sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

A DEMOCRACIA SANGRA


A DEMOCRACIA SANGRA



Por Paulo R. de A.  David.

Esse momento é hipnótico. Todos estão concentrados nele. Claro que ele é importante. Por ele muito se lutou. Alguns morreram e outros mais desapareceram, mas o importante é que chegamos.

Não olho para trás com amargor. Olho para o passado como quem olha para um Mestre e olho com carinho os meus mestres. Sempre tratei bem minhas dores, como hóspedes queridas; o melhor prato, a cama mais macia. Como retribuição, sempre se demoraram pouco e, quando se foram, em mim deixaram o perfume da experiência e não a essência amarga da revolta.

Todos estão inebriados por essa festa. Tão absorvidos que não se dão conta de que a Democracia sangra.

Quis assim o Destino, que as eleições para quem vai presidir a República ou governar alguns Estados fossem para o segundo turno; quis mais esse deus tresloucado e mitológico: que tal se desse no mesmo mês em que se comemora entre nós o Dia da Criança. Outubro começou trágico e não terminou ainda. E começou pior justamente com elas, as crianças.

Com o título de “Mais uma infância perdida”, conforme noticiava O Globo em 2 de outubro de 2006, morre no dia anterior, 1.º de outubro, o pequeno Renan da Costa Ribeiro, de três anos, baleado no abdome durante uma “ação da Polícia Militar na Favela Nova Holanda”, um dos guetos entre os muitos existentes no Rio de Janeiro e em outras capitais da República.

O histórico dessa barbárie, que está fazendo o controle de natalidade em nosso apartheid social, somente entre 20 de setembro até a presente data, ou seja, em menos de um mês, redundou na morte prematura e injustificável de cinco pequenas vítimas fatais: e isso sem contar adultos mortos ou feridos, de quem não falarei, pois afinal hoje é Dia da Criança e governos não gostam de misturar cadáveres.

Em 20 de setembro, na Favela Guarabu, no complexo do Dendê que fica na Ilha do Governador (onde se localiza o Aeroporto Tom Jobim, porta de entrada da cidade maravilhosa), Guilherme Custódio Morais, de oito anos, foi atingido na barriga quando saia de um jogo de futebol e a polícia investigava um suposto carregamento de armas ou drogas.

No mesmo dia 20 de setembro, ao tentar fugir de um tiroteio entre policiais e bandidos no bairro de Vigário Geral, também no Rio de Janeiro, Paulo Vinicius de Oliveira Chaves, com sete anos, é atropelado e morto por uma viatura do 16.º BPM que participava da operação.

Antes, no dia 16 de setembro Lohan de Souza Ramos, nove anos, morre com uma bala de fuzil na cabeça, no Morro do Borel, zona norte do Rio de Janeiro.

Em 2 de outrubro de 2006, o adolescente Moises Alves Tinim, com 16 anos é morto por um tiro de fuzil, no Morro da Esperança, Complexo do Alemão, zona suburbana do Rio de Janeiro.

Como sempre, inocentes estão sendo fulminados por essa política de confronto imposta por governantes que estão absolutamente deslocados da realidade. Para essas crianças, e tantas outras que já foram assassinadas nessa guerra sem quartel, assim como seus parentes, amigos, vizinhos e de qualquer pessoa de bom senso, quem determina ou cumpre tal política de extermínio de nossas crianças não são governantes: são bestas.

Não me venham abanar com a antiga história de que “a polícia tem que cumprir seu papel e quando chegou ao local foi recebida à bala”. Não, senhoras e senhores, não vou legitimar essa chacina diária que se tornou para muitos uma banalidade. Vou lutar e gritar e espernear contra esse descaso com a vida.

Para mim não há confinamento, não há divisão, não demarquei local de confinamento ou de exclusão social. Muito menos de exclusão do Direito! Pelo contrário. Estou convencido de que essa prática de chegar, trocar tiros, ir embora, e depois discutir de quem foi a bala que matou o inocente ou quem atirou primeiro em quem, é que tem legitimado o morticínio nosso de cada dia. Essa política de segurança se não desejo para mim não posso legitimar para o próximo, ainda que o próximo esteja no distante apartheid social de nossa ilusão. Sim, ilusão. Se hoje não nos indignarmos contra as graves lesões ao Estado Democrático de Direito que representam tais mortes, amanhã, quando esse mesmo Direito reclamarmos será tarde demais. 

O que está em jogo, ao fim, senhoras e senhores: é a Democracia.

É preciso que todos se mobilizem para que se coloque um fim a essas práticas bárbaras de enfrentamento urbano. É preciso que cobremos de nossos governantes um compromisso com a Democracia e não com o extermínio, em suas políticas de segurança pública. Não se iludam: amanhã será tarde demais e tais confrontos chegarão à nossa porta.

Por mais que alguns queiram viver na cegueira e na ilusão de que estão seguros, não vou pagar para ver. Insulta-me como ser humano detectar essa inércia popular, essa aceitação, essa incapacidade crônica que a sociedade tem de se indignar diante de tamanha barbárie.

Surpreende-me essa ausência de preocupação com os limites do uso de armas de fogo em centros urbanos. Apenas se aceitar que a sociedade não veja nossos guetos como parte dela e as crianças que lá vivem como o que elas sã, crianças, não consigo compreender tamanha omissão. Maior até do que a praticada durante os anos mais duros para a nossa Democracia, talvez por que, naqueles idos, eram os filhos da classe média os que estavam morrendo.

Tão grande quanto o despropósito desses tiroteios em meio aos barcos de nossos guetos, é sua gritante ilegalidade. No entanto, tornou-se hábito. A polícia já não se preocupa com as mortes nem de seus membros, isso é patente. Volta e meia temos notícia de que um jovem policial, às vezes nem tão jovem assim, foi assassinado durante uma dessas ações de “invasão” às favelas. E se ela, a polícia enquanto instituição, não se preocupa com as mortes de seus integrantes, que dirá a dos “outros”. E tome bala!

Mas essas não são aquelas coloridas, com açúcar e com afeto, que nossas crianças tanto gostam. Na verdade falo de munição pesada, de guerra, balas de fuzis que atravessam paredes de alvenaria e os corpos de nossas crianças e jovens. Isso não tem cabimento nem justificativa e desafio a quem quiser pregar o contrario com a seguinte pergunta: -“e se você morasse lá com sua família?” Aliás, pergunta até menos idiota do que fazem àqueles que são atacados como “defensores dos direitos humanos”, que é mais ou menos do tipo: -“e se sua mãe fosse estuprada?”

Deixem a velhinha em paz e cuidemos de nossa infância, de nossos filhos e daqueles que poderiam ser nossos filhos.

Ninguém se ilude com a ideia de que essa política de terror recuperará o controle das áreas em que o Estado sempre se manteve omisso. Não se apaga a luz para ver o escuro nem se diminui a criminalidade com mais cadáveres.

Creio que o Rio de Janeiro, seu povo, não merece. Creio que passou da hora do governo parar de considerar os pobres como inimigos e a sociedade de agir como débil mental, e aceitar. 

Basta!

Que seja o ultimo Dia da Criança que eu tenha que escrever sobre o presente que governos distribuem para as crianças de nossos guetos: a morte.

Enquanto a democracia, sangra...

Brasil, 12 de outubro de 2006.

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