” e que 32% delinquiu novamente em menos de 6 meses. E não poderia ser diferente. Como uma instituição com as características da prisão pode ressocializar? Tanto pela sua origem quanto pelas formas que tomou atualmente a prisão, como um dos aparatos de repressão do atual modo de produção, não pode e não tem o intuito de “reintegrar” ninguém à sociedade.

Outro aspecto fundamental é que a parcela da sociedade que passa a delinquir, só o faz porque já foi arrastada ao subemprego e ao desemprego mesmo, numa longa degradação da condição material de existência — além do mais, oficialmente marginalizada pelo Estado.

A pobreza e a miséria, por si apenas, não formam o bandido. Essa expulsão contínua das fileiras do proletariado (o desemprego estrutural) acaba por produzir uma classe (o lumpemproletariado) que finalmente sobrevive das atividades marginais, da mendicância, do roubo, do tráfico varejista de drogas ilícitas, do rufianismo e da sua própria prostituição.

Os elementos que compõem essa classe tornam-se desclassificados da sociedade burguesa. Tampouco são consequentes nas suas reivindicações.

Porém, não formam exatamente um contingente de “excluídos”, como anuncia a sociologia dos magnatas ianques e do fascismo em geral. Pelo contrário, eles estão incluídos no sistema e servem a ele. As classes dominantes, quando necessitam, chegam a fazer uso dessa classe, lançando-a contra o proletariado, o semiproletariado e o campesinato propriamente.

Loïc Wacquant2, em conferência realizada no Instituto Carioca de Criminologia, em 30 de setembro de 2005, esclareceu como, ao adentrar nas prisões, os explorados tornam-se mais pobres ainda:

— As prisões são principalmente instituições para pobres. A maioria dos prisioneiros vem da classe trabalhadora e ao passar pela prisão eles empobrecem mais ainda. A porcentagem dos que entram sem trabalho é menor que a dos que saem sem trabalho. Quando saem, eles estão numa posição econômica mais marginal do que quando entraram. Também sabemos que o impacto negativo da prisão não se limita aos prisioneiros, mas atinge sua família e seus vizinhos. Então, esse argumento de que o sistema penal ajuda a resolver problemas de instabilidade social não é correto, ao contrário, cria mais instabilidade social nas classes mais pobres.

As pesquisas realizadas pelo DEPEN-PR confirmam as alegações de Loïc Wacquant, mostrando que apenas 12% dos detentos estavam empregados à época do delito, enquanto 45% estavam desempregados e 35% sub-empregados. Ao sair do sistema prisional a situação de desemprego agravou-se consideravelmente. Como já foi dito, 76% não conseguiram nenhum tipo de trabalho.

A embromação

O discurso dominante hoje, é a da necessidade de uma reforma do sistema penal. Eles querem fazer a “boa prisão” e a “boa polícia”, como se estes dois instrumentos do aparelho repressor do Estado brasileiro não cumprissem seus papéis. É o que confirma Nilo Batista:

— A tendência que predomina hoje, é dizer que a penitenciária tem que ser pintada, a alimentação tem que ser melhor, o que não deixa de ser verdade. Mas a questão criminal é colocada somente nos termos de vamos fazer a boa penitenciária, vamos fazer a boa polícia.

Se o Estado não proporciona à população melhores condições de vida, salários condignos, garantias trabalhistas e previdenciárias etc. — permitindo que a miséria e a insegurança espalhem-se pela sociedade e adentre o lar das famílias brasileiras —, fatalmente ele terá que investir no sistema penal, o que faz de muito bom grado, confessam suas campanhas publicitárias.

O sistema penal punitivo tem sido eficiente naquilo que é o seu propósito: prender e consumir pessoas. Somente a polícia do estado de São Paulo, segundo os dados da sua Polícia Civil, prendeu 35.856 pessoas, no segundo trimestre de 2005.

As penitenciárias nunca tiveram tantos encarcerados. Os dados divulgados pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)3 revelam com clareza a “eficiência”: são cerca de 10 mil novos encarcerados por mês. A população encarcerada do Brasil, em dezembro de 2004, era de 336.358 pessoas. Nesta lógica, o estado de São Paulo é o campeão em eficiência:132.130 presos, em dezembro de 2004!

A projeção de Nilo Batista e Augusto Thompson é de que em 2007, esse número chegue a 500 mil.

Os índices crescentes de criminalidade divulgados pelo monopólio dos meios de comunicação vêm sempre acompanhados de um clamor pelo endurecimento no “combate ao crime”, por mais prisões, mais penitenciárias, mais policiais, enfim, mais repressão. O Estado responde ao crescimento dos índices despejando dinheiro em compra de armas e atividades diversas que permitem encarcerar a maior quantidade possível do que chama de delinquentes e de criminosos.

As penitenciárias são construídas com o propósito de superlotação: quanto mais se prender melhor, enquanto o próprio Estado brasileiro se exime até mesmo da responsabilidade de executar as políticas sociais básicas, praticamente fazendo desaparecer todas elas, exercendo, em seu lugar, a grande propaganda fascista que a tudo criminaliza.

O crime é a palavra que mais alimenta o vocabulário das classes dominantes e exploradoras. Os seus veículos de “comunicação” dedicam inúmeras páginas de jornais aos assassinatos, assaltos etc. Suas TVs se deliciam com programas específicos, que crescem em quantidade e terror, com as mais detalhadas e chocantes cenas de brutalidade. Contam crimes passados, se esmerando em fantasiar situações. Se lhes faltam histórias, servem as da polícia ianque (como não!). E estão sempre prestes a defender as versões dos batalhões assassinos que disparam contra o povo nas favelas ou nos extermínios periódicos de presos rebelados (que nunca têm razão), sempre acusados de promoverem sua autodestruição por pertencerem a facções criminosas rivais.

Por que os crimes não cessam, se o Estado brasileiro tem investido tanto no sistema penal? Somente o governo de São Paulo, por exemplo, nos últimos seis anos, dobrou o número de presídios: hoje são 137 unidades prisionais.

Redutos da miséria

Um rico só se torna bandido quando contraria as leis dos grandes exploradores, porém de tal forma que não deseje contorná-las em acordos. Por exemplo: o magnata pode roubar e cometer o roubo que a humanidade considera o mais degradante, que é a exploração do trabalho humano — o que só ele pode fazer porque tem capital. Como a lei é a vontade de sua classe, qualquer transgressão a ela é passível de alguma penalidade, desde que irrelevante, nas formas de multa, devolução para outro ricaço do patrimônio alheio etc. Já os explorados não têm como se esquivar das leis drásticas, porque todas elas, na essência, são elaboradas contra o povo explorado e oprimido.

Quando a pobreza exorbita os limites desejáveis do exército de reserva de mão-de-obra, ela se torna uma pobreza sem destino, que precisa ser neutralizada, isolada e destituída do direito de viver. Ela se torna uma pobreza que deve ser encarcerada. Atualmente o Brasil tem em torno de 180 milhões de habitantes, 43% são miseráveis4; 380 mil estão nas penitenciárias. Nilo Batista, diante da indiscutível população miserável das penitenciárias, afirma:

— O projeto habitacional para a pobreza é construir penitenciárias e mais penitenciárias.

Não é verdade que a causa da criminalidade seja a pobreza. O que está acontecendo é uma criminalização da pobreza, que faz com que o alvo do combate ao crime seja direcionado aos pobres. Mas a pobreza não tem uma causa natural, como quer fazer crer as classes dominantes, seus partidos políticos, clero e demais instituições. Ela existe e evolui para a miséria porque a exploração do homem pelo homem chegou às últimas consequências.

A criminalização não ocorre apenas com a pobreza em si, mas com tudo o que ela representa, principalmente com o trabalho — a condição primeira e fundamental da existência humana, que inclui três momentos:

1. a atividade humana dirigida a um fim determinado;

2. o objeto do trabalho e

3. os instrumentos de produção com que o homem atua sobre o objeto dado — que corresponde às relações de produção sociais de sua época.

Quanto mais se aprofunda a exploração e, consequentemente, a miséria, mais se aproximam os dias da revolta do povo. Por isso, a miséria é criminalizada e se oculta a sua causa. A criminalidade, o aspecto inferior da grande violência — e que de fato necessita ser combatida — é hipocritamente apresentada como sendo a principal (e toda a) violência.

Para Loïc Wacquant as penitenciarias são “campos de concentração para pobres”, por encararem, em sua maioria, homens jovens e pobres — 99,9% de pobres.

O capital, na sua fase imperialista manifesta uma incontornável necessidade de criminalizar todas as formas de sobrevivência da classe trabalhadora. O camelô, por exemplo, exerce atividades que precisam ser criminalizadas pelo imperialismo porque, uma máquina (instrumento de produção) que reproduz CDs, DVDs etc, vendida no varejo, quando cumpre a sua finalidade, a comercialização desse produto se torna crime, visto que só ao monopólio se permite o direito de reproduzir CDs e DVDs.

Como o imperialismo resolve a contradição que ele mesmo cria? Simples, a miséria é tanta que muitos se atreverão a vender algo proibido, o que lhe trará lucros e cadeia para os pobres. Assim ele resolve as contradições aparentemente insolúveis no plano da sua economia e da sua moral.

Privatizar, solução nazista(5)

A transferência da administração das penitenciárias para a órbita privada tem sido apontada como uma das soluções para o sistema penitenciário brasileiro. O governo semifeudal e semicolonial brasileiro não perdeu tempo, tendo inclusive projeto de lei e indicação do Ministério da Justiça visando regulamentar a instalação das penitenciárias privadas no país, à maneira da “solução” encontrada no USA e na Inglaterra.

Em tempo de capitalismo agonizante, o cárcere constitui um dos mais prósperos vetores a impulsionar a dinâmica instaurada pelo imperialismo. A prisão aparece como um excelente negócio para o Estado, em decorrência das atividades lucrativas que ele propicia aos capitalistas ligados à máquina estatal.

Analisando a possibilidade da implantação das penitenciárias privadas no país e sua ligação com a propaganda veiculada pelo monopólio dos meios de comunicação, Nilo Batista afirma:

— Eu tenho o direito de pensar que quando a Globo, o grupo Roberto Marinho, começa a falar e a mostrar o problema das penitenciarias não é por outro motivo que não seja o de propagandear a idéia das penitenciarias privadas, que inclusive suas ações integram o índice Nasdaq6 no USA. É um bom negócio, em franca expansão.

Duas unidades da federação estão “experimentando” esse modelo de gestão. O Paraná montou a Penitenciária Industrial de Guarapuava, onde todos os presos têm que trabalhar por 75% de um salário mínimo. Os salários baixos possibilitam lucros altíssimos. Segundo as informações obtidas no DEPEN-PR todos os serviços são efetuados pela empresa, exceto a custódia dos presos que ainda está a cargo do Estado.

O Ceará implantou o modelo em três unidades prisionais: Cariri, Sobral e no Instituto Paulo Oliveira. Corre uma ação judicial contra o estado para investigar a ausência de processo licitatório, as irregularidades cometidas pela empresa em sua gestão, a própria legalidade da terceirização e o superfaturamento nos valores praticados pela empresa.

As indústrias montadas dentro das prisões, principalmente a legislação trabalhista que ali vigora, são o sonho de qualquer capitalista. Não há encargos trabalhistas; o salário máximo, independente da função, é o mínimo legal; não há greves, férias; os prisioneiros não podem faltar ao trabalho, se faltam são encarcerados em celas de isolamento; e o Estado ainda lhes paga por isso.

Porque superlotação

Unidades concentradoras da Polinter do Rio de Janeiro. Amontoados como gado. Alimentados como porcos.



O Brasil possui hoje mais de 500 penitenciárias. Não é novidade que na grande maioria destas unidades as condições de sobrevivência são praticamente inexistentes. Os problemas saltam aos olhos e a ilegalidade é companhia fiel de qualquer prisão. É o que nos diz Augusto Thompson:

— A única penitenciária legal no estado do Rio de Janeiro é a Lemos Brito, que tem celas individuais, com cama, banheiro, mesa, oficinas. O absurdo é que os novos estabelecimentos que estão sendo construídos já planejam alojamentos coletivos, o planejamento já é ilegal, daí você pode imaginar como são as coisas no sistema penitenciário.

O relatório divulgado pelo Departamento Penitenciário Nacional indica um déficit de cerca de 150 mil vagas nas penitenciárias brasileiras. O que ocorre, na maioria da vezes, é que por esta situação calamitosa os presos sejam amontoados em unidades que deveriam ser provisórias. É o caso da Polinter, no Rio de Janeiro, como ilustrou Augusto Thompson:

— O preso entra pela Secretaria de Segurança, que dispõe dos xadrezes das delegacias e de um grande xadrezão que se chama Polinter, que deveria ser provisório, mas como a secretaria penitenciária não dispõe de vagas, eles, vão ficando acumulados na Polinter. Da Polinter eles são enviados ao Presídio Ary Franco. Necessariamente o preso começa seu ingresso no sistema penitenciário do Rio de Janeiro pela Polinter e lá ele fica 3 meses, 6 meses, 2 anos. Quando ele vai para a penitenciária, ele já sofreu uma degradação e uma transformação violenta na sua personalidade.

A quase totalidade das unidades prisionais do país apresenta superpopulação. O relatório do DEPEN, acima citado, revela que apenas dois estados brasileiros ainda poderiam oferecer vagas no final de 2004. O Piauí poderia oferecer 9 vagas e Rondônia, 50...

De acordo com o Quadro, a maioria dos estados têm um número de presos muito superior ao número de vagas, chegando a encarcerar quase quatro vezes acima da capacidade máxima, como no Mato Grosso do Sul.

A situação não é diferente se analisarmos uma unidade isolada como a Polinter/Centro no Rio de Janeiro. O Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Cândido Mendes, realizou visitas à algumas unidades prisionais do estado, entre 2002 e 20047. Sobre esta unidade, constatou:“(...) com capacidade para 400 homens, ela abriga hoje cerca de 1500, que se comprimem formando um bloco compacto de corpos.(...) As condições são absolutamente inadequadas para a existência da vida humana, num espaço físico em torno de 25 metros quadrados estão amontoados de 100 a 130 presos...”.

Tudo ilegal

Ao adentrar no sistema penitenciário o novo encarcerado começa a ser submetido pelo Estado ao rol de ilegalidades que marcará toda a sua permanência neste sistema. Legalmente o preso não pode levar nada para dentro da penitenciária, nem sua própria roupa, mas a situação real é bastante diversa, Augusto Thompson tratou de advertir:

— O estabelecimento prisional é que tem a responsabilidade de fornecer uniforme, material de higiene. Só que o estabelecimento não fornece, o preso fica com a roupa que ele entrar e com o que as visitas levarem. Tudo o que os presos têm são as visitas que levam. Então, quem não recebe visita não tem nada; pode roubar de quem tem, é uma possibilidade frequente, é até um estado de necessidade.”

As celas constituem um aglomerado de ilegalidades e de um aviltamento total à vida humana. Os detentos da Polinter têm que fazer uma espécie de rodízio de sono, pois não há espaço para que todos se deitem ao mesmo tempo. Não existem camas, nem mesmo colchonetes; as celas ocupam o subsolo, são mal ventiladas e não há luz natural; também não é difícil encontrar fios elétricos expostos e infiltrações.

Num local como esse, é difícil imaginar que possa existir alguma condição de manter a higiene pessoal. Talvez este seja o intuito, pois não há distribuição de material de limpeza nem manutenção dos banheiros e da rede de esgoto. Segundo os relatórios do CESeC sobre o Presídio Evaristo de Moraes, “(...) Nessa matufa não há celas individuais, não há lugar privativo, e no interior das celas, ao fundo, se localizam os banheiros, com um ou dois boxes sem portas, guarnecidos por vasos turcos ou “bois”.(...) Tão encangalhado anda o sistema de esgoto (já não comportando a atual lotação da cadeia), que se tornaram comuns entupimentos e refluxos de excrementos para o interior das celas...”.

As doenças proliferam-se rapidamente. A assistência à saúde é praticamente inexistente. O ambiente úmido, as condições sanitárias e higiênicas muito precárias e o fato de muitos presos serem submetidos a se acomodar no chão frio, transforma-os em uma população de alto risco para o desenvolvimento de problemas de saúde. Augusto Thompson afirmou:

— As doenças mais frequentes são a AIDS e a tuberculose, mas as de pele todos os presos têm.

A comida é outro fator que contribui para agravar a saúde dos internos. Atualmente, a maioria dos presídios não têm cantina, a alimentação é feita por empresas terceirizadas. Além de ser de péssima qualidade, as refeições são insuficientes. Vejamos o que é relatado pelo CESeC:

“A Polinter não oferece nenhuma assistência garantida pela Lei de Execução Penal. A única assistência recebida é a comida que consiste em pão com café ou refresco pela manhã e à tarde, e almoço. Não há jantar .”

Familiares criminalizados

E as ilegalidades não param por aí.

A maioria dos presos, por ser pobre, depende da assistência jurídica gratuita, que é praticamente inexistente, conforme o relato de Augusto Thompson:

— Esse tipo de assistência é irrisória. Os defensores públicos são pouquíssimos e ganham pouco para trabalharem com mais de 500 processos. Como eles vão acompanhar todos os presos? Então, é frequente que um réu esteja na cadeia quando ele poderia estar em liberdade condicional, no semi-aberto ou obter outro benefício. Para ter direito, ele tem que reivindicar e isto quem faz é o advogado, mas como nós já dissemos a assistência jurídica é insuficiente.

Os familiares e amigos dos presos também sofrem vários tipos de agressão. O procedimento de revista é tão humilhante que muitos detentos preferem não receber visitas, é o que nos diz Augusto Thompson:

— Os visitantes são submetidos a uma revista rigorosa, tudo é revistado: comida, roupas, utensílios de limpeza e higiene. A comida é praticamente destruída. As mulheres são submetidas a situações degradantes. Muitas vezes elas têm que se despir e agachar várias vezes em cima de um espelho para que os agentes tenham certeza de que elas não levam nada na vagina ou no ânus. Quando isto não basta, elas são submetidas à prova do toque vaginal e anal.

Ócio e torturas

A maioria dos encarcerados no Brasil não têm qualquer ocupação. O acesso à educação, à atividade laboral e esportiva, tudo lhes é negado. Segundo Augusto Thompson isso ocorre por duas causas:

— A maioria dos presos não tem qualquer ocupação porque está em presídios provisórios, onde nem há estrutura para isso, ou porque os administradores da penitenciária querem apenas manter as metas de segurança e disciplina. Aí eles dizem que não podem deixar os presos sair da celas porque “há facções rivais entre eles”.

Quadro
Estado Vagas População carcerária Relação população carcerária/ vagas
Amapá
638
1.196
1,88
Bahia
4.726
10.484
2,3
Maranhão
1.930
4.155
2,16
Mato Grosso do Sul
2.772
10.066
3,7
Minas Gerais
7.832
24.602
3,15
Paraná
6.989
15.519
2,23
Santa Catarina
5.899
9.103
1,55
São Paulo
76.588
132.130
1,73
Sergipe
969
2.256
2,33
Piauí
2.105
2.094
0,99
Rondônia
4.075
4.025
0,98

Os presos permanecem encarcerados em suas celas na maior parte do tempo. Só podem sair para tomar banho de sol e receber visitas, o que ocorre uma ou duas vezes por semana.

O ócio e o encarceramento total não deixam de ser formas de tortura, já que o ser animal tem no movimento algo fundamental a sua integridade física, psíquica e intelectual. Retirar-lhe isso é uma forma brutal e silenciosa de tortura. Mas a prisão também se utiliza das torturas convencionais, bem ao gosto fascista, como revelam os relatórios do CESeC:

“Há informações, também veladas, no Presídio Evaristo de Moraes, sobre maus-tratos praticados por guardas da própria unidade e, também, do SOE — Serviço de Operações Especiais.” Sobre o Presídio Ary Franco, retrata um dos relatórios: (...) “Um dos presos se mantinha sentado no chão, não conseguindo se locomover por problemas na coluna, que, segundo nos deu a entender, fora fruto de espancamento em outra unidade que não quis revelar”.

“Pode-se afirmar que estes presos estão vivendo uma situação de tortura física e mental. A intensidade da miséria humana imposta a esses detentos é inominável e indescritível. É possível estimar que a população de presos da Polinter/Centro tenha um risco de morte sete vezes mais alto do que o da população de homens ‘livres' entre 25 e 50 anos do estado do Rio de Janeiro”.

Esta é a declaração que finaliza o relatório da médica sanitarista Dina Czeresnia que nos revela o grau de perversidade que atingiu o Estado brasileiro no tratamento aos encarcerados, porque sendo o Estado o responsável pela custódia dos presos, obrigatoriamente ele tem que oferecer-lhes as mínimas condições de sobrevivência. Por cada detento que seja ou venha a se tornar tuberculoso, aidético, doente mental,como a rigor acontece, a responsabilidade é única e exclusiva do Estado, que não só deixou de averiguar a doença como permitiu a sua proliferação, além do desencadeamento da tortura física e mental a que eles estão submetidos cotidianamente.

Não respeitam nada

Fácil deduzir que todas as prisões, de alguma forma, ferem os direitos do povo. Além disso ferem as próprias normas e convenções internacionais de que os próprios Estados burgueses são signatários. Não respeitando suas próprias leis, seria demais esperar que respeitassem a dignidade da vida humana.

— A prisão é um desrespeito à lei, ela viola de forma massiva os direitos fundamentais — afirma taxativo o Dr. Loic Wacquant

Nilo Batista, ao falar deste assunto, toma a hedionda Guantânamo como exemplo:

— A prisão mais importante do mundo é Guantânamo, e é um lugar sem lei. A discussão é se os presos têm direito à lei; se não tem lei, nós não podemos falar de uma relação jurídica, mas também não é guerra porque se fosse teria o direito humanitário, as convenções de Haia e de Genebra que garantem aos prisioneiros de guerra certos direitos. Então, o que é aquilo? Aquilo é o poder punitivo em estado bruto, é a expressão do que é a verdade penal do imperialismo na sua fase final.

Rebelar-se é justo

Toda essa situação está fora dos noticiários oficiais. O monopólio dos meios de comunicação não revela as condições a que os presos estão submetidos. Aos noticiários só chegam as cenas das rebeliões, mostradas como meras disputas entre facções, porque — na versão oficial — não há razão para se rebelar; e tudo está tão correto que “os presos nada devem reivindicar”.

Nilo Batista é categórico ao falar do assunto:

— Os presos, devido às condições totalmente ilegais a que são submetidos, têm o direito à resistência. Eles nunca são ouvidos. Para que isso ocorra, eles têm que comprar um bilhete de passagem que consiste numa execução em tempo real, um incêndio etc. É o preço que eles pagam. Se não morre alguém em frente às câmeras, eles não falam.

Augusto Thompson explica o porquê das rebeliões:

— O preso quer condições mínimas de sobrevivência e quando um diretor imprime sua forma de administrar sem respeitar os presos ali, eles se rebelam. O ser humano, em geral, suporta a opressão até um certo ponto. A partir daí ele se rebela. E nas condições a que os presos estão submetidos, que são totalmente ilegais, opressoras, é justo rebelar-se. É natural, é perfeitamente compreensível.


1. Dados disponíveis no sítio www.pr.gov.br/depen
2. Loïc Wacquant é sociólogo e professor na University of California at Berkeley, EUA e no Collège de France, França.
3. Dados disponíveis em www.mj.gov.br/Depen/ pdf/diagnostico_depen.pdf.
4. Dados do Centro de políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas.
5. Vide AND, edição 20, pág. 10 e 11 (A Empresa modelo nazista) e edição 22, pág. 17 Memórias de um sobrevivente.
6. O índice Nasdaq reúne as ações de empresas de novas tecnologias na Bolsa de Nova York.
7. Relatório elaborado pelo Centro de estudos em segurança e cidadania da Universidade Cândido Mendes do Rio de Janeiro, disponível no sítio www.ucamcesec.com.br.

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