O filme “Tropa de Elite” mostrou e divulgou o argumento chavão de que o consumo de drogas é o responsável pelo tráfico e, em última instância, podemos botar na conta do playboy que fuma um baseado ou manda umas gramas de pó nariz adentro todas as mortes nos morros do Rio de Janeiro ou na periferia de uma grande cidade. Não basta o consumidor estar já nas margens da sociedade, ele é um assassino, segundo o mantra repetido à exaustão.
Esta culpa pelas AKs-47 não resiste a um mínimo de reflexão. É puro conservadorismo daqueles que não entendem ou mesmo suportam prazeres alheios. Isso fica muito claro nas recentes discussões sobre uso medicinal da maconha, que encontra defensores dentre os detratores do seu uso lúdico. Ancorado na autoridade médica, o uso de drogas é permitido; para simples recreação, a mesma droga é banida, é a encarnação do mal.
O problema, assim exposto, não é o uso delas, mas o “porquê” do uso. Se o uso é recreativo então a culpa pela violência urbana, toda ela, é do consumidor afinal “é ele quem sustenta o tráfico”.
É bastante óbvio que quem sustenta o tráfico, entendido como o comércio de uma substância ilegal, é a proibição e, como mostrarei em próximo texto, quem sustenta a proibição é o conservadorismo. Assim, se tem algum culpado pelas mortes, pelas armas, pelas balas perdidas que alvejam pais de família, são aqueles que defendem a proibição.
Como disse na coluna anterior, até o século 19 era liberado o consumo de qualquer substância, de maconha ao ópio, sem que o Estado interferisse nesta esfera de escolha. Mas no fim daquele século começaram a aparecer nos EUA grupos puritanos que associavam o consumo do álcool a lascívia e falta de freios morais dos indivíduos.
Esses grupos puritanos conseguiram, em pouco mais de 30 anos, levar suas reivindicações ao Congresso dos EUA, e em 1919 foi aprovada a lei que pretendia banir o álcool da boa sociedade estadunidense. Pautada em discussões científicas, de caráter médico, o Estado encontrava a desculpa perfeita para expandir seus poderes sobre o indivíduo e aumentar sua burocracia de controle, seus Eliot Nesses.
Depois de aprovada a “lei seca”, inúmeros cargos e órgãos foram criados para atingir a proposta de proibir e banir a bebida. Como sabemos pelos filmes de Al Capone, das Tommy guns, a proibição foi exitosa, mas não o banimento. Uma imensa estrutura criminosa foi formada, destilarias de fundo de quintal foram criadas, a máfia que controlava a distribuição da bebida se infiltrou no aparato do Estado e a corrupção cresceu exponencialmente. Os crimes, os assassinatos, tomaram Chicago de assalto.
O álcool continuava a ser consumido, só que agora, em nome da saúde pública, as pessoas realmente se contaminavam devido à péssima qualidade das bebidas saídas das destilarias clandestinas.
A partir daí, mesmo com o fracasso retumbante da tentativa do banimento do álcool, a política externa dos EUA levou a cabo o objetivo de expandir o combate às drogas no mundo todo, nas conferencias e congressos dos Organismos Multilaterais, dentre os quais a ONU. Assim, a agenda de proibição das drogas sai da esfera doméstica do EUA e passa a fazer parte da agenda internacional.
O que era comércio vira tráfico, o que era empresa se torna crime internacional associado a uma dezena de outros crimes. Desde o início, já estava desenhado o problema que viria acometer o mundo: a conceituação de “droga” e sua íntima relação à geopolítica mundial. De um lado, o “saber médico”, encarnado nas grandes indústrias da química sediadas no mundo desenvolvido; de outro, os países produtores das drogas ilícitas, quase sempre aqueles que representam um mundo “externo”, países pobres com grandes áreas de cultivo dos insumos necessários à produção das drogas proibidas. Que os próprios EUA fossem, na verdade, sede dos psicoativos legais e produtor de drogas ilícitas, é um fato que merece o proposital esquecimento.
Habilmente, a questão recolocada nestes termos aparece como problema de segurança nacional e, mais que nunca, se torna verdadeira a expressão “guerra às drogas” no seu sentido mais clássico. Há uma identificação de uma ameaça externa ao bom viver das sociedades civilizadas, representada por um inimigo externo que seduz, vicia e corrompe os valores tradicionais.
Está feita a ligação entre consumo-vítima e produção-crime. A partir desse prisma, sob a ótima das relações internacionais, existem os países párias, o “eixo-do-mal”, e a vítima indefesa, sediada em Wall Street ou nas colinas de São Francisco. A política externa dos EUA, livres da ameaça soviética, pode ser reorientada para o combate às drogas, para o combate aos países párias.
A invasão do Panamá e, posteriormente, o Plano Colômbia se encaixam nesta mudança de atitude, neste novo foco da divisão do mundo entre produtor e consumidor. De posse da legitimidade alcançada pelo conceito de saúde pública e de ameaça externa, o mundo passa a ser separado entre os países bons, vítimas, e países maus, que produzem.
Que o narcotráfico seja um dos maiores problemas a serem enfrentados nas relações internacionais, não paira nenhuma dúvida. Que ele gera violência, assassinatos, tráfico de armas e instaura o “terror” nas comunidades, também não se questiona. Entretanto, é muito importante a análise do seu desenvolvimento, mostrar como se tornou matéria de política externa e foi usado com propósitos outros sob o rótulo de “guerra às drogas”, sob a argumentação da existência de um mal externo.
Fonte: Yahoo Notícias