ENTREVISTA DE VICTÓRIA GRABOIS CONCEDIDA AO IBASE
Victória Grabois – professora aposentada, pesquisadora do Núcleo de Estudo de Políticas Públicas dos Direitos Humanos da UFRJ e vice-presidenta do Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro – concedeu entrevista ao Ibase sobre a abertura dos arquivos confidenciais relativos à Guerrilha do Araguaia, movimento armado de esquerda eliminado pelas Forças Armadas entre 1972 e 1975. O governo perdeu recurso no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a decisão tomada pela Justiça Federal de Brasília, em 2003, de democratizar as informações. Victoria perdeu o pai, o irmão e o marido no conflito.
Ibase – Por que a Advocacia Geral da União entrou com recurso contra a decisão da juíza que ordenou a abertura dos arquivos de inquérito sobre a localização dos corpos dos(as) guerrilheiros(as) do Araguaia? Victória Grabois – Em 2003, o Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro e da Bahia, e a comissão de familiares foram a Brasília e o governo não tratou do assunto. Estivemos com o ministro da Justiça, Márcio Tomás Bastos, o advogado Geral da União, o secretário Nacional dos Direitos Humanos e o ministro da Casa Civil, José Dirceu. Eles argumentaram que a juíza pedia a localização dos corpos e a circunstância das mortes. Essa foi a desculpa do governo para entrar com o recurso. É claro que não queremos que os corpos sejam localizados, e sim os restos mortais. Enfim, nos digam o motivo das mortes: como morreram, onde, quem matou e em que lugar os restos mortais estão enterrados. O governo Lula não teve coragem de assumir uma decisão da Justiça. Já que os três poderes são autônomos, ele não quis acatar uma decisão do Judiciário. Teve grande chance de abrir os arquivos, e não quis.
Ibase – Qual a importância dos arquivos do Araguaia? Victória Grabois – A importância é que nós vamos, possivelmente, conhecer a verdade. Só temos informações dos moradores da região, dos guerrilheiros que sobreviveram. O povo brasileiro não conhece o passado recente do Brasil. A violência neste país, especialmente no Rio de Janeiro, se deve a vários fatores, mas um deles é a impunidade desde a época da ditadura militar. Isso não pode mais permanecer. As pessoas precisam ser responsabilizadas pelos seus atos. O povo brasileiro precisa conhecer o que realmente aconteceu, o que foi a Guerrilha do Araguaia. Estive na região do Araguaia duas vezes. A primeira em 1980. Eles prendiam populações inteiras. Na época da guerrilha, tinha uma região chamada Palestina, havia 700 homens e todos foram presos. E como eles não tinham onde colocar os prisioneiros, utilizaram as táticas do Vietnã, os chamados “buracos do Vietnã”. Eram buracos onde jogavam os homens em cima de latinhas de comida que eram doadas pelo Exército americano e fechavam o buraco com arame farpado. Houve três campanhas por parte dos militares. Na primeira e na segunda, prendiam os guerrilheiros, torturavam, mas os mantinham vivos. Na terceira campanha, a ordem do Exército era matá-los, a maioria sob tortura. As suas cabeças foram decapitadas, as mãos foram cortadas e enviadas para Brasília para reconhecimento. A gente fala tanto que o povo brasileiro não tem memória, o governo não conta a história. Até hoje, a Guerra do Paraguai é um segredo de Estado. Ninguém sabe o que aconteceu. O Exército brasileiro sempre foi considerado o grande herói e sabemos que eles trucidaram grande parte da população do Paraguai, matando mulheres, crianças e velhos. É um país da impunidade.
Ibase – Qual a relação do movimento Tortura Nunca Mais com a luta pela abertura de arquivos? Victória Grabois – A luta vem desde a fundação do grupo. Só vamos conhecer a verdade com a abertura dos arquivos. Até agora, as ações e o ônus das provas ficaram a cargo de familiares e grupos de direitos humanos. A Lei 9.140/1995, na qual o governo reconheceu a morte de 136 desaparecidos, foi possível graças a um arquivo encontrado na Marinha. No caso do Araguaia, era arquivo da Marinha. Há também arquivos do Exército e da Aeronáutica.
Ibase – As famílias receberam alguma indenização do governo? Victória Grabois – Há famílias que receberam reparação por terem provas documentais. Outras não tinham provas e não receberam, apesar de serem parentes de presos que estavam no mesmo local e hora dos que receberam a reparação. É muito cruel. O principal é contarmos a história. Quando a família faz um requerimento, está confeccionando um documento histórico que ficará vivo. A ordem do governo é que todos os dossiês escritos pelas famílias fiquem arquivados no Arquivo Nacional. É uma forma da gente contar a história. Mas é uma forma perversa, porque o ônus da prova cabe a nós. Nós é que temos que provar onde a pessoa foi presa e torturada. A abertura dos arquivos é a luta do Grupo Tortura Nunca Mais desde sua fundação. E agora, com essa questão da guerrilha – passo histórico importantíssimo –, pela primeira vez, o Judiciário obrigou o Executivo a fornecer os documentos. A luta se torna mais efetiva.
Ibase – Com a abertura dos arquivos, existe a possibilidade de os culpados serem punidos? Victória Grabois – Temos que abrir os arquivos para conhecer a história. Há uma comissão especial para isso. E a maioria dos países da América Latina não tem comissões especiais, mas comissões da verdade. Por exemplo, o ex-presidente da Argentina, Néstor Kirchner, suspendeu lei na qual os responsáveis pelas vítimas com mais de 80 anos não iriam responder aos crimes porque recebiam ordens do Estado. Na América Latina, vários militares foram processados e condenados. O Brasil é o país mais atrasado no que diz respeito à responsabilização dos militares. Precisam responsabilizar os que cometeram atrocidades contra os opositores do regime da ditadura.
Ibase – O jornal O Globo, em outubro de 2007, publicou matéria a respeito da decisão da Justiça de que a União indenizasse as filhas de Vinícius de Moraes. Houve opiniões contrárias por parte de leitores(as), que se manifestaram no próprio jornal... Victória Grabois – O Vinícius também foi perseguido pela ditadura. Então, não podemos escolher A, B ou C. É uma questão de direitos. Se a lei existe, ela tem que ser cumprida, tem que ser respeitada. Quero deixar claro que os parentes das vítimas foram muito mal-indenizados. A quantia é simbólica. Muitas mães de desaparecidos nem receberam. A minha mãe foi uma pessoa que não recebeu. Não tem dinheiro que pague por essa vida, mas é uma forma de responsabilizar o governo. Sempre privilegiaram a classe média em detrimento da classe operária. As pessoas precisam contratar advogados para receber os seus direitos. E, como sempre, a classe média tem recursos. A classe operária não tem, então, vai sempre para o final da fila. Essa é a minha ressalva. A classe média está sendo beneficiada na frente da classe operária. Todas as classes têm que ser beneficiadas.
Fonte.
Ibase – Por que a Advocacia Geral da União entrou com recurso contra a decisão da juíza que ordenou a abertura dos arquivos de inquérito sobre a localização dos corpos dos(as) guerrilheiros(as) do Araguaia? Victória Grabois – Em 2003, o Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro e da Bahia, e a comissão de familiares foram a Brasília e o governo não tratou do assunto. Estivemos com o ministro da Justiça, Márcio Tomás Bastos, o advogado Geral da União, o secretário Nacional dos Direitos Humanos e o ministro da Casa Civil, José Dirceu. Eles argumentaram que a juíza pedia a localização dos corpos e a circunstância das mortes. Essa foi a desculpa do governo para entrar com o recurso. É claro que não queremos que os corpos sejam localizados, e sim os restos mortais. Enfim, nos digam o motivo das mortes: como morreram, onde, quem matou e em que lugar os restos mortais estão enterrados. O governo Lula não teve coragem de assumir uma decisão da Justiça. Já que os três poderes são autônomos, ele não quis acatar uma decisão do Judiciário. Teve grande chance de abrir os arquivos, e não quis.
Ibase – Qual a importância dos arquivos do Araguaia? Victória Grabois – A importância é que nós vamos, possivelmente, conhecer a verdade. Só temos informações dos moradores da região, dos guerrilheiros que sobreviveram. O povo brasileiro não conhece o passado recente do Brasil. A violência neste país, especialmente no Rio de Janeiro, se deve a vários fatores, mas um deles é a impunidade desde a época da ditadura militar. Isso não pode mais permanecer. As pessoas precisam ser responsabilizadas pelos seus atos. O povo brasileiro precisa conhecer o que realmente aconteceu, o que foi a Guerrilha do Araguaia. Estive na região do Araguaia duas vezes. A primeira em 1980. Eles prendiam populações inteiras. Na época da guerrilha, tinha uma região chamada Palestina, havia 700 homens e todos foram presos. E como eles não tinham onde colocar os prisioneiros, utilizaram as táticas do Vietnã, os chamados “buracos do Vietnã”. Eram buracos onde jogavam os homens em cima de latinhas de comida que eram doadas pelo Exército americano e fechavam o buraco com arame farpado. Houve três campanhas por parte dos militares. Na primeira e na segunda, prendiam os guerrilheiros, torturavam, mas os mantinham vivos. Na terceira campanha, a ordem do Exército era matá-los, a maioria sob tortura. As suas cabeças foram decapitadas, as mãos foram cortadas e enviadas para Brasília para reconhecimento. A gente fala tanto que o povo brasileiro não tem memória, o governo não conta a história. Até hoje, a Guerra do Paraguai é um segredo de Estado. Ninguém sabe o que aconteceu. O Exército brasileiro sempre foi considerado o grande herói e sabemos que eles trucidaram grande parte da população do Paraguai, matando mulheres, crianças e velhos. É um país da impunidade.
Ibase – Qual a relação do movimento Tortura Nunca Mais com a luta pela abertura de arquivos? Victória Grabois – A luta vem desde a fundação do grupo. Só vamos conhecer a verdade com a abertura dos arquivos. Até agora, as ações e o ônus das provas ficaram a cargo de familiares e grupos de direitos humanos. A Lei 9.140/1995, na qual o governo reconheceu a morte de 136 desaparecidos, foi possível graças a um arquivo encontrado na Marinha. No caso do Araguaia, era arquivo da Marinha. Há também arquivos do Exército e da Aeronáutica.
Ibase – As famílias receberam alguma indenização do governo? Victória Grabois – Há famílias que receberam reparação por terem provas documentais. Outras não tinham provas e não receberam, apesar de serem parentes de presos que estavam no mesmo local e hora dos que receberam a reparação. É muito cruel. O principal é contarmos a história. Quando a família faz um requerimento, está confeccionando um documento histórico que ficará vivo. A ordem do governo é que todos os dossiês escritos pelas famílias fiquem arquivados no Arquivo Nacional. É uma forma da gente contar a história. Mas é uma forma perversa, porque o ônus da prova cabe a nós. Nós é que temos que provar onde a pessoa foi presa e torturada. A abertura dos arquivos é a luta do Grupo Tortura Nunca Mais desde sua fundação. E agora, com essa questão da guerrilha – passo histórico importantíssimo –, pela primeira vez, o Judiciário obrigou o Executivo a fornecer os documentos. A luta se torna mais efetiva.
Ibase – Com a abertura dos arquivos, existe a possibilidade de os culpados serem punidos? Victória Grabois – Temos que abrir os arquivos para conhecer a história. Há uma comissão especial para isso. E a maioria dos países da América Latina não tem comissões especiais, mas comissões da verdade. Por exemplo, o ex-presidente da Argentina, Néstor Kirchner, suspendeu lei na qual os responsáveis pelas vítimas com mais de 80 anos não iriam responder aos crimes porque recebiam ordens do Estado. Na América Latina, vários militares foram processados e condenados. O Brasil é o país mais atrasado no que diz respeito à responsabilização dos militares. Precisam responsabilizar os que cometeram atrocidades contra os opositores do regime da ditadura.
Ibase – O jornal O Globo, em outubro de 2007, publicou matéria a respeito da decisão da Justiça de que a União indenizasse as filhas de Vinícius de Moraes. Houve opiniões contrárias por parte de leitores(as), que se manifestaram no próprio jornal... Victória Grabois – O Vinícius também foi perseguido pela ditadura. Então, não podemos escolher A, B ou C. É uma questão de direitos. Se a lei existe, ela tem que ser cumprida, tem que ser respeitada. Quero deixar claro que os parentes das vítimas foram muito mal-indenizados. A quantia é simbólica. Muitas mães de desaparecidos nem receberam. A minha mãe foi uma pessoa que não recebeu. Não tem dinheiro que pague por essa vida, mas é uma forma de responsabilizar o governo. Sempre privilegiaram a classe média em detrimento da classe operária. As pessoas precisam contratar advogados para receber os seus direitos. E, como sempre, a classe média tem recursos. A classe operária não tem, então, vai sempre para o final da fila. Essa é a minha ressalva. A classe média está sendo beneficiada na frente da classe operária. Todas as classes têm que ser beneficiadas.
Fonte.
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