"A Justiça portuguesa é lenta e irresponsável"
Da revista eletrônica Conjur
08/03/2010 - Busca e apreensão em escritórios de advocacia em que não há advogado investigado, posições conflitantes do Ministério Público no mesmo processo, críticas de juízes de primeira instância ao presidente da Suprema Corte por decisão proferida, advogados demais e mal preparados. O cenário descrito não se refere ao de um grande país da América do Sul, mas corresponde à visão que o o presidente da Ordem dos Advogados de Portugal, advogado António Marinho e Pinto, tem de seu próprio país. Do que está acontecendo nas áreas do Direito e da Justiça no Brasil, o visitante fala até com um certo entusiasmo e uma certa inveja.
Nos dias 22, 23 e 24 de março, advogados de países de língua portuguesa vão se reunir em Lisboa para debater assuntos relacionados à profissão. Marinho acredita que a troca de experiências de advogados de países como Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, entre outros, pode ajudar os profissionais a enfrentar problemas em comuns. "É preciso que os estados reconheçam, não só nos discursos políticos, mas através de leis concretas, a importância dos advogados no processo de administração da Justiça."
O advogado esteve em Niterói no início deste ano e, em entrevista concedida à revista Consultor Jurídico, fez duras críticas ao Judiciário português. Para ele, muitos "se apropriaram do poder de julgar, do poder soberano da administração da Justiça, em beneficio da corporação". O presidente da Ordem acredita que tal situação é um fator que impede o desenvolvimento do país e que tem desprestigiado a Justiça. "Muitos juízes atuam, não em função dos direitos e da Justiça, mas em função de seus interesses políticos e partidários", contou.
António Marinho reclamou que a balança da Justiça não tem sido equilibrada. "O juiz tem que ter uma postura de rigorosa equidistância em relação aos interesses punitivos do Estado em um crime e aos direitos fundamentais do cidadão que está sendo julgado."
Mas o advogado também creditou parte dos problemas à própria advocacia. "Há muitos advogados em Portugal. A Ordem dos Advogados não soube exercer o poder de regulação, impedindo que a profissão se massificasse. Em alguns aspectos, há uma degradação da qualidade de patrocínio dos advogados. Nós queremos recuperar isso."
António também falou da ética profissional, que entrará em discussão no I Congresso Internacional de Advogados de Língua Portuguesa. "Nem tudo o que a lei permite, um advogado pode fazer", disse. Ele também afirmou que as experiências trocadas pelos advogados vão ajudar na elaboração de um código de ética forte. "Quanto mais forte for o código de ética dos advogados, mais prestígio, confiança, respeito e dignidade ele conseguirá da sociedade, do Estado e dos poderes."
Há dois anos António Marinho está à frente da Ordem dos Advogados de Portugal. O advogado, que estudou em Coimbra, já foi jornalista, quando tinha 29 anos, e professor durante quase 40. "Eu sempre me bati pelo Direito, pela Justiça. Fui dirigente da Associação Acadêmica de Coimbra no tempo da ditadura. Estive preso pela polícia jurídica", contou.
Leia a entrevista.
O que será discutido no I Congresso Internacional de Advogados de Língua Portuguesa?
O congresso vai permitir a troca de experiências profissionais, o estudo do Direito, o aprofundamento da defesa dos valores fundamentais. Também vai reforçar as prerrogativas dos advogados. As imunidades profissionais não podem ser vistas como benefícios ou privilégios dos advogados, mas como garantias do cidadão e das empresas que necessitam de serviços advocatícios. Vivemos em uma época, inclusive em Portugal, em que as prerrogativas dos advogados estão sendo tripudiadas por juízes que não têm uma cultura democrática. O Brasil deu um passo importante para garantir as prerrogativas.
Em que sentido?
A OAB, quando foi presidida pelo advogado Cezar Britto, conseguiu que fosse aprovada uma lei que criminaliza a violação do sigilo do advogado. É necessária uma lei como essa para que as prerrogativas possam ser respeitadas em Portugal. O sigilo profissional do advogado é tão importante para a boa administração da Justiça quanto a independência do juiz. O Estado democrático pode se transformar, rapidamente, em um Estado policial, que busca no escritório do advogado provas para incriminar os clientes dele. Isso está acontecendo em Portugal e não é próprio de um Dstado de Direito; é próprio de um Estado terrorista. Era na ditadura que advogados eram presos e tinham seus escritórios revistados com o objetivo de achar documentos e saber quem era da oposição.
Como os advogados podem auxiliar os colegas de outros países?
Eles podem ajudar com as experiências deles. As prerrogativas dos advogados do Brasil é um bom exemplo para os advogados de Angola, Moçambique, Guiné. A Justiça dos países civilizados tem três pilares fundamentais: o juiz, que exerce a função jurisdicional; o Ministério Público, que representa o Estado na ação penal; e o advogado, que é representante do cidadão. Ninguém pode se considerar mais importante, porque se faltar um deles não há Justiça. É preciso que os estados reconheçam, não só nos discursos políticos, mas através de leis concretas, a importância dos advogados no processo de administração da Justiça.
O juiz está no meio.
Naturalmente, o juiz tem uma função central, é o mais importante na balança. Mas os outros dois pratos têm que estar equilibrados. O juiz tem que ter uma postura de rigorosa equidistância em relação aos interesses punitivos do Estado no julgamento de um crime e aos direitos fundamentais do cidadão que está sendo julgado. Em muitos países, o Ministério Público tem prerrogativas que se traduzem em verdadeiros privilégios, acima das prerrogativas normais que são concedidas aos advogados. Eu espero que o debate sobre este assunto seja aprofundado no congresso dos advogados e que haja um avanço na concretização das prerrogativas funcionais. O advogado não tem interesses próprios no processo; os interesses dele são os do cliente.
O congresso também discutirá questões éticas. O que precisa ser debatido em relação a esse assunto?
O advogado tem que ser independente. Isso exige que ele estabeleça limites à sua própria atividade. Nem tudo o que a lei permite, um advogado pode fazer. Há princípios, regras, valores de natureza moral e ética que ele tem de respeitar nas relações com o cliente, com os colegas advogados, com o juiz, com o Estado e com a sociedade. Ele tem deveres especiais como tratar com urbanidade, manter o sigilo profissional, cobrar honorários moderados de acordo com o seu trabalho e não de forma especulativa. Vamos analisar o conjunto amplo dos deveres, que variam de país para país, e as experiências dos advogados para fazer um código de ética forte. Quanto mais forte for o código de ética dos advogados, mais prestígio, confiança, respeito e dignidade ele conseguirá da sociedade, do Estado e dos poderes.
No Brasil, quando há uma busca e apreensão em escritórios de advogados cujos clientes estão sendo investigados, a OAB, através da Comissão de Prerrogativas, tem levado o problema aos tribunais superiores. Como é em Portugal?
Em Portugal, é muito pior. O que passa em Portugal é próprio de um Estado terrorista. A primeira coisa que fazem no escritório é apreender a correspondência do advogado à procura de elementos que possam incriminar seu cliente. Isso é um fundamentalismo justiceiro por parte de juízes portugueses. O advogado ajuda o cliente, suspeito de um crime, a se defender em juízo. Ele não pode ajudar o cliente a cometer um crime. Se o advogado é suspeito de um crime, ele deve ser investigado como qualquer cidadão, e punido como qualquer criminoso. Mas se o advogado ajuda o cliente a se defender em juízo, ele deve ser respeitado, porque está cumprindo a sua obrigação e, mais do que isso, está cumprindo uma função extremamente importante para o Estado de Direito, que é defender o suspeito em um tribunal.
E como o Judiciário tem agido nas buscas e apreensões em escritórios?
Os magistrados portugueses, muitas vezes, emitem mandado de busca e apreensão em branco, para apreender tudo que possa interessar para a investigação. Se um advogado esconde droga de um cliente, o mandado deve mandar apreender a droga que está no escritório. Se o advogado esconde dinheiro sujo do tráfico em um cofre no escritório, deve-se mandar apreender o dinheiro que está lá. Mas, se não há suspeita de um advogado colaborar em um crime ou ter objeto criminoso no escritório, a busca para apreender tudo o que possa incriminar seu cliente é terrorismo de Estado puro. É uma vergonha que isso esteja acontecendo em Portugal.
Mas é permitido esse tipo de mandado em branco?
São os juízes que permitem o mandado. Um juiz faz tudo. Isso é incompatível. É muito importante que os advogados de língua portuguesa prestem solidariedade aos colegas portugueses que estão sendo vítimas desses atos por parte de magistrados que têm cultura de Estado totalitário.
Os juízes costumam receber os advogados? Isso é permitido em Portugal?
Possivelmente, hoje, a maioria dos juízes se recusa a receber, porque acha que os advogados são um parceiro menor. Esta é uma cultura quase salomônica que muitos juízes portugueses têm, de achar que não precisam nem do Ministério Público e, sobretudo, não precisam de advogados. Não há uma cultura de respeito. A Justiça em Portugal, quase 40 anos depois do fim do Estado Novo, ainda não foi democratizada. Está funcionando pior do que na ditadura de [António de Oliveira] Salazar e [Marcelo] Caetano. Está, em muitos aspectos, funcionando do mesmo jeito há séculos; é uma justiça medieval, em conflito com a democracia e com os valores democráticos. Daí a relutância e até a repugnância que muitos juízes de Portugal têm em relação aos advogados. Há também uma promiscuidade funcional muito acentuada entre juízes e membros Ministério Público.
De que modo?
Eles estudam na mesma escola, são colegas no centro de formação, trabalham do mesmo lado - o MP está instalado no tribunal -, viajam e almoçam juntos, discutem, muitas vezes, questões que deveriam analisar em separado. O Ministério Público é equiparado aos juízes em tudo; agem com total independência. Eles têm de representar os interesses do Estado, mas representam a si próprios dentro dos processos, às suas convicções pessoais, com suas idiossincrasias e preconceitos.
No mesmo processo, com as mesmas partes e provas, o Ministério Público tem uma posição na primeira instância, na segunda instância tem outra oposta e, na terceira, tem uma posição diferente das outras duas. Portanto, não representa o Estado. Pior do que isso, muitos juízes que atuam como se fossem procuradores. Enquanto um advogado influencia um juiz nas audiências, em um debate oral, com o contraditório, o MP influencia muitas vezes fora da sala da audiência. Isso é uma realidade terrível que lança uma mancha muito grave sobre a imparcialidade da Justiça portuguesa, sobretudo na esfera penal.
Essa questão da posição do Ministério Público ser diferente nas várias instâncias também acontece no Brasil. Eles dizem que é por causa da independência funcional.
O promotor não é independente. Ele representa o Estado. Quem é independente é o juiz, que atua de
acordo com o que entende ser o melhor. Já o Ministério Público é mandatário, procurador da República. E o advogado é o procurador do cidadão. Deviam estar no mesmo patamar, mas o Ministério Público tem todo poder do mundo; pode prender, fazer revistas e buscas e, depois, ainda vai conseguir que alguns juízes determinem buscas aos escritórios dos advogados para procurar tudo que encontrar. Isso é o poder da força bruta, de quem interpreta mal o Direito e que não está de acordo com valores democráticos e civilizados.
Essas mudanças de entendimento atrapalham a atuação do MP?
O Ministério Público tem que ter uma estrutura hierarquizada, que é representada por um procurador-geral da República, responsável por todos. A independência do juiz não é um privilégio do juiz, é uma garantia do cidadão. Já o procurador tem que atuar com o seu mandante, que é o Estado. E isso não permite que cada um interprete os interesses do Estado à sua maneira. Um procurador de esquerda interpreta de certa maneira, o de direita de outra forma, um procurador homossexual interpreta de modo diferente, um judeu ou um católico de outro. Não é assim. O interesse do Estado é um só, não é dividido em interpretações diversas. E, se houver interpretações diversas, tem que ser unificado pelo procurador-geral ou pelas estruturas hierárquicas superiores. O procurador não pode atuar de acordo com sua cabeça. Isso tem causado graves problemas no funcionamento da Justiça.
Quais são os problemas que a Justiça portuguesa enfrenta hoje? Há lentidão na resposta do Judiciário?
Há lentidão e irresponsabilidade. Os magistrados não prestam contas a ninguém e fazem o que querem. Isto é incompatível com a Justiça em um Estado democrático. O que é mais trágico, em Portugal, é que há juízes que se formam em Direito com 23 ou 24 anos, fazem um exame interno para uma escola de magistrado, e saem vinculados a um poder soberano para toda a vida. Para ser juiz, não basta ter a cabeça cheia de tecnicidade jurídica; é preciso ter maturidade, experiência de vida, bom senso. Nós temos magistrados com 27 ou 28 anos, resolvendo questões de famílias extremamente relevantes, sem saber o que fazer, limitando-se a uma aplicação formal e mecanicista da lei. Isso o computador faz. Com 26, 27 e 28 anos não se compreende muitos dos fatos que vão ser julgados. Isso é um grave problema da Justiça, que hoje está desprestigiada. Há também problemas que decorrem da própria advocacia.
Quais problemas em relação à advocacia?
Há muitos advogados em Portugal. A Ordem dos Advogados não soube exercer o poder de regulação, impedindo que a profissão se massificasse. Em alguns aspectos, há uma degradação da qualidade de patrocínio dos advogados. Nós queremos recuperar isso. Tudo isso também iremos discutir no congresso, trocar as boas e as más experiências que cada Estado e cada Ordem tem.
No Brasil, existe o exame de Ordem, obrigatório para os estudantes que se formam em Direito e que querem advogar. Em Portugal, há um exame de admissão?
Não. Eu estou criando agora. O primeiro vai começar no final de março.
E como o senhor avalia o ensino jurídico?
Bom e mal. Há ensino jurídico da mais alta qualidade e faculdades respeitadas como a de Coimbra. E há péssimas escolas. O governo deu permissão para a atuação de muitas sem que elas tivessem professores capacitados. Em muitas faculdades, houve uma degradação do ensino do Direito. Também se está atuando para reverter essa situação.
No seu discurso no evento de abertura do ano judiciário, o senhor citou uma situação que envolveu o presidente da Suprema Corte e críticas abertas de juízes por uma decisão que ele havia tomado. O que aconteceu?
Em Portugal, há um abuso no uso das escutas telefônicas; qualquer pessoa pode ter suas conversas interceptadas. Estavam investigando um empresário e, em uma das conversas interceptadas, ele falava com um dirigente de um banco. Passou-se a escutar o dirigente do banco, que é amigo pessoal do primeiro ministro. O dirigente do banco estava tendo uma conversa privada com o ministro e essa conversa foi escutada por um jovem juiz de primeira instância. O código de processo penal diz que a escuta de conversas que envolvam o presidente da República, o primeiro ministro e o presidente do parlamento tem que ser autorizada pelo presidente do Supremo Tribunal. Mas o juiz de uma cidade do interior foi quem escutou todas as conversas, gravou e as transcreveu, tudo o que era competência do presidente do Supremo. E depois qualificou juridicamente as conversas, dizendo que havia crime contra o Estado de Direito. Só depois disso, o juiz enviou para o presidente do Supremo.
E o que o presidente do Supremo fez?
Ele analisou as escutas e concluiu que não havia atentado ao Estado de Direito e ordenou a destruição das conversas. Foi esse equivoco que eu falei na abertura do ano judiciário.
A globalização tem feito com que empresas atuem, cada vez mais, em outros países. Como fica a atuação do advogado a partir dessa perspectiva?
A globalização se traduz, sobretudo, em uma livre circulação mundial de empresas, mercadorias e capitais. Mas ainda não se traduziu na livre circulação de pessoas. É necessário que haja a livre circulação dos advogados no mundo, para poder defender os interesses de seus clientes em qualquer lugar, diretamente ou em parceira com escritórios de outros países. Uma empresa brasileira que se instala em Portugal tem direito a ser patrocinada por advogados brasileiros lá. São os advogados que, por ventura, acompanharam a empresa desde sua fundação. Provavelmente, haverá dificuldade com os conhecimentos do ordenamento jurídico português, mas, nesses casos, são feitas parcerias com escritórios de Portugal. O mesmo vale para empresas portuguesas no Brasil. As Ordens dos Advogados dos dois países têm um acordo de livre circulação de advogados. No âmbito da União dos Advogados de Língua Portuguesa, foi criada uma globalização para livre circulação de advogados que acompanham seus clientes em parceria com escritórios em outros países.
Entre os países europeus, isso já é permitido?
Sim. Os advogados dos outros países da Europa podem atuar em Portugal. E os advogados brasileiros que se inscrevem na Ordem de Portugal podem atuar em outros países da Europa.
O senhor acha que as leis, sobretudo em países da Europa, também tendem a ser unificadas?
Hoje, entidades da União Europeia estão caminhando para a unificação das leis. Já estão aparecendo questões jurídicas em alguns países que, em certos aspectos, estão unificados a uma política comum de defesa, de representação e de diplomacia. Há aspectos de soberania também que são comuns. Temos que estar preparados para isso. Portugal sozinho na União Europeia tem um peso pequeno. Mas Portugal é a língua portuguesa, é o Brasil, Moçambique, Cabo Verde. E nesse aspecto ganha um peso na União Europeia.
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