sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

ECOS DA JOVELINA NO LAMENTO DA ROCINHA.

Sábado, Fevereiro 18, 2006




ECOS DA JOVELINA NO LAMENTO DA ROCINHA.



por Paulo da Vida Athos

Quando em meados de 1988, apadrinhado por Denis da Rocinha (Denis Leandro da Silva) que se encontrava preso, Ednaldo de Souza, o Naldo, para anunciar seu reinado do alto de uma laje de uma das casas, com desassombro desferiu uma rajada para ao ar com a “Jovelina”, sua HK-47, o Rio de Janeiro de então ficou surpreso. Na foto, onde também surgia uma submetralhadora Uzi, estavam: Naldo, Buzunga (Robson da Silva) e Cassiano (Cassiano Barbosa da Silva) para uma pose diante dos fotógrafos. Afinal, para aquele ato Naldo convocara toda a imprensa policial pois queria deixar claro que não havia cisão entre eles. A cerimônia de posse se deu na Via Ápia, e a imprensa, convidada, se fez presente. Essa foto correu o mundo. Hoje, todos os mencionados estão mortos. No passado, em algum momento na trágica crônica da Rocinha, todos foram donos dela. E o Rio de Janeiro de hoje, certamente, nem se abalaria com tal ato.

Depois deles, dezenas de donos por lá passaram. Os três últimos que temos mais claramente na memória são: Dudu, Lulu e Bem-te-vi.

Ao longo desses dezessete anos a Rocinha testemunhou, e não pela vontade de seus moradores honestos, a evolução bélica do crime pseudo-organizado que aposentou a Uzi, revólveres obsoletos, dando preferência, para garantir o território, aos fuzis e armamentos mais sofisticados, e munição que vai da bala traçante (que deixa um rastro fúnebre de luz no céu das noites e madrugadas cariocas) a outras que atravessam facilmente as paredes de alvenaria de qualquer casa comum.

A sociedade, da qual faz parte as pessoas honestas da Rocinha, ficou a mercê do crime.

Bom lembrar aos incautos que mais de 99% dos moradores de qualquer favela, que alguns gostam de sofismar chamando-as de comunidades, são trabalhadores, pessoas de bem, nem mais nem menos dignos que aqueles que moram nas zonas mais favorecidas da cidade. A única diferença: moram nos guetos e neles não há a presença do Estado. Mas essa única diferença é mais que fundamental, é vital. Nos guetos não prevalece a força do direito, mas o direito da força. E lá quem tem a força não é mais o Estado, faz décadas.

Mas quando o Estado se faz presente: é para matar. Ou deixar matar por omissão que, no caso, fosse o estado uma pessoa física responderia por homicídio comissivo por omissão (seja, responderia como se houvesse apertado o gatilho já que tinha o dever legal de agir, de impedir o resultado). Pelas primeiras informações não havia policiamento em um local que está, sabidamente, em estado de guerra entre traficantes. Isso caracterizaria a comissividade estatal.

A Polícia Militar tem um balanço sobre a invasão da noite de ontem. Nove pessoas foram presas, sendo quatro entre a noite e a madrugada e cinco no início desta manhã. Seis pessoas morreram durante a invasão, entre elas o estudante Diego de Araújo Lima, de 14 anos. Os outros cinco corpos foram encontrados na favela nesta manhã.

Segundo os moradores, pelo menos três deles seriam trabalhadores e moravam na Rocinha. Seis moradores ficaram feridos durante a ação: Francisco Plínio, de 13 anos, baleado na coxa esquerda, Leandro Alves Ferreira, de 19, baleado nas nádegas, Alexandre da Silva, de 26, ferido por estilhaços, Joelma da Siva, de 33 anos, ferida a coronhadas, uma pessoa atropelada e uma criança ainda sem identificação.

Entre o fogo dos quadrilheiros do tráfico e da polícia, está o povo. Se nós olhássemos o povo da Rocinha como deveria ser, como parte do Povo do qual fazemos parte, talvez a realidade fosse um pouco diferente. Mas não os olhamos como um de nós.

Há um cinismo hipócrita em que a sociedade carioca se banhou tanto que já nem sente. Não se compadece, não se espanta, não fica indignada diante da morte de uma criança atravessada pela bala de um fuzil, não toma as ruas ao tomar conhecimento que o corpo de mais uma mãe ou um pai encontrou outra bala perdida. Não demora e veremos mais um daqueles conhecidos abraços coletivos que a imprensa irá registrar para, logo depois, cair no esquecimento em razão de sua própria ineficácia.

O beatiful people ainda não caiu na real. Não percebeu que a guerra civil não declarada já é uma realidade que deixou de cantar na praça e está cantando e na porta de casa. Iludidamente, quando a chapa esquenta, a primeira coisa que pede é a presença das Forças Armadas nas ruas, ou leis ainda mais hediondas do que já conseguiram junto aos nossos incompetentes legisladores (ainda mais em anos eleitoreiros como esse), como se tal ou qual estupidez fosse resolver alguma coisa. Aí, um abraço para o abraço solidário.

Já passou da hora de se despertar que não será com helicópteros e fuzis, com invasões de nossos guetos, com leis cada vez mais severas, com prisões superlotadas, com o sangue de inocentes, com mais cadáveres enfim, que estaremos caminhando para uma solução de paz. Já passou do tempo de se reconhecer que nosso silêncio conivente alicerçou a espoliação da maioria em favor de alguns.

Não haverá paz sem justiça social.

Os bizarros contrastes econômicos e sociais que testemunhamos, não se iludam, alimentaram-se de nosso anacrônico comodismo. Diante de nossa omissão e permissividade, por historicamente não cobrarmos de quem elegemos políticas públicas eficazes, chegamos a essa esquina do tempo escura e perigosa. Minimamente almoçar e jantar deveria ser um direito exercido por todos, mas nem isso temos. Aliás, longe disso estamos. Não há necessariamente uma ligação entre pobreza e crime. Mas no Brasil, indubitavelmente a degenerescência teve origem em nossos descaso com relação á maioria. Isso é fato.

Ao aceitarmos o que ocorria e ocorre em nossos guetos, permitimos com que essa realidade chegasse ao patamar que chegou. Não ligávamos se lá a lei era ou não era respeitada, se a polícia invadia ou não suas moradias, se inocentes estavam ou não morrendo, se seus moradores tinham ou não acesso a escola, hospitais e segurança pública.

Desde ontem, seis pessoas morreram. Há quase duas décadas Naldo deu aquela rajada com sua "Jovelina". Desde Naldo aos dias de hoje, tudo só se agravou até sair do controle. Agora, mesmo passando da hora, é hora de nos despirmos do cinismo e cobrarmos de nossas autoridades, é hora de escolher como quem cata grãos da vida, em quem depositaremos nossos votos na próxima eleição.

Está na hora de recusarmos toda a lavagem cerebral que nos entorpeceu de cinismo, através de nossa indignação repetida e diária contra o esbulho que até então consentimos contra os desvalidos. Descartemos com veemência tudo que se prega de violento para acabar com a violência. Não se apaga a luz para ver o escuro. 

Não será com mais penas, mais fuzis e mais cadáveres que pavimentaremos a paz social que o Brasil e o povo carioca e paulista, de forma especial, sonham. 

Se apostarmos em outra coisa que não seja justiça social, continuaremos alimentando o nosso apartheid e nossa guerra civil.

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